A fina flor do sal / Castro Marim

Com o fim de semana à porta e o sul no horizonte, fomos conduzidos para uma tertúlia temperada com flor de sal da salina Moinho das Meias, na Reserva Natural do Sapal de Castro Marim, na cidade algarvia, onde nos rendemos à paisagem, à gastronomia e às suas gentes.

O dia preguiça ao sol quando a noite invade, sem pressa, o céu salpicado de estrelas, em Vila Nova de Cacela, a dois passos de Castro Marim, no sotavento algarvio. Estamos no Monte Rei Golf & Country Resort, um lugar envolto em idílicas paisagens campestres e um paraíso para os amantes de golfe, onde o jantar reserva boas surpresas ao palato. Aguardemos…
Antes as conversas convidam à boa disposição no alpendre contíguo ao jardim e à piscina da vivenda do Monte Rei que acolhe o repasto. Na cozinha o chef catalão Jaime Perez, que deu os primeiros passos no Talaia Mar, restaurante assessoriado pelo chef Ferran Adrià, ao lado de grande nomes da cozinha atual, como Sergi Arola e Arzak, e trabalhou no célebre El Bulli, em 1998, e se encantou por terras algarvias e pelo Monte Rei, em 2006, preparava, com a sua equipa, as iguarias de boas-vindas. Em destaque estão os lollipops de camarão e os de polvo, com massa de arroz, o foie gras panado com especiarias e o gelado de coco com granizado de ananás, que fazem as delícias dos presentes, mesmo dos mais pequenos.

Sentamo-nos. O pão de cebola, de azeitona, de passas e nozes e de orégãos com flor de sal fazem as honras da casa, na companhia do azeite, seguido do amuse bouche: Cannelloni de sapateira com molho de manga, beterraba crocante (primeiro desidrata-se, depois frita-se), rebentos e maracujá, uma combinação agridoce e, ao mesmo tempo, refrescante que se intensifica no boca. A entrada apresenta um Tártaro de atum num casamento feliz com o singelo picante do gelado de wasabi, finalizado por um crocante de sésamo.

Do mar, e em substituição da cavala, o protagonismo é transposto para a Sarda fumada na cataplana, com Salmarim, a flor de sal da Salmarim, de Jorge Raiado, e tomilho servido numa base de gelatina de tomate, cebolas glaciadas com Alvarinho, manteiga de azeite e microvegetais. A rima perfeita entre o Minho e o Algarve, de onde o sabor do tomilho sobressai numa ínfima maridagem com o da sarda – cuja película de gordura foi retirada após ter sido colocada 45 minutos em vinagre – e o tão famoso Alvarinho, a casta de vinhos verdes, O prato conta com a assinatura da dupla de chefs Dalila e Renato Cunha, do restaurante Ferrugem, sito na pequena aldeia de Portela, em Vila Nova de Famalicão.
Da terra, chega a vez da carne: Lombo de vaca charolesa com massa folhada, cogumelos, foie gras e crocante de batata. A reinterpretação do bife Wellington e um clássico do Vistas, o expoente máximo da gastronomia do chef Jaime Perez e um dos restaurantes do Monte Rei. Para adoçar a boca, os frutos silvestres encimados por um creme de baunilha remataram o repasto da noite, seguidos por mignardises. Um excelente pretexto para dar continuidade à conversa que acompanhou todo o jantar, no âmbito da importância da flor de sal.

O queijo, o pão… e o ingrediente estrela

O sol desperta, a pouco a pouco, abrindo caminho até Foz de Odeleite. Uma pequena povoação banhada por uma ribeira com o mesmo nome, onde a tradição mantém-se viva ao longo de décadas. Na feitura do queijo fresco o saber fazer perdura nos anos que passam, sendo a Queijaria Foz de Odeleite o testemunho de um privilégio de gerações. No terreno, Olívia Ribeiro, de 78 anos – ainda que os 79 estejam para breve –, “toda a vida” se dedicou à tarefa de fazer queijo, a qual aprendeu com a avó num tempo que existiu antes de muitos de nós.

Hoje o processo é o semelhante, mas os cinchos (argolas de metal) de outrora foram substituídos por argolas de plástico. Há termómetros e utensílios próprios para usar em cada passo da elaboração do queijo cujo leite é extraído das mais de 150 cabras do rebanho do homem da casa, João Ribeiro, e fervido a posteriori; deixa-se arrefecer (cerca de 57° C) e adiciona-se o sal e o coalho, feito com flor de cardo. Coloca-se num saco de pano branco, o qual é apertado pelas mãos de Vânia Rodrigues, de 29 anos, a filha dos donos da queijaria, para escorrer a água. De dentro sai o leite coalhado, apertado, de novo, pelo trio de mulheres que executam a tarefa, das quais falta mencionar Isabel Cavaco, de 72 anos, que “desde os 16, 17 anos” começou nestas andanças.

E como não há nada melhor que degustar tão deleitosos queijos com o pão da terra, seguimos viagem até à Casa de Odeleite, na serrania algarvia. Aqui, Celísia Custódio, de 60 anos, coze o pão – com e sem sal – no forno de lenha de esteva, enquanto explica como era – e pode ser – feito o fermento e a massa do alimento feito a partir de farinha de trigo. Na divisão que acolhe o forno e no alpendre, os presentes deliciaram-se com as iguarias, em amena cavaqueira, e todos são unânimes: o pão com sal é o mais saboroso. Afinal, o sal é indispensável na alimentação.

Outrora casa de João Xavier e um entreposto comercial no princípio do século XX, a Casa de Odeleite converte-se, no início do século XXI, num espaço expositivo e num centro de documentação, onde o património gastronómico consagra a afirmação e a valorização dos produtos da região.

Ayamonte de portas largas

Para quem está a sul, bem perto do mar, a ida ao mercado de Vila Real de Santo António é imperativa. Escolhe-se o peixe – ou melhor, é Jorge Raiado que impulsiona a escolha do melhor da costa de Portugal –, mas para o jantar, pois o próximo destino é Ayamonte, na vizinha Espanha, para onde atravessamos de barco pelo vetusto Guadiana.
Do outro lado, o chef Fabio Erzo, de Piemonte, Itália, rendido à singularidade da flor de sal, e a mulher, Clíodhna Browe, uma irlandesa de Cork, mantêm La Puerta Ancha aberta para um repasto memorável, com sabores do mar e da terra. Para partilhar e degustar.

Começamos com os Lagostins envoltos em sal de presunto ibérico e creme de amêndoa com azeite e alho, Sardinhas marinadas, pimento de piquillo, creme de anchovas e alcaparras e flor de sal. O Tataki de atum com especiarias, wasabi e gengibre curtido faz a delícia de um dos petizes sentados à mesa, assim como o Tártaro de atum sobre algas de wakame. Os Mexilhões salteados com manjericão e creme de limão fazem “crescer água na boca” dos mais gulosos, graças ao molho, assim como o refrescante Sorvete de limão e champanhe com hortelã. Da carne, Fabio Erzo brindou-nos com o cilindro de carne de vaca coberto de salsa, cogumelos, primentos assados e queijo brie fundido, com crocante de presunto, prato que ganhou, em 2011, o Prémio de Melhor Tapa da Região, do concurso de gastronomia de Ayamonte. A rematar, o Risotto de funghi porcini e azeite de trufa branca conquista também o palato de um dos mais novos.

Terra de sal, pedaços de mar

Em Castro Marim abundam os espelhos de água formados pelo oceano Atlântico e esculpidos pelo Homem. São as salinas, espelhos de água que preguiçam no sapal, onde as famílias mais antigas dão continuidade ao trabalho árduo de saberes intemporais convertidos numa recolha que depende do sol, do vento e das águas do mar. Três fatores que determinam a “colheita” dos pequenos e frágeis cristais de sal, que se formam à superfície da água, os quais são retirados com o auxílio de artefactos, de acordo com a demonstração feita por Jorge Raiado, nas sua salina, a do Moinho das Meias, em Castro Marim, de onde retira a fina flor de sal da Salmarim. O mote para esta curta viagem pelo sotavento algarvio, a qual não termina aqui…

Repasto na Casa Rosada

Ao fim da tarde, quando o mar e o céu se tocam indefinidamente, Rupert e Andrew, que nos acompanharam nesta aventura a sul, abrem as portas da Casa Rosada, onde a hospitalidade é marcante, para um jantar muito animado. O peixe é colocado na mesa e os restantes ingredientes dispostos, a pouco e pouco, na bancada da cozinha, enquanto são dadas as sugestões dos entendidos na matéria.

No menu há butarga (ovas de atum secas) em salada preparados pela dupla Oliver & Nicky (www.deliciousdays.com), camarões cozinhados pelo food & wine activist Jorge Filipe Nunes (www.joli.pt), baila e batata doce no forno por Isabel Zibaia Rafael (www.cincoquartosdelaranja.com), salmonetes e espetadas de atum assadas em pedra de sal sob o olhar atento de Rupert, um dos anfitriões da casa, e autor do inesquecível brownie de chocolate, do qual metade foi coberto, a meio, com flor de sal; enquanto Raul Lufinha (www.mesa-do-chef.blogs.sapo.pt) capta o ambiente pela lente da sua máquina fotográfica e Ana Rita Monteiro (www.aqui-ha-arte.com) dá os últimos retoques na estória deste fim de semana por meio do traço do lápis. Sobre os restantes presentes e comensais é de realçar a ajuda dada na cozinha e à mesa, embora haja quem dê uma mão para cuidar do vinho trazido do Douro Superior para o Algarve: Maria de Lourdes CARM branco 2011 e CARM Reserva tinto 2011. Brindamos!

No fim, Jorge Raiado desafia-nos para um prova cega. Objetivo: Descobrirmos a verdadeira flor de sal cuja “missão” é intensificar o sabor dos alimentos. Tarefa tão bem desempenhada à mesa do restaurante Noélia e Jerónimo, em Cabanas de Tavira, com o mar à espreita convertido em petiscos para rematar o roteiro por terras algarvias em bem. •

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Casa Rosada
Monte Rei Golf & Country Resort
© Fotografia: João Pedro Rato com Canon EOS 60D