Genuinamente, Alceu Valença

Natural de Pernambuco, Alceu Valença há muito conquistou o seu lugar cimeiro na música, no mundo. Reconhecido pelas suas composições e lírica, este nordestino, apaixonado por Portugal, esteve à conversa connosco, no Porto, há um tempo, numa casa com música antes de tocar na Casa da Música.

Natural do Nordeste brasileiro, que tem um Pernambucano no código genético que, na música, não dará para igualar? 
Sou natural de São Bento de Una, cidade no Agreste Meridional, de Pernambuco e a minha música se debruça sobre as raízes. Essas raízes são ibéricas e lusitanas, sobretudo. Tem um pouco de africanas, também. Mas, de princípio, a minha música vem essencialmente de reminiscências da colonização, uma carga genética que vem sobretudo de Portugal. Lembro, de miúdo, ir na feira e havia todo o tipo de sonoridades, peguei essas sonoridades de forma natural, e tudo entrou em mim. Talvez dai a minha música seja diferente, não devendo ser. Devia era ser mais comum a todos.

E influências…
A cultura popular foi, sem dúvida, o que me influenciou. Depois, vem a minha ida para Recife. Morei numa casa que tinha um maestro do lado direito, uma cantora do lado esquerdo e um poeta na frente. Estava cercado pela arte. E, ao mesmo tempo, do jardim de casa, eu via passar grupos carnavalescos – tinha sons africanos, mais frevo de bloco, frevo canção, frevo de rua… – e tudo absorvi de forma natural. Havia também a influência da rádio, que tinha em casa e que tocava tudo. Não era essa coisa monocórdica que existe hoje. Na época se ouvia fado, tango, chansonnier francesa,… e os sons do Brasil como sambas, chorinho, …, era tão diversificado que eu ouvi de tudo. Tem também a televisão e ah! tem uma pessoa que cito muito que é Luíz Gonzaga. Também ele muito influenciado pelo que me influencia. Então, sou a minha cultura, mais Gonzaga, mais alguma coisa que eu não sei. Assim sou eu, que faço coisas que não se parece com ninguém porque eu não tive ídolos, não fiquei mitificado pelo facto de eu não querer ou não achar que ia ser artista. Eu digo sempre “a arte é que veio atrás de mim, me pegou, me deu um laço em mim”. Todo o tempo era eu fazendo com que eu fugisse dela, mas ela veio sempre atrás.

Na família, incutiam-lhe o gosto pela música?
Bom, meu pai não queria filhos artistas, queria que fossemos para um Direito ou Medicina porque a carreira de músico é complicada. Papai (risos), não comprava radiola lá para casa, para eu não ouvir música. Isso até foi bom, se por acaso eu comprasse um disco da época ficaria muito ligado naquele disco e iria entranhar. Então eu ouvi o geral. Não me particularizei muito. E há um momento muito engraçado: todo o mundo tinha violão, eu não. Meu pai não ia dar violão para mim, mas minha mãe, D. Delma Paiva Valença, me chamou para ir à cidade fazer umas compras e eu, que não gosto de compras desde pequeno, disse: “mamãe, chame minha irmã, compra é para menina.” Ouvi de volta “estou precisando de você”. Fomos até à Rua da Imperatriz e ficámos de frente para uma vitrina de instrumentos. “Escolha um instrumento para você!”. Olhei e “mamãe, quero aquele ali”. Escolhi um cavaquinho, com medo dela se arrepender e não dar mais. “Você merece um violão”. Mãe é mãe. Comprei violão, levei violão para casa, pedi a papai aulas e ele não deu professor para mim. Fiquei observando os outros meninos tocando e ia tocando também. Mas eu adoro papai, adoro!

Já nos trilhos da cena musical, Alceu licencia-se em Direito. Homem das leis que não exerce, segue por uma estrada dedicada à música. De alguma forma far-se-á mais justiça com a música?
Não, tem de ter a justiça com as leis. Inclusive justiça para corruptos, sobretudo, ladrões do erário público e para isso tem de ter leis, e têm de ser fortes. Porém, de uma certa maneira a música pode unir, fazer o ser humano viajar. A música, com letra ou sem, é para tirar as dores de cotovelo, dar alegria, promover conquistas, tanto entre casais como a conquista de viagens etéreas, de sonho.

Dos vários nomes que cruzaram o seu caminho, no início, quem foi que lhe deu mais esperança de que hoje, aqui, poderíamos estar a celebrar estes 40 anos de carreira?
Todos os jornalistas me deram muita força, lembro Nelson Mota e Tárik de Souza, que é um dos maiores e falou super bem de mim.

Eça diz: “Eu sou um artista, não um crítico: não tenho análise, tenho emoção“. Há 40 anos, quando da música fez o seu existir, houve mais emoção ou razão?
Mais loucura. Foi uma saída que eu não sabia que ia ser saída. Fiz direito. Depois fiz também um pouco de jornalismo. Mas tem um episódio que explica muito. Fui fazer o estágio num escritório de advocacia e um dia tive de fazer o direito mais pequenino que tem, uma cobrança. Botei paletó, gravata, chega o devedor e digo:
O sr. está devendo de um objeto que comprou a loja, que é nossa cliente no escritório. Não pagou, porquê?” – “Porque eu não tenho dinheiro”. “Se não tem, por que comprou o televisor?” – “Fui ver na casa do vizinho e eu vi a propaganda da firma dizendo que era fácil comprar o televisor. Comprei e não posso pagar doutor, ganho pouco, meus filhos vão morrer de fome.”
Posto isto disse: “Sabe de uma coisa amigo, o senhor não precisa de pagar. Eu não vou lhe cobrar. O senhor foi induzido por uma propaganda a comprar o televisor.” E eu não cobrei, deixei ele ir embora do escritório. Fui ser jornalista, fazer estagio até para poder ser admitido no jornal. Nesse momento, passou, para meu azar ou minha sorte, uma lei que só permitia as pessoas serem contratadas se tivessem cinco anos de trabalho na área, ou se tivesse o curso de jornalismo. Então, eu tinha mais que fazer. Portanto, me formo em direito, entrego o diploma a meu pai – também ele formado em direito – junto com o anel de curso e fui embora para fazer um show no Recife, patrocinado por uma aguardente de cana. Parte do ganho nesse show foi nos darem bebidas e nós fizemos barris de caipirinha… eu era o 3.º a ir ao palco e bebi muito, antes do show. Entrei no palco mais para lá do que para cá e, na hora “h”, tirei a camisa, fiz cambalhota. Não ficava muito bem para um advogado dar cambalhotas. Não podia mais ser advogado, nem jornalista. Fui para o Rio. Lá, meu irmão alugou um apartamento para a gente, para mim, porque ele trabalhava fora do Rio, eu estava com muita falta de dinheito, meu pai não mandava dinheiro, pois queria que eu voltasse ao Direito, mas mamãe arranjava uns trocados para prendas domésticas. Ela não precisava, meu pai tinha boa condição financeira, mas mamãe começou a bordar, vendia os bordados e mandava o dinheiro para mim. Mandava escondido (risos).

E no Rio, que aconteceu?
No Rio, encontrei um dia com Geraldo Azevedo de quem eu era fã e que conhecia do Recife. Fui na casa de um amigo comum e ao chegar lá toquei na frente dele e ele gostou. Me convidou para ir a casa dele para compor com ele e eu, timidamente,“Décio, Geraldinho disse para eu ir para casa dele amanhã, será que é verdade?”. Meu irmão, matemático, mais lógico que eu, disse “ se ele convidou é lógico que ele quer que você vá”. Fiz amizade com Geraldo e fizemos um disco juntos de dupla com músicas minhas e dele anteriores ao nosso encontro, e músicas da dupla.

Correu bem, esse álbum?
Foi bem elogiado pela critica, mas não vendeu absolutamente nada.

E depois?
Depois fui convidado, por acaso, para fazer um filme, “A noite do espantalho”. Quando fiz o filme fiquei na casa da minha mãe, (sim, voltei para casa de mamãe). Lá consegui encontrar músicos e ter uma bandinha para me acompanhar e fiz um show chamado “O ovo e a galinha”. Um show maluco, bem montado e da Rede Globo viram por acaso o show, gostaram e uma gravadora da Globo me chamou para ser contratado. Fiz meu primeiro disco muito bem recebido pela critica e depois me lancei como pessoa de palco. Bom, fiz um show que esteve dois meses num teatro…

Muito bem recebido pelo público, portanto.
A plateia ia e delirava, e foi isso que me deu força. No Rio ganhei fama. Aí, terminando essa, fomos para outro teatro que entupiu e depois São Paulo que foi uma tragédia. Ninguém foi ao show, não tinha repercutido em São Paulo, voltei para casa de mamãe. À beira do mar a morar, ficava por lá, até que voltei para o Rio para fazer um outro disco – “Espelho Cristalino”. O disco não saía pois o problema era novela da Globo, dona da editora. Quando uma novela estourava, saía o disco da novela que as vezes tinha até musica minha, mas os discos dos artistas não saiam e ai eu fiz um show para lançar o disco, fui para o jornal, fiz o show e… o disco não saiu.

Nem assim?
Não. Saía daí a 3 meses. Inventei novo show. O primeiro já tinha estado um mês em cena, mudei o nome do show, depois fiz outro até que não dava mais e pedi rescisão.

E como se livrou dessa espera?
Encontrei Paulo Coelho e ele perguntou se eu estava bem com a minha gravadora. Disse que não. Fui para a Polygram encontrar Paulo, Diretor. Na Polygram ele me recebeu, falou comigo e disse que ia no banheiro e nunca mais apareceu. Acho que ele foi fazer o caminho de Santiago diretamente do banheiro da Polygram. Bom, como não tinha mais para fazer, inventei outro show de Alceu Valença em noite de au revoir porque me chamaram para França. Já que eu estava sem contrato, deixei alguém para arranjar contrato para mim, esse alguém ficou procurando e fui para França. Ligava dos telefones públicos quebrados e o cara dizia “rapaz ninguém te quer, tão dizendo que você é louco“. Sim, eu era o doido, fama de louco. Fiquei um ano em França onde gravei um disco chamado “Saudade de Pernambuco” e fiz poesia.

Foi bom, esse período francês?
Foi uma passagem maravilhosa. Depois de já não aguentar esse auto-exilio voltei, para o Brasil, para ser o que fosse. Voltei para o Recife. Um dia, surge uma nova gravadora no Brasil chamada Ariola e fui convidado para a Ariola. Com eles saiu meu primeiro disco – “Coração Bobo”. Vendeu 150 mil, depois outro com 150 mil, depois… 1 milhão com “Cavalo de Pau”.

Sucessos consecutivos…
Sim. Entretanto vou na Holanda, faço um disco e quando chego no Brasil, a minha gravadora queria que eu gravasse o que eles dissessem. Não aceitei. Tiraram-me da rádio, foram quatro anos em que silenciaram a minha música. Neste mesmo momento, que estava começando uma carreira na Europa e indo bem, resolvi voltar para o Brasil e segurar o meu trabalho, que tinha sucesso reconhecido. Segurei a carreira através de shows e embrenhei pelos sertões, pelos locais mais longínquos, conquistando plateias. Dai em diante fiz mais alguns discos, pulando sempre de gravadora em gravadora. Agora, tenho uma gravadora que é muito mais virtual, é n.º 1 no Brasil no formato de venda digital, é gente muito jovem e são os únicos produtores de vinis. Ali, eu gravo o que eu quero, tenho liberdade consentida, compartilhada e nota, eu nunca gravei o que não queria, por isso eu ia saltando, porque quis sempre liberdade.

Só a arte é útil. Crenças, exércitos, impérios, atitudes – tudo isso passa. Só a arte fica, por isso só a arte se vê, porque dura.” Fernado Pessoa. “Valencianas” é um novo corpo, de músicas já editadas, que duram no passar do tempo. Para se chegar aqui, a este sucesso, é preciso alguma espécie de fé, ou ela é passageira?
Não penso que seja passageira, nem no que fica ou no que é passageiro. A minha arte é o fruto de mim, não foi para ficar nem para poder não ficar. Foi para me poder expressar. Acho lindo o que Pessoa diz, mas não concordo. Tudo pode ou não durar, ser ou não passageiro.

Jorge Amado, nordestino como Alceu. “Mais difícil do que publicar um livro é escrever um bom livro.” Vendo o que era e é hoje o seu Brasil musical, o que sente que mudou radicalmente e o que ainda continua genuíno? 
Hoje, é muito fácil fazer um disco. Sem dúvida. Por causa da indústria do entretenimento, essa que não tem sentimento, só vê dinheiro. Você compôs uma música com um determinado ritmo e composição. Vem outro, vê que você fez sucesso e faz a mesma que a sua, mas com som mais aberto; depois vem outro que ouviu e faz outra pequena mudança, é sempre a mesma coisa, está complicado. O grande problema é o artista pensar em dinheiro. Artista, por amor de Deus, não pensa em dinheiro, por principio. O fundamental é a arte, não o dinheiro, fundamental é você fazer o que você quer. Se vendeu ou não… O meu disco “História da música Tropicana” era para ter 12 músicas, só fiz oito. O editor chamou ao escritório e disse “Alceu, você entregou com oito faixas e o pessoal do departamento comercial diz que tem que fazer mais quatro, porque o usual é 12”. Respondi – “disco está feito, é de oito musicas e não 12”. Fui embora. Vendeu 1 milhão e 500 mil discos.

Brasileiro apaixonado por Portugal, com uma formação académica clássica, uma cultura rica, músico, poeta, realizador… O homem que canta “7 Desejos” diga 7 desejos para o futuro.
Se não houvesse a colónia portuguesa, o Brasil não existiria do jeito que é. Se africano não tivesse ido para lá, não havia aquele Brasil de raiz africana. Se não houvesse toda a mistura, não seriamos este Brasil. Por isso temos de gostar de Portugal. Nós nascemos da mistura do português, da miscegenação do elemento português. Vamos aos desejos…
Livro para ler.
Um livro do meu tio Geraldo que deixou muitos livros, mas tem um que saiu, que musiquei um poema dele no meu “7 desejos” – “Junho”. Queria encontrar um livro dele e não encontro.
Música para quem.
Não preciso escrever. Primeiro, faço a música e deixo ela entrar ou agarro num poema, e não quero parceria. Eu admiro as pessoas, mas quero ser mais eu, como artista. Gosto da minha verdade, do jeito que faço as coisas.
Música para ouvir.
Queria reouvir, ao vivo, Ray Charles. Gosto mais de ver concertos que ouvir música, e vi o Ray Charles, no Rio de Janeiro. Foi marcante, incrível. Paco de Lucía, também gostava.
Uma lei para nascer.
Uma lei para que todas as pessoas, no mundo todo, tivessem uma educação digna, que crianças fossem protegidas para não passarem fome e que a cultura estivesse mais ao dispor.
Viagem para fazer.
Gosto de conhecer culturas que me são próximas. Há cantos neste mundo que não tenho a menor vontade de conhecer porque não tenho relação mais profunda, culturalmente.
Pessoa para conhecer.
Gostava de bater um papo com John Lennon.
Um desejo para o futuro.
Deixar de ser tão agoniado. Eu tenho duas pessoas dentro de mim, a que gosta de falar e outra que diz “Alceu você está falando demais, está querendo se mostrar”, porque no fundo, tem um menino dentro de mim que vence sempre o adulto. É dura esta luta do meu eu mais profundo e eu gostava de ficar sendo só o menino traquina que sou.

Deste encontro, fica a memória de uma conversa, ou melhor, de um bom bate-papo, com um músico cheio que tem tanto, mas tanto para contar. Genuinamente, Alceu Valença. Sons do Brasil, a (re)ouvir ou descobrir. •

+ Alceu Valença
© Fotografia: Sara Quaresma Capitão.

Partilhe com os seus amigos: