A Cruzada das Crianças (Vamos Mudar o Mundo) / Afonso Cruz

Uma multidão de crianças avança, disposta a mudar o mundo. De guichet em guichet – essa janela de vistas estreitas onde, para os adultos, tudo se resolve – as crianças, que tão bem sabem o que está mal, reclamam soluções à altura dos seus sonhos.

Arranca assim o mais recente livro de Afonso Cruz, A Cruzada das Crianças (Vamos Mudar o Mundo), com a chancela da Alfaguara, uma peça de teatro que dá o tom para a mobilização geral: crianças, na primeira linha, mas também pais, professores e todos quantos lhe sentirem o apelo.

Para o mundo propõe-se uma outra conformação: os mapas devem refletir uma geografia dos afetos, pelo que a menor distância entre dois pontos há-de ser um abraço (os avós agradecem); os super-heróis, feixes de músculos, querem-se mais de carne e osso; quatro quartos não chegam para um coração e seria desejável que os beijos, à semelhança dos micróbios, se disseminassem à escala global.

No universo do autor, o Pai Natal parece cada vez mais uma figura sem resgate. Num olhar cruzado com esse romance admirável que é Para Onde Vão os Guarda-Chuvas (2013) e, em particular, com a história ilustrada que o inaugura, significativamente intitulada «HISTÓRIA DE NATAL para crianças que já não acreditam no Pai Natal», comprova-se que a denúncia dos atropelos aos direitos das crianças e dos perversos mecanismos d’ O Capital (Pato Lógico, 2014) prossegue a bom ritmo. Seja através de uma visão sobre o Oriente, seja com o foco apontado a África, salta aos olhos que «o Pai Natal não chega a todos os lugares [..], há muito mundo que não aparece no mundo dele».

Nas suas inocentes, embora subversivas, investidas, as crianças usam da única arma que dominam e que tão bem lhes serve para surpreender “a contradição social”: a pergunta. Incrédulos atrás de um balcão, os adultos defendem-se como podem: ou encolhem os ombros, ou procuram o restabelecimento da ordem («Onde estão os vossos pais?») ou agarram-se à mesma resposta («Não funciona assim»), autêntica mensagem de erro gerada automaticamente pelo sistema. Ou então – e é aqui que espreita o perigo maior – sorriem, condescendentes.

Este livro de Afonso Cruz lança raízes na História, partindo de significativas, embora pouco documentadas referências à «Cruzada das Crianças». Teria sido esta uma cruzada popular, desencadeada em 1212, numa reação espontânea ao fracasso em que se tinham saldado as quatro cruzadas anteriores. Mais derrotados pela cobiça do que pelas armas dos muçulmanos, os cruzados “adultos”, porque corruptíveis, pareciam sair de cena e uma multidão de crianças, maioritariamente francesas e alemãs, a que se teriam juntado, além dos pais, muitos outros elementos das franjas sociais, partia rumo à Terra Santa, com a sua pureza ética como único estandarte. Mas a marcha dos inocentes haveria de resultar em tragédia: muitos conheceram a morte num naufrágio no Mediterrâneo e alguns sobreviventes aportaram ao Norte de África, onde foram vendidos como escravos.

Para a revisão histórica que empreende é doutra forma que esta Cruzada se documenta: com recortes de jornais que, mostrando como as crianças continuam a ser tratadas no cenário dos nossos dias, fazem prova dos erros que a História continua a cometer. As ilustrações, do próprio autor, amplificam a força contestatária daqueles a quem raramente é reconhecida voz.

É urgente substituir os espelhos por janelas. Os espelhos só nos refletem a nós mesmos, mas as janelas abrem para os outros. Esta a imagem, acima de todas poética, que o leitor grava dentro de si, como o puro reflexo da visão transparente que as crianças sempre têm e que os adultos – e em especial os políticos, que nunca enxergam as culpas próprias – convertem, progressivamente, em cegueira.

A felicidade pode e deve ser exigida. Sob pena de crescermos… e passarmos para trás do guichet.

56 páginas / € 12,90
+Alfaguara
© Fotografia: Isac Pinto

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