Final da tarde. Toca-se à campainha. Abre-se a primeira porta, passamos pelo átrio e é a vez de se abrir a segunda porta. Depois, é o sorriso que se abre. É um cumprimento esperado e caminha-se para o jardim, para conversar com Júlio Pomar.
Júlio Pomar no jardim da sua casa
O que é o quotidiano para Júlio Pomar: é mais o “Rifão Quotidiano” de Henrique Leiria “uma nêspera estava na cama deitada muito calada a ver o que acontece…” ou é o “Cotidiano” de Chico buarque: “todo dia eu só penso em poder parar; meio-dia eu só penso em dizer não, depois penso na vida pra levar e me calo com a boca de feijão”?
É tudo junto. É a incapacidade de o preenchermos, de estar completo… o não da rotina.
A que horas começa o seu quotidiano: às 00h00m ou não tem hora marcada? Começa quando o corpo quer e o espírito manda. É assim, concorda?
Sim, mas começa quase sempre cedo. Sem sono, claro, e sem cansaço acumulado. não há compromisso com a rotina, não gosto de sistemas impostos. O dia acontece…
Torneio, 2005, cálamo e tinta-da-china sobre papel, 21 x 49,5 cm
Sem o sótão, o atelier, o dia a dia perde o sentido, porque pinta todos os dias. Sem um lápis, um pedaço de papel, um tubo de tinta, uma tela… É um vício. Não há quotidiano sem vícios, ou há?
A rotina é quase inevitável, mas tem de existir nela, sem dúvida, um prazer misturado. Tudo pode ter tendência a uma obrigação esvaziada. Há que evitar isso e ver, aqui, o vício no bom sentido.
Hoje, o dia a dia, é como um traço livre que corre num papel ou como uma pincelada estudada e pensada numa tela? Ou sente que não é nada disto?
Os projectos devem manter-se abertos, prontos a receber o que se vai descobrindo e encontrando. Gosto muito do acaso e do que este traz de riqueza para o meu quotidiano. É como ouvir um poema no local, no tempo e na hora certa, por acaso.
Julgamento de Salomão (A mãe boa), 1993 caneta e marcador sobre papel vegetal, 29,7 x 42,2 cm
Pessoa, Cervantes, Poe, Camões… todos já alimentaram, num dia a dia, a arte do sótão de Júlio Pomar. Quem que lhe ofereceu o quotidiano menos banal?
Cervantes, é sempre Cervantes. Como bom português, que sou, nunca aprendi espanhol a sério, por causa da proximidade da língua. Por isso, vou sempre descobrindo novos pormenores, a cada nova leitura. É o incessante jogo da descoberta que Cervantes me oferece.
Nas suas obras há uns quantos bichos: tigres, cisnes, macacos, o gato das botas… o “The raven”, do Poe, ao lado do Pessoa. Qual destes tem o quotidiano mais invejável para si?
O cão! (risos) Porque o cão domesticado é quase aquilo que todos gostaríamos de ser. Sim, o cão, apesar de eu nunca ter tido cães.
Palhaço Violoncelista, 1987, marcador sobre papel vegetal, 90 x 74,5 cm
Um cigarro e um olhar sobre o tejo. Um café e um passeio por Saint-Germain-des-Prés. Um de dois quotidianos. Onde é mais Júlio Pomar?
Vou sempre acabar no tejo da minha Lisboa! Sou de Lisboa e quando vivi em Paris percebi melhor como era Lisboa e que prazer era descobrir, a cada dia a dia, a cidade. Lisboa é a minha casa!
Julgamento de Salomão (Soldado com bebé), 1993 marcador sobre papel vegetal, 42,2 x 29,7 cm
O quotidiano de Pomar é sempre mutante. Porque o olhar todos os dias muda, porque há sempre algo que se pode melhorar. Há aquele quadro, naquela série… É verdade?
Sim. Enquanto os quadros estão no sótão são passíveis de ser mudados, alterados… Só largo um quadro quando outro se impõe, mas o meu problema é não ter a certeza de quando é a hora de largar. Certeza tenho apenas quando um quadro sai de casa. Nunca mais olho para ele. Aí, ele fica terminado.
Atelier do Pintor Júlio Pomar
Numa entrevista dada a um jornal, Júlio Pomar diz que sempre que uma criança lhe pede um desenho (mesmo que instruída sabiamente pelos pais) nunca diz não. Se num dado quotidiano dois estranhos lhe pedissem dois desenhos, que lhes diria?
Penso que diria que sim, que fazia. Penso que seria uma forma de colocar uma pedra sobre o assunto. No entanto, tenho uma relação muito pessoal com o meu desenho…
Em jeito de “até já”, pois esta conversa já vai longa, em 84 (quotidi)anos… o que ainda falta ao quotidiano de Pomar?
Tudo! Só pode faltar tudo. Já desisti da viagem à Índia, mas não sou infeliz por isso. Falta-me tanto acaso para viver…
Atelier do Pintor Júlio Pomar
E depois do jardim e do sótão, com conversas soltas sem hora marcada, a segunda porta abre-se de novo, seguida de um adeus já com saudades. Passamos novamente pelo átrio e abrimos, por fim, a primeira porta…
+ Fundação Júlio Pomar .
© Fotografia: João Pedro Rato
Imagem de entrada: António Lobo Antunes, 2002, carvão sobre tela, 100 x 80 cm
Nota: entrevista publicada na Mutante 13 sob o tema “Quotidiano”.
Agradecemos ao Pintor Júlio Pomar e à Fundação Júlio Pomar a disponibilidade para a realização desta conversa.
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