Fernanda Lamelas / “A arquitetura é feita para o Homem”

O desenho e a geometria. Na folha de papel branca, a tinta preta define o traço das curvas e das linhas retas, ganhando a forma revelada com um gesto que denuncia o gosto pela arte de desenhar, até ao mais ínfimo detalhe. A estética e o enquadramento. Porque o belo retrata a vida no seu todo. Porque os espaços são concebidos para serem vividos e enquadrados milimetricamente na paisagem.

Fernanda Lamelas. Da Escola Superior de Belas Artes saiu com o canudo da arquitetura, destinado a um casamento perfeito com a arquitetura de interiores no universo da alta joalharia. O entendimento harmonioso com a vida preenchida por lugares reproduzidos a tinta preta na folha branca, e pintados com as tonalidades que perpetuam a realidade, bem ao estilo urban sketcher. Um vício de uma mulher que se sente mais agarrada à terra, como Oscar Niemeyer.
Porque a vida é importante.

O fascínio pela arquitetura despontou em que momento da sua vida?
Não sei se o fascínio foi pela arquitetura ou se foi pelo desenho, pela geometria… Tenho uma coleção de desenhos, que o meu pai guarda religiosamente, feitos com compassos, tira-linhas… Nas férias, comprava cadernos de exercícios e passava o tempo a colorir os desenhos… também a preto e branco. As imagens a preto e branco sempre me fascinaram. A minha essência está no desenho.

Quando terminou o curso, teve o privilégio de viajar até à cidade – ainda em construção – que se fez capital do Brasil, sob a batuta de Oscar Niemeyer. Foi a concretização de um sonho?
Assim que terminei o curso conheci um casal – ele, um amigo do meu marido, vivia, na altura, no Brasil. Recém-formada [em arquitetura], fui trabalhar dois meses para a cidade do Rio de Janeiro, no Brasil. Lembro-me que estava tanto calor, que o papel vegetal, no estirador, ficava cheio de bolhas por causa da humidade! Os termómetros ultrapassavam os 40 graus! Aproveitei para viajar. Conheci Petrópolis, Nova Friburgo e Brasília, a cidade que qualquer arquiteto deseja conhecer. Foi uma experiência muito forte! Ver Brasília, uma cidade de contrastes, com uma arquitetura moderna em contraposição com a terra vermelha… 1980 foi o ano marcado pelas minhas viagens.

Oscar Niemeyer, o génio do traço curvilíneo, ou Zaha Hadid, mestre da arquitetura contemporânea? São diferentes, mas visionários, futuristas até. Qual escolheria?
Zaha Hadid é fantástica, uma visionária. Mas acho que os espaços criados pela arquiteta iraniana, apesar de serem esteticamente muito bonitos, estão muito associados à era espacial; e eu sinto-me mais agarrada à terra. Como Oscar Niemeyer, que tem uma escala mais humana. Precisaria de entrar em espaços feitos por Zaha Hadid para conseguir perceber melhor o conceito. A arquitetura é feita para o Homem; deve ser concebida para ser vivida, para estar integrada com a envolvência arquitetónica já existente. Não é só por ser bonita que nos faz sentir bem.

Frank Lloyd Wright e a Casa da Cascata ou Le Corbusier e a Villa Turque?
Escolho a Villa Turque, de Corbusier, de inspiração turca, em La Chaux-de-Fonds, o berço da relojoaria suíça. A casa, construída após uma viagem de Corbusier pela Turquia foi, há mais de 20 anos, comprada pela Ebel. Andree Putman, recentemente falecida, pega nos apontamentos de Corbusier e consegue restaurar os interiores na perfeição. Até ao mínimo detalhe. Villa Turque passa a ser o centro de relações públicas da Ebel. Mas também gosto da Casa da Cascata!

“Preocupo-me com o detalhe, a estética, o rigor, a modernidade, o bem estar. Gosto de criar espaços onde as pessoas se sintam bem.”

A arquitetura é uma experiência de vida que emerge à vista de todos. É sinónimo de estética, de sensibilização para o detalhe. Ao desenvolver um projeto, sente necessidade de preencher que requisitos?
Preocupo-me com o detalhe, a estética, o rigor, a modernidade, o bem estar. Gosto de criar espaços onde as pessoas se sintam bem. Preocupo-me muito com o facto de como é que os espaços vão ser usados. Para isso, tenho de ouvir as pessoas, dialogar, interpretar o que pretendem e prestar o auxílio, no sentido de tomarem as direções corretas. Há que unir as restantes “ferramentas”, estabelecer objetivos, fazer o trabalho até à realização efetiva do produto. Não o faço para que fiquem bem apenas para a fotografia. Por exemplo, ao falarmos de arquitetura de interiores de joalharias, procuro criar um espaço que capte a atenção do lado de fora da loja e que, dentro da mesma, haja pontos de interesse definidos, com zonas diferentes para cada marca. É importante facilitar o acesso à visualização de uma jóia e ter em conta como se entra e como se percorre o interior de uma loja, como se é convidado a sentar-se, para que a pessoa entre pelo prazer de ver. Para tudo isto, é fundamental que haja capacidade de entendimento com as marcas, pois há um trabalho de análise e tomadas de decisão consoante a marca.

A especialização em arquitetura de interiores emergiu da paixão pelas jóias.
A arquitetura de interiores surgiu por casamento. Comecei a visitar a feira da Basileia em 1980 e, a partir de então, fiquei associada a marcas internacionais da alta joalharia. E nesse setor estou muito atualizada.

A lista de joalharias com o cunho da arquiteta de interiores Fernanda Lamelas ascende a mais de 50. Como é impossível falar de todas, quais as que destacaria?
Destaco a Relojoaria Marcolino, no Porto, e o desafio que foi pegar num edifício classificado e datado do início do século passado. Quando nasceu a Boutique dos Relógios, criei o conceito das primeiras lojas – no total foram 13 –, bem como o das primeiras oito da Stone by Stone. A Machado Joalheiros, joalheiro de excelência, na avenida da Boavista, no Porto, é um espaço que podia estar em qualquer grande capital do mundo. E a Joyeria Suiza, em Vigo que, inicialmente, era para ser uma loja com cerca de 90 m2 mas, com a minha determinação no papel de consultora, fiz com que fosse utilizado todo o espaço disponível e passar a ser uma loja com mais de 200 m2.

Com Espanha e Holanda na bagagem, os próximos destinos revelam-se promissores. Tenho perspetivas para a Alemanha, com contactos feitos com joalheiros alemães, a incrementar na feira de joalharia de Munique; para o Médio Oriente e, claro, em Portugal. Esta premente conquista da Europa é um excelente pretexto para rumar a outros destinos. São as viagens uma forma de tragar conhecimento e de investir no saber ou um bálsamo para si?
São ambas. E cada vez tenho mais a tendência para saborear as viagens, as diferenças. Mesmo quando se tratam de locais menos agradáveis, vejo-lhes beleza na diferença. Cada vez gosto mais de analisar detalhes que antes me passavam despercebidos. Detalhes que vêm deste meu vício de urban sketcher, com a perspetiva, o enquadramento… São um bálsamo e um absorver de tudo o que vejo e tudo que gosto, e uma fonte muito grande de aprendizagem.

“Cada vez gosto mais de analisar detalhes (…). Detalhes que vêm deste meu vício de urban sketcher.”

Viajar é, por outras palavras, uma via de inspiração para transpor paisagens, cidades, monumentos, bem como deleitosos repastos, para o desenho ao estilo urban sketcher, outra das suas paixões.
Urban sketcher é uma designação moderna para caderno de viagem. Lá está, a Villa Turque é uma reprodução dos desenhos do caderno de viagens de Corbusier. Este gosto tem crescido muito. É uma forma de estar, um pretexto para as pessoas se encontrarem!

Que lugares mais gostou de visitar até hoje e que despertaram momentos únicos?
O Gran Canyon. Foi uma das últimas viagens, mas que senti uma paz… É um local de culto, transcendental até, onde a preservação da natureza é única. Tocou-me muito. A Muralha da China. Mas também gosto muito de cidade, do bulício, de ver o comércio e as pessoas, do trânsito. Gostei de Hong Kong e de Nova Iorque. Sempre surpreendente! A escala, os arranha céus…

De fora para dentro, falemos de restaurantes e da boa comida, obrigatórios em cada lugar que merece a sua visita e sempre em boa companhia.
Outro dos meus – nossos – hobbies, como casal e em família, é conhecer os restaurantes pelo prazer da boa comida. Tanto pode ser um restaurante de três estrelas Michelin como o mais simples. E sempre que viajo tento ir a um restaurante novo. Tenho tido muito boas refeições, onde as pessoas são sempre muito importantes.

A vida é importante. A arquitetura não é. Até é bom saber as coisas da cultura, da pintura, da arte. Mas não é essencial. Essencial é o bom comportamento do homem diante da vida. Oscar Niemeyer
Acho uma frase fantástica, vinda de um homem com uma obra arquitetónica de grandiosidade tal e que consegue, ao mesmo tempo, tocar a simplicidade. Nós não somos nada. O fundamental são as vivências, o ser humano. Concordo plenamente com esta frase e acho bem que a arquitetura consiga ter esta simplicidade. •

+ Fernanda Lamelas
© Fotografia: Carlos Ramos