Uma hora de viagem de carro depois, sem que se desse tréguas às palavras, chegamos a Saint-Étienne. Berço da indústria das fitas de seda, das armas e das bicicletas. A ilustre vizinha de Firminy, sinónimo de património de tão célebre arquiteto, Le Corbusier. A única “ville” de França, e a segunda da Europa, a tornar-se membro da rede da UNESCO das cidades criativas, com a classificação de Cité du Design, atribuída em novembro de 2010.
A seda, as biclas e as armas
Reza a lenda que uma imperatriz chinesa descobriu a seda quando um casulo de um bicho da seda caiu na sua chávena enquanto tomava chá debaixo de uma amoreira. Reza a história que o fabrico da seda, fechado a sete chaves, foi desvendado pelos romanos, que enviaram dois homens à China, de onde levam dois casulos num pau de bambú para Roma… A metrópole torna-se, assim, a porta de entrada da seda na Europa. Eis o início de um novo percurso da seda refletido no espólio traduzido na primeira coleção mundial de fitas de seda no Museu da Arte e da Indústria que, em 2001, reabre as portas após uma intervenção assinada pelo arquiteto francês Jean-Michel Wilmotte, o qual contempla a evolução da produção de mui nobre acessório. Desde a criação artesanal, em casa, aos artefatos e mecanismos usados nas fábricas, como o jacquard, o tecido criado em homenagem a Joseph-Marie Jacquard, inventor do tear mecânico.
A visita prossegue, desta vez, sobre duas rodas ou não fosse Saint-Étienne a cidade francesa onde foi fabricada a primeira bicicleta. A exposição, organizada no piso subterrâneo do edifício, centra-se no alinhamento de constante evolução, desde o monociclo ao velocípede e à bicicleta atual, com a grand bi e o cavaleiro em destaque, apesar das quedas e dos passeios atribulados que protagonizaram outrora… E termina na sala das armas de caça, ornamentadas ao gosto da nobreza e da realeza, e de guerra, fabricadas na cidade.
A Firminy de Le Corbusier
Na vizinha Firminy sobrepõem-se os traços da acrópole de Atenas, composta por casa da cultura (Espaço Le Corbusier), estádio, igreja e piscinas, visíveis do terraço da unidade de habitação da cidade, conceito demarcado pelo traço do arquiteto, urbanista e pintor franco-suíço Le Corbusier. Um visionário na conceção do conceito de habitação social, que implementa as linhas decisivas da arquitetura moderna, retilíneas, depuradas… numa construção feita em betão armado, sustentada em pilares, com uma fachada horizontal, erguida sob orientação este/oeste, onde as varandas ostentam o vermelho, ora na parede, ora no teto.
Firminy-Vert foi a última unité d’habitacion de Le Corbusier, inaugurada em 1967, isto é, 15 anos após a primeira, esta em Marselha, em 1952. Das três unidades projetadas para Firminy, apenas uma foi erigida e habitada, no presente, por cerca de dez por cento da população da cidade.
Assente em três pilares fundamentais do pensamento do arquiteto – sol, espaço e verde –, o monumental edifício de 33 pisos, todos diferentes, ostenta só uma porta de acesso, para que os vizinhos se conhecessem. Os corredores largos e compridos são identificados, assemelhando-se às ruas das cidades, onde as portas contemplam as cores primárias: vermelho, verde, azul e amarelo. De ambos os lados, estão os apartamentos dúplex decorados com peças de mobiliário desenhadas por Le Corbusier.
À entrada, atrás da porta, há uma caixa com uma porta para o exterior onde, há décadas, era colocado o jornal do dia, o pão e o correio, uma ideia que caiu em desuso… Em frente, o open space soalheiro, composto por kitchnet e sala de estar, com uma janela imensa a rasgar a parede, desenhadas com base no seu modulor. A escada de acesso ao andar de cima foi pensada ao mínimo detalhe, com dois corrimões, um para adultos, e outro para crianças, e cujos degraus apresentam um rasgo no meio para que os bebés possam gatinhar até ao piso superior sem dificuldade. Em cima, a mezzanine acolhe o quarto de casal, com entrada para a casa de banho e acesso ao corredor para os quartos das crianças, dividido por uma porta de correr que, de ambos os lados, é decorada por um quadro de ardósia, em jeito de desafio à imaginação dos mais novos.
No último piso do interior do edifício, o jardim escola, agora entregue ao silêncio, manteve as portas abertas entre 1968 e 1988. Com uma entrada ampla, decorada com uma fonte, reservada ao recreio em dias de mau tempo, o espaço destinado ao ensino dos mais novos mantém as linhas de Le Corbusier, com pequenas janelas que ostentam as cores preferidas do autor, as quais pintam o chão de tonalidade subtis em dias de sol; pequenos recintos de trabalho para os mais novos; e salas de aula equipadas por sistemas de aquecimento sustentados por pedras retangulares e onde os quadros de ardósia se encontram nas portas de correr, para dividir as divisões destinadas à aprendizagem.
No cimo, o terraço, para os dias de bom tempo, a piscina e o anfiteatro, dois núcleos destinados ao lazer e à cultura. Já no centro cívico, a curiosidade volta-se para a igreja de São Pedro, inaugurada a 25 de novembro de 2006, após um longo período de interregno, e apesar dos esquiços com a assinatura de Corbusier datarem de 1962. O acesso é feito por uma rampa exterior em forma espiral, que converte o local de culto da religião católica numa inusitada pirâmide. Inspirado num anfiteatro com janelas horizontais, de onde sobressaem o verde, o azul e o amarelo, presença constante no trabalho de Le Corbusier.
De fábrica de armas a plataforma de design
No coração de Saint-Étienne, outrora um recinto fechado e rodeado por muros altos e três imperiosos portões, a antiga fábrica de armas converte-se, no presente, na “Cité du Design”. A plataforma de investigação, experimentação e criação em ateliers destinados às várias vertentes do design que, hoje, abrange um enorme quarteirão, onde o ofício do design sustenta a criatividade e a inovação apresentadas na Bienal Internacional de Design de Saint-Étienne cuja primeira edição, promovida, em 1998, pela Escola Superior de Arte e Design de Saint-Étienne, impulsionou a conceção da Cidade do Design.
Em suma, suprime-se grande parte do mural e dá-se vida ao projeto assinado pelos arquitetos Finn Geipel & Giulia Andi da agência LIN. O resultado confere a renovação de edifícios, com destaque para o La Platine, nome atribuído em homenagem à platina, matéria prima usada no fabrico de armas, o qual invade um enorme espaço em frente ao portão principal. Dividido em cinco parte, alberga a biblioteca, duas salas de exposições – numa das quais esteva a exposição da Bienal Internacional de Design de 2013, a qual visitámos –, a mediateca, uma oficina de design e o restaurante La Platine, que recomendamos! Mas já lá vamos… Sem esquecer a livraria, nem a Torre de Observação de 32 metros de altura, que promete uma vista única sobre a cidade e as colinas que a rodeiam num olhar atento a 360°; nem as oficinas que ostentam gigantescas janelas de vidro, através do qual se vislumbram os alunos a porem em prática o seu trabalho.
Arte no museu…
Quem procura as tendências da arte encontra-as no Museu de Arte Moderna , detentor de uma coleção considerada uma das mais importantes de França, e onde esteve patente a excelente mostra intitulada “Charlotte Perriand et le Japon”. A designer francesa que privou com Le Corbusier e Pierre Jeannerett, relação de amizade que gera o trio Le Corbusier–Jeannerett–Perriand, da qual resulta a criação da icónica chaise longue basculante, e demais peças de mobiliário. O percurso de Charlotte Perriand, que integrou o Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, presidido pelo arquiteto franco-suíço, travando conhecimento com os pintores espanhóis Juan Miró e Pablo Picasso e com Jean Prouvé, fez-se acompanhar, ao longo da mostra, por documentos escritos, fotografias de arquivo e da exposição de Perriand em Tóquio, bem como pelo mobiliário usado nas reproduções cénicas de interiores, como o jardim zen das casas nipónicas, com especial destaque para os objetos em bambu criados pela designer, que visita o Japão por ocasião da II Guerra Mundial. De regresso a Paris, integra a equipa de Corbusier, encarregada de projetar, por exemplo, a arquitetura de interiores e o equipamento das salas comuns, do refeitório e dos quartos da Residência Universitária de Antony ou dos espaços coletivos da Cidade Universitária de Paris, ao lado de Corbusier e do urbanista Lúcio Costa, que reencontra, mais tarde, numa das suas viagens ao Brasil, onde conhece Oscar Niemeyer e Maria Elisa Costa, filha de Lúcio Costa.
… e à mesa
De novo pelas ruas, o roteiro pela cidade contempla a passagem pelo majestoso Zénith, assinado pelo arquiteto britânico Norman Foster; a Ïlot Grüner, de Manuelle Gautrand, um enorme edifício amarelo, cravejado de pequenas janelas desalinhadas entre si, dentro da linguagem interpretada pela arquitetura do edifício; e a estação Châteaucreux. Pelas ruas, as esculturas interagem com o espaço público, não passando mesmo despercebidas.
E porque as palavras alimentam a alma, há que dar alento ao palato. Até porque a gastronomia também é arte. Sugestões? O La Platine, na Cité du Design, com uma cozinha criativa e inovadora, em resposta ao desafio apresentado aos jovens designers, sem que o sabor ficasse, de todo, esquecido, servida num ambiente minimal e ecológico. Ou o Mon Jardin Secret, próximo do Museu da Arte e da Indústria, o qual, em 2011, venceu o concurso “Comércio e Design”. Distinção merecida. Afinal, o kitsh e o romantismo cénico espelha a sensibilidade feminina numa sala de jantar à antiga, com um imensa biblioteca clássica ao fundo, e um terraço com um jardim aromático, onde apetece preguiçar… e, claro, degustar um repasto confecionado com imaginação. Ou, porque não, o L’Absinthe Café, em Saint-Étienne, com arte assinada num repasto tentador, convertido num mimo, para rematar.
Só mais uma recomendação: a Weiss . Uma encantadora boutique de chocolates, onde a imaginação ultrapassa o limite da tentação. O fundador é Eugene Weiss, fabricante de chocolate proveniente da Alsácia que, em 1892 abriu a primeira loja; em 1907, inaugura a fábrica de produção de chocolate em Saint-Étienne; e em 1965 expande a marca para Lyon e Paris.
Ao fim do dia, o descanso merecido no La Belle Etoille, uma guest-house composta dois quartos recuperados num antigo prédio da cidade, convertida num sonho… e a viagem prossegue no regresso a Saint-Étienne. •