Paradoxo. Ocorre-me, subitamente: desconchavo. Depois, por extensão: facto incrível. No fim: opinião contrária à comum. No encalço do significado final, coloco phones e carrego play, às cegas. “Drunken Sailors & Happy Pirates”, a Jigsaw. Pura ordem alfabética? O diabo faz das suas.
Música. O som ia ser a minha efeméride paradoxal. Com imaginação sem peias, sigo para dimensão paralela e troco sons, baralho a visão, ou não. Crio um universo visual de sons selados e sons trocados. Na ficção tudo pode ser verdade, mas só o empirismo atesta paradigmas e “ah, memória, inimiga mortal do meu repouso!”, dizia Cervantes. No sossego da divagação relembro Flor, de musical Pensão. Feito. Tenho uma ideia, duas vítimas, despeço-me do dia abraçando a noite, esperanto de ambas. Com o diabo no rasto, viajo entre dimensão paralela e realidade: músico folk com guitarra de Coimbra, músico da guitarra de Coimbra com banjo, e o inverso. João Rui (JR), entoa inglês com rouquidão demarcada, ad hoc digo que é D.O.C., é Jigsaw e o banjo. Tiago Almeida (TA), tem a solo a melodia da cidade transformada, na Pensão o travo de Lisboa, é guitarra. Juntas as vítimas, que se tente a inversão!
Falando de cordas alheias.
JR: Sendo de Coimbra é natural que, a dado momento, ouças o som da guitarra algures. Som muito bonito. nunca me tinha debruçado sobre ele até descobrir Carlos Paredes, o instrumento levado a um virtuosismo incrível, ao ouvi-lo fiquei boquiaberto, rendido. Nas mãos de Paredes vejo como um instrumento sublime, aumentou-lhe a capacidade de forma ímpar.
TA: Adoro o som! A referência que tenho é de um período da pop-rock em que se foi buscar muito o banjo, é a única. Não tenho rigorosamente nada a acrescentar. Fora isto, não acompanhei nada, zero de banjo.
Penso: vai findar em desconchavo.
Especificidade do som trocado. Emoção ou técnica. Divagar.
JR: Gosto muito do som e, lá está, a forma como Paredes gravou permite-lhe outra compreensão. Quando usado no Fado de Coimbra, tem o seu quê, mas não chega àquele grau virtuoso. Está a servir a canção, com mais a acontecer, o som acaba por ser diferente, mas ai também teríamos de dividir a questão entre guitarra de Coimbra e guitarra de Coimbra de Paredes. O som é extremamente melódico, o facto de estar afinada um tom abaixo torna-o mais quente.
TA: Som do banjo. Ele está em vantagem!
Se quiseres o João toca.
JR: Sim, toco e vais falando.
TA: Boa ideia, toca! Tenho aquele imaginário John Wayne. Falas em banjo e imagino John Wayne em “A Velha Raposa”, uma banda de saloon, guitarras e harmónica. O banjo remete-me para esse imaginário.
JR: É natural, muitos filmes western têm o banjo.
Peço rum? Henrique fotografa. Bem-vindo, Paradoxo.
Posturas. Tiago, curvas-te e enamoras as cordas. João, um estar Nureyev a dançar com cordas. Dedilhando.
TA: Quando toco envolvo-me, completamente, com a guitarra. Há muita emoção onde as melodias te levam e, inconscientemente, acabas por dar intensidade ao teu corpo, acompanhando o que tocas. Se te envolveres mais, melhor. Há uma relação íntima com a guitarra e a sua forma permite-o.
JR: O banjo não consegue abordagem tão clássica. Tem origens tão antigas, passaram por tanto e vários tipos de banjo. Até este banjo bluegrass, há com o braço mais comprido, outras formas em baixo… na guitarra de Coimbra não há isto. Na postura é complicado ir para cima do banjo, não permite que te debruces. Não há distanciamento, mas técnicas que impedem, independentemente de, ao tocares, sentires o instrumento.
E eu noto, na fotografia que vos troco sons, a postura que têm com as cordas, não muda. E esta hein? Será do instrumento ou de vós? Um dia falamos.
Cenários no breu da noite. Pequenas salas. Anfiteatros. Silêncio para o som.
JR: Tanto o som do banjo como da guitarra, inserindo na música que fazemos, é natural que, além do espaço, instrumentos e como os usamos, a noite, a solidão e acima de tudo o silêncio, ajudam. São veículo para o que queremos transmitir. Assim compomos músicas. Logo, quando tocamos num anfiteatro ou pequenas salas, onde há o silêncio, são espaços perfeitos, os instrumentos vivem melhor. Estamos a falar de instrumentos acústicos que, além do som que ouves, tem o próprio som do instrumento. No banjo, e guitarra de Coimbra de certeza, ouves o próprio instrumento e em salas silenciosas consegues ouvir esse som. Fazer esse tipo de concertos, sem microfones, ouvindo o som puro do instrumento, é do melhor. São raras as ocasiões, mas bonitas. Eis porque gosto desses cenários e, creio, que o Tiago também, são propícios a este tipo de música.
TA: Sim! E a noite faz parte de nós. A solidão e o silêncio, como disse o João, fazem parte do método de composição. Eu não componho de dia, não sei compor à luz do dia, é demasiada luz e depois tenho queda para melodrama, abatimento, desejo, paixão, sensualidade… a noite torna-se inerente.
Earl Scruggs. Carlos Paredes. Referências que são o próprio instrumento. Uma palavra.
JR: Scruggs é único! Nada mais posso acrescentar além disso, toca que nem um diabo. O que o caracteriza é ser, apenas e só, único.
TA: Menino! Ele arranjou uma nova linguagem para a guitarra de Coimbra e, quando descobriu que podia ser tudo diferente, imagino-o fascinado, como um miúdo quando recebe Legos novos, a fazer mil construções com as mesma peças.
Ambos folk, sentido literal. Cordas nunca cruzadas. Porquê?
TA: Porque não calhou. O que não quer dizer que no futuro…
JR: Sim, não calhou. Há anos, na descoberta de instrumentos, com o Jorri, raptámos uma guitarra de Coimbra, mas havia problema na afinação. Não pude mexer muito. Talvez, se tivesse sido diferente, teríamos usado a guitarra. Nos Jigsaw, quando temos um instrumento novo gostamos de lhe encontrar a nossa linguagem. Um pouco como o Tiago, que não toca no sentido tradicional, aproveitando a riqueza harmónica. Não tive tempo suficiente para encontrar uma canção na guitarra. Não voltamos a tentar, para já.
O fim. Uma música Jigsaw para levar travo de guitarra de Coimbra. Uma música Pensão Flor para balançar com som do banjo.
JR: Hoje, nenhuma. Até podia encaixar, mas para nós, no momento em que criamos, a canção tem de pedir o instrumento e nenhuma pediu guitarra de Coimbra. Não descarto a hipótese, mas tem que ser pensada para tal. Quando componho a parte de guitarras, banjos… vou decidindo o instrumento que entra, tem de haver aquele espaço, ali na composição, definido na raiz. Se tiver a compor de propósito é diferente, se tiver a pensar só no arsenal que temos, torna-se complicado.
TA: Há músicas novas onde talvez, ainda há o espaço da indefinição. Das editadas, porventura, em “Não Sei Nada Sobre o Amor” fizesse sentido. Tem um ritmo onde poderia entrar o som do banjo.
O folk falou de guitarra, mas com banjo na alma. A guitarra foi ao banjo, mas 12 eram as cordas na voz. E o significado de paradoxo? É opinião contrária à comum, dizer que este facto incrível, da guitarra ser indie e o banjo português, é um desconchavo!
© Fotografia: Henrique Patrício.
Convidados: João Rui, a Jigsaw & Tiago Curado Almeida, Pensão Flor .
Espaço: Galeria Santa Clara , Coimbra.