Camisola Poveira

Eu gostava de ter uma camisola de malha feita em lã poveira. Vivo muito perto do mar, onde há vento e frio, muito frio no inverno.

Uma peça de roupa confortável, bonita e que dure muitos anos é ter um valor garantido no roupeiro. A Camisola Poveira é isso tudo.

Não é fácil encontrar lã poveira, aquela que é de fio grosso, com cheiro a ovelha, de branco leite, a verdadeira. Procurar por ela nas lojas onde habitualmente compro lãs foi uma autêntica caça ao tesouro, mas acabei por encontrar umas meadas, numa lojinha de vila, que não é retrosaria, mas que vende rendas, panos da louça para costumizar, meias feitas por medida, tecidos, lãs e outras coisas que os fornecedores de passamanarias vão deixando. Comprei o suficiente para fazer uma camisola de tamanho médio, já que é para vestir por cima de mais uma camada de roupa.

Conhecer a Camisola Poveira é compreender o processo de transformação, a origem dos materiais e a relação que existe com as pessoas. 

Fui à Póvoa do Varzim. Foi meio caminho para meter as mãos na massa, ou no caso, pôr mãos nas agulhas e tricotar, o resto do caminho foi feito a admirar a história, com momentos felizes e outros menos felizes, uma história de homens. Ao longo dos anos registam-se momentos, os menos felizes, com uma tragédia no mar, em 1892. Os poveiros decretaram luto e o preto impôs-se durante muitos anos. Arrumaram-se as camisolas brancas no fundo da gaveta, até à década de 40, quando houve vontade de a “trazer de volta”. 

A Camisola Poveira era feita em Azurara (Vila do Conde) na primeira metade do século XIX. Mais tarde é que passou a ser produzida na Póvoa do Varzim, pela comunidade piscatória. Hoje poucas pessoas se dedicam a produzir, a não ser que tenham encomendas e essas normalmente destinam-se em grande parte ao turismo. Os pescadores vestiam um tipo caraterístico de camisola de malha branca, com desenhos, com a função de proteção térmica e de identificação. A caraterização formal é simples: um retângulo de malha que assenta no tronco sem ser justo, com mangas e com decote próximo do pescoço. Afinal, o conforto também tem de dar espaço aos movimentos próprios da faina. A lã é tricotada e depois decorada com bordados a ponto de cruz. Os desenhos são bordados a fio vermelho ou preto e são dispostos simetricamente a um desenho central, no tronco. A temática serve a vida no mar, simplificando os bordados a ícones, a representações simbólicas, nunca esquecendo a obrigação de ter as siglas poveiras – fórmula gráfica mais ou menos figurativa que regista a propriedade, o brazão de família, o parentesco – em cada camisola. As siglas são traços, linhas, é um sistema de comunicação visual simples usado pela comunidade piscatória e que fazem parte das suas vidas, sejam eles barcos, barracas de praia ou outros pertences. A propósito destas siglas, terão os novos logos hipster sacado daqui a onda das flechas e dos traços paralelos?

A minha camisola ficou pronta. 

Ainda não é Natal, mas com a camisola vestida já parece: os dias ficam maiores, melhoram e um novo ano volta.

Até para o ano.

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