Paradoxo do amor

Ainda se lembra do hálito podre; dos olhos selvagens que a olhavam sem a ver; dos maus cheiros, dos cheiros estranhos, do cheiro a sexo; do cheiro animal. Não era por dinheiro – era pelo dinheiro. Era pelo ter que ser, e por não conseguir que fosse de outra maneira. Por que a obrigaram – não sabe se um deus, diabo ou pessoa – ou porque o destino existe e caprichosamente assim quis.
Tem-no nas mãos, nos braços, no regaço. A noite está fria, gelada como nunca esteve. Mas ele continua quente, imensamente quente, que lhe contraste e fere o corpo. Ela fria, ele quente, encaixam-se como só o amor permite.
Ela sofre, como sempre sofreu e nunca ninguém entendeu. Deixou de querer explicar. Deixou de tentar explicar ou perceber. Ou então já não sofre, pois para ter consciência disso, precisava de o comparar com algo bom que já não sente.
Só o tem a ele. O amor deles que é um só e inseparável. Era ainda muito jovem quando ele nasceu. Ainda é, mas sente-se velha e cansada. Poucos anos de vida, foram centenas de anos de sofrimento, milhares de rostos e corpos. Milhões de feridas que incidem noutras já abertas, que nunca sararam e deixaram de o ser.

Enquanto crescia foi morrendo a cada dia que passava. Crescia por fora, morria por dentro. Mataram-lhe os sonhos, os aniversários. Mataram-lhe o natal.
Nunca soube muito de nada, era melhor não pensar. Mas havia nela uma certeza: não queria passar por tudo aquilo novamente. E se o seu filho passasse, seria ainda pior. Não deixaria que alguém ou algo lhe fizessem mal. Que o magoassem. Apenas com dois anos, sentia que ele já sofria com ela… e porque o amor é capaz de tudo, mesmo tudo, ela iria salvá-lo custasse o que custasse. Salvá-lo do mundo, essa noite.
A noite estava gelada, mesmo muito fria, mas já não fazia mal. Ficaria tudo bem.

*Na madrugada de sábado, dia 2 de novembro de 2013, uma jovem mãe caiu do sexto andar de um prédio na cidade de Braga, com o filho de dois anos ao colo.
Dizem que se suicidou.

> Ilustração: Rosa Feijão