A Festa da Tradição, da Folia e do Brulhão encheu a aldeia de Vales do Rio de apreciadores da tradição à mesa e de forasteiros, rendidos aos sabores da terra que os acolheu por um fim de semana em cheio. Sejam bem-vindos ao FestiVales!
Em janeiro de 2010, a Associação Amigos dos Bombos desafiou os seus conterrâneos a celebrar o valor do brulhão na gastronomia beirã, iguaria tão apreciada pelas gentes da terra. Desde então, os festejos continuam, ano após ano, num FestiVales dedicado às memórias da gastronomia beirã, que marcaram 2014 com um evento de dois dias, 17 e 18 de maio, reservados à tradição, à folia e ao brulhão, em Vales do Rio, na Covilhã.
“É a festa mais importante da aldeia”, diz João Paulo Vaz, um dos membros da organização, que acatou a ideia de fazer um evento na freguesia “com um produto nosso, porque não é muito conhecido e, muitas vezes, confundido com o maranho” (este é recheado com carne de caprinos ou de ovinos e produtos fumados, arroz e ervas aromáticas, sobretudo hortelã, outra das receitas das Beiras).
No futuro, a aposta assenta num centro interpretativo do brulhão “na antiga pré-escola”, onde serão feitos jantares com o produto estrela “através de marcação”. A solicitação do edifício está feita, pelo que agora resta esperar pela resposta.
A receita está na mesa
Outrora confecionado em dia de santo António, o padroeiro de Vales do Rio, e em festividades religiosas tidas como mais importantes, o típico brulhão era feito com carnes de porco da salgadeira ou de fumeiro, arroz e serpão (tomilho endógeno do norte e centro do país) misturados e colocados no estômago da cabra, previamente lavado com cal nas águas do rio, “desinfetados” com aguardente e cozinhados.
Um legado da história de Vales do Rio e da gastronomia portuguesa, fiel às origens, apesar de, hoje, ser confecionado com “carne fresca”, mas “sempre com serpão”, tal como o brulhão posto à prova no FestiVales. “A receita que aqui seguimos é a original”, garante João Paulo Vaz.
Vamos por partes. A limpeza do estômago da cabra começou em fevereiro deste ano ano, no Centro Social local, ritual que se repetiu todas as sextas feiras, em Vales do Rio, “com a colaboração de 20, 30 mulheres”. Uma semana antes da festa, as carnes foram preparadas e os estômagos das cabras cosidos à mão, com linha, deixando um orifício. A iguaria foi preparada um dia antes do início do FestiVales e o orifício cosido.
Às 7 horas da manhã de sábado, os brulhões foram cozinhados (colocados em água a ferver, mas só estão prontos a servir uma hora depois de a mesma voltar a ferver). Contas feitas, “dá uma tonelada e meia para este fim de semana”, medida de peso intrínseca ao espírito da tradição, apoiada por Alexandre Silva, chef do restaurante Bica do Sapato, em Lisboa, e o embaixador do evento deste ano. “Um chef novo, perfeito para dar outra dinâmica ao brulhão e por ser português”, afirma João Paulo Vaz.
Chef Alexandre Silva, o embaixador do evento
“Gostei da humildade das pessoas ao passarem a sabedoria.” As palavras são de Alexandre Silva, que é da opinião de que o brulhão “não deve ser mudado. São demasiados anos de sabedoria para se desvirtuar”, pois “não é só um prato, é um produto”. Um produto fruto da tradição acompanhado por “uma guarnição com mais acidez” para contrastar com o sabor da iguaria beirã como, por exemplo, “os pickles, quando trabalhados de uma forma adequada” ou “os sabores do campo, como a beterraba”, ou “o quinto sabor, o umami”, o qual, “faz com que o sabor do brulhão sobressaia”.
Faça-se o teste. O chef prepara-se para cortar o brulhão, numa espécie de ritual em homenagem ao produto da terra. Em redor, as mulheres aguardam pelo corte do chef. “Pode cortar como quiser”, ouve-se. No fim, o público feminino é unânime: “Está aprovado!”
À hora do almoço o repasto estava pronto, acompanhado por uma salada fresca, broa de milho e pão da aldeia, e onde não faltaram o arroz doce nem as papas de carolo de milho. Um menu que fez as delícias de múdos e graúdos. Porém, alternativas não faltaram, como o porco assado no espeto ou a feijoada.
O repasto e a folia num par de dias
A animação marcou passo ao longo de dois dias de festa em Vales do Rio, onde a folia das ruas coube aos sons propagados pelo rufar dos bombos acompanhados por gaitas de foles, e pelo grupo de músicos que em muito fez recordar a banda de Emir Kusturica, sem esquecer os mimos, que arrancaram gargalhadas a quem é abençoado pelo bom humor. Os jogos tradicionais também marcaram presença pelas mãos da Associação de Jogos Tradicionais da Guarda, que deram a conhecer as atividades lúdicas de outros tempos e fizeram as delícias dos mais novos.
O saber fazer de outros tempos
Para o fim ficou a cereja no topo do bolo. Uma conversa amena com Maria Joaquina Santos, de 92 anos, a mais antiga e dona do saber fazer o brulhão, como manda a tradição. “Quando a minha mãe começou a fazer era eu criança” e, aos 16 anos, Maria Joaquina iniciou a proeza, até aos nossos dias. “Dá muito trabalho, porque é preciso lavar as peles em água e deixar no frigorífico em aguardente. Depois de tudo preparado e cosido com linha, há que pô-los a cozer”, conta, mas “não se pode encher muito”, adverte, recordando os velhos tempos, em que o brulhão era confecionado pela festa de santo António e pelo Natal, época festiva do ano em que ainda mantém a tradição à mesa. “A carne é arranjada, coloco a chouriça aos pedaços, o serpão e o sal” e a cozedura é feita “em água a ferver, sal e uma chouriça”. Bom apetite! •
© Fotografia: João Pedro Rato com Canon PowerShot G16