“A minha cozinha é uma cozinha irrequieta” / chef Leonel Pereira

O dom de cozinheiro trocou-lhe as voltas há 28 anos. No litoral algarvio onde, de uma relação mantida em segredo, surge uma cumplicidade ímpar, o desejo de aprender mais, determinação que o leva a viajar além fronteiras, além mar. Numa busca insaciável da sabedoria em torno de uma cozinha inovadora e surpreendente, dotada de sabores fortes, agraciada pela definição “tecno”, traduzida numa aprendizagem diária de um génio, um experiementalista que vê na sua paixão um eterno desafio. Assim é Leonel Pereira, o chef do restaurante São Gabriel, em Almancil.

O sonho de trabalhar no litoral algarvio é concretizado quando, há 28 anos, parte de malas feitas de Martinlongo, onde nasceu há 44, no concelho de Alcoutim, para um hotel em Vilamoura, onde a suposta vaga de barman o aguardava.
A vaga de barman estava preenchida, por isso, fui para a cozinha. Estavámos em 1986/87. Detestei. Cai num “calabouço” com gente ignorante… estava à espera do dia para sair e por cada dia que passava odiava cada vez mais a cozinha. Chega uma nova equipa ao hotel, com alunos recém-formados, junto dos quais começo a perceber que já não sentia vergonha de dizer que era cozinheiro. Dá-se, então, o ponto de viragem e inicia-se uma relação de amor-ódio com a cozinha. Adorava o que fazia cada vez mais. E, a cada dia que passava, queria estudar mais, viajar. Tive de fortalecer muito o meu francês, por causa da bibliografia, que era toda em língua francesa. Queria estagiar em França.

E queria dar azo à imaginação.
Via na profissão uma possibilidade de aguçar a minha criatividade, porque a possibilidade de ser criativo existia, mas as pessoas queriam cozinhar apenas o que estava escrito nos livros de há 20, 30 ou 40 anos, além de que não deixavam criar nada. Não consegui criar pratos nos primeiros quatro anos até que há uma mudança do primeiro para o segundo hotel, na Quinta do Lago, com um chef francês, onde a nouvelle cuisine foi implantada em Portugal, penso eu, a cem por cento. A partir de então apercebi-me que estava apaixonado pelo que fazia. Não seguíamos as receitas do livro, seguíamos, isso sim, a loucura do chef. Estávamos em 1989/90.

“Para ser chef executivo de grandes hotéis é preciso estudar as áreas inerentes à cozinha.”

A formação nas mais célebres escolas do mundo da cozinha prende-se com a realidade.
Seguiram-se várias formações em França – o Centro de Formação Alain Ducasse, Lenôtre, Le Cordon Blue… Creio que estudei nas quatro escolas mais famosas do mundo. Eu exijo muito, além ser mesmo o chef português com mais formação em França, para a qual foi preciso fazer um grande investimento – os cursos eram mais caros na altura do que agora, por módulo. Continuei a estudar paralelamente a outros projetos e, muito rapidamente, apercebi-me que o que eu queria ser era um grande cozinheiro e um dia ser chef executivo de um hotel de grandes dimensões – até este restaurante [São Gabriel] está nos meus planos, quando há 20 anos disse que vinha para um destes por volta dos 40. Mas para ser chef executivo de grandes hotéis é preciso estudar as áreas inerentes à cozinha – de recursos humanos, de gestão hoteleira, de marketing, de vendas – e falar algumas línguas, como o inglês e o francês. Por isso, pergunto sempre às minhas equipas ‘querem ser chefs de quê? de um restaurante, de um hotel de cinco estrelas, de uma cadeia internacional? querem ser chefs executivos ou chefs corporativos?’ É aqui que entra a definição de cozinheiro, que fica muitas vezes fica esquecida. Estou quase numa fase de não assinar chef pela banalização da palavra. Começo a assinar, a maioria das vezes, Leonel Pereira cozinheiro/chef.

A aquisição de conhecimentos é parte integrante do dia a dia de Leonel Pereira.
Há poucos dias escrevi um texto no facebook, a propósito dos meus 28 anos de carreira. Leram? Muitos deveriam ler. Falo da viagem de 1 de maio com poucas certezas e muitas dúvidas. A verdade é que continuo com poucas certezas e muitas dúvidas. Sou um produto académico. Tenho estudado tanto na minha vida e tantas áreas inerentes à cozinha, para a entender, que continuo a ter dúvidas. Ou seja, quanto mais avanço, mais dúvidas surgem, o que significa que tenho muito espaço no disco para aprender muito mais. A formação tem de ser permanente.

“Quanto mais sabemos, melhor para nós.”

As áreas em estudo são díspares.
Hoje o que preocupa mais é a literatura à volta da gastronomia, a qual nos ajuda a entender como era a cozinha nessa altura, leio livros da área científica, escritos por nutriocionistas, por químicos… Quanto mais sabemos, melhor para nós. Para enriquecer a minha equipa e quem come à minha mesa. Se me preocupo em escrever um livro, não me preocupo, porque se o fizer faço-o parecido com os que eu critico, por isso não vou fazer igual. Para fazer o livro que eu quero não tenho quem o agarre, portanto não é a melhor altura para o fazer e os projetos que apresentei não têm interesse. O que faço, faço-o à minha maneira.

Questiona a cozinha. Procura revolucioná-la.
Tento revolucionar a cozinha, mas fico sempre na dúvida. Nada que eu faço sinto que está perfeito. Tudo o que crio, coloco na carta, mas tem de estar, na minha opinião, imperfeito, porque tem de ter caminho para continuar, tem de haver vida para além desta carta, porque gosto de experimentar coisas diferentes, gosto de testar a minha capacidade. Portanto, cozinha é criatividade. É uma das áreas mas criativas que existe. Porém, um cozinheiro não tem de se considerar um artista. Não somos artistas! Temos de mudar as cartas ano após ano para mostrar a nossa criatividade sem os pratos de há dez anos, os “clássicos”. A nossa postura na cozinha tem de ser outra. Temos de nos desafiar.

Falemos das inspirações.
A criatividade é das coisas mais complexas que existem. A criatividade pode aparecer no sítio mais estranho, mais improvável, basta andarmos com a cabeça ligada, porque o meu mundo é outro. Quando começo uma carta sonho toda a noite com os pratos que tenho para criar e anoto as ideias num bloco que está na mesinha de cabeceira, um hábito de há 20 anos. Mas temos de forçar a criatividade e a criação advém do paladar mental.

“Quero que a minha cozinha fale por si.”

O que é o paladar mental?
O paladar mental é o jogo de provar um prato mentalmente e, assim, conseguimos levar um prato até ao fim sem o provarmos. Há a parte emocional e sensorial que nos liga à nossa infância, que nos leva a pensar na idade, nos amigos que não vemos há algum tempo, na família que já não está connosco… é complicado, porque sinto-o, mas quem come os meus pratos não o sente. É emocional quando desperta alguma coisa a alguém. As pessoas querem histórias, mas eu não conto histórias acerca da minha cozinha, porque quero que a minha cozinha fale por si.

Quão saborosa é a sua cozinha?
Quero que a minha cozinha tenha um sabor muito forte. Lidamos com tantas pessoas, mas nem todas são obrigadas a entender o que eu faço. Há pitada de vanguarda com sabor, o qual é menos viciante, porque nos surpreende com sabores diferentes, como o amargo, enquanto que a comida clássica é muito viciante. A base tem de ter muito sabor e nem sempre pode ser agradável.

“A identidade é algo que se ganha e, de repente, estamos por nossa conta (…) É, então, que dizemos a palavra ‘chef’.”

Afinal, como é a cozinha de Leonel Pereira?
É tecno, porque uso as técnicas mais avançadas e disponíveis no mundo. Sou um grande defensor da maquinaria que se encontra disponível hoje. É tecno-criativa, porque crio através do nada e através das técnicas disponíveis e dos estudo que tenho e, como disse, sou uma pessoa que não me conformo com o que tenho, por isso tento sempre ir mais além. É contemporânea, mas não vanguardista, apesar de o ser um pouco, assim como tem um pouco da cozinha clássica. A minha cozinha é uma cozinha irrequieta, tem uma identidade própria. Por sua vez, a identidade é algo que se ganha e, de repente, estamos por nossa conta. Acontece quando deixamos de receber influências, quando nos conseguimos libertar. É, então, que dizemos a palavra ‘chef’. •

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© Fotografia: João Pedro Rato com Canon PowerShot G16