O dia despede-se sem darmos conta. Muito depois de chegarmos ao restaurante São Gabriel, em Almancil, discreto, primado pela pacatez de um Algarve sublimado pela elegância e cuja cozinha, assinada por Leonel Pereira, com quem estivemos à conversa, denota a sabedoria e o constante experimentalismo de um chef em alta.
À mesa, vestida a rigor para um repasto temperado com boa disposição e uma conversa animada, acompanhada pelos aperitivos escolhidos a dedo pelo escanção da casa, Vítor d’Avó, aguardamos pelo desfile de pratos preparados a preceito pelo chef Leonel Pereira. Um roteiro de sabores fortes, genuínos, oriundos ora do mar, ora da terra, convertido numa viagem estival pelo Algarve. De lés a lés. Demarcada pela originalidade de paladares e por uma criatividade sem limites.
Iniciamos o jantar. Aos mais novos, o chef algarvio apresenta uma composição de frutos vermelhos com molho de morangos que, a avaliar pelas expressivas manifestações faciais, estava uma delícia. O mesmo se diz sobre a Vitela com legumes orgânicos, cogumelos selvagens, molho de avelã torrada e creme de batata. Uma composição bem saudável, o que comprova a constante preocupação do chef algarvio em relação à alimentação dos miúdos – e dos graúdos também.
Para os comensais adultos, o Murganheira Super Reserva Bruto 2007 harmoniza as desgustação dos primeiros pratos. À prova está a Cabeça de camarão calcificada e acompanhada por uma caipirinha, para comer à colher, uma harmonização genial protagonizada pelo sabor do mar e o aroma cítrico da bebida apresentada, aqui, em estado sólido. Enquanto nos deleitamos com a iguaria de Leonel Pereira, sabemos que o pão é feito na cozinha do restaurante, dos quais dois são substituídos por outros todas as semanas, assim como uma das manteigas, que é modificada todas as terças feiras.
É a vez do Carapau alimado, uma homenagem ao carapau do Algarve, sobre uma pringle de arroz e molho de yuzu (fruto cítrico originário do leste asiático), a prova de que o sabor na cozinha do chef é tudo, bem como a criatividade na apresentação e na escolha dos pratos, a qual não fica por aqui.
O repasto prossegue, com Filete de sardinha corada, marmelada de escabeche, alface chicória grelhada, com um paladar bem agradável, a contrastar com a acidez suave do vinagre de maçã verde, a lembrar o verão.
As surpresas continuam a marcar presença à mesa, desta vez pela originalidade, sem esquecer, claro, do deleitoso sabor do brandade de bacalhau, especialidade típica do sudoeste de França, ao lado de uma cenoura orgânica da horta do São Gabriel, a qual é tratada com toda a dedicação por Leonel Pereira, e de um pequeno ramo de alecrim, num osso de vaca esculpido.
Segue-se o fitoplâncton, a recriação do sabor da ria Formosa, composto por pequenos camarões secos dispostos numa hóstia de carabineiro, a qual está colocada numa base orgânica de lufa (esponja vegetal). No tubo há um molho orgânico, que é colocado por cima dos crustáceos decápodes. Um snack para comer e chorar por mais. Porém, o amuse bouche e o welcome drink mudam às terças feiras no São Gabriel, até ao fim da temporada, razão pela qual a equipa do chef tem de manter a criatividade em alta, todas as semanas.
O Casa de Santar Reserva branco 2010, da garrafeira de Víctor d’Avó, no São Gabriel, é servido com o Foie gras levemente salteado, puré de couve flor assada e praliné de abóbora cristalizada – processo que concentra todos os açúcares do fruto da aboboreira, à semelhança da fruta cristalizada –, geleia de cebola e kumquat (citrino pequeno originário da China), um prato complexo e pleno de sabores, que cai bem no palato; como as Vieiras cozidas no vapor de citrinos, o que lhe confere um paladar divinal, acompanhadas por maçã sanguínea (injetada com beterraba), requeijão de ovelha, toranja e molho de aipo fumado. Uma fusão de sabores que torna o molusco muito mais interessante ao palato. A complexidade persiste com a Cavala fumada e levemente corada sobre aipo caramelizado, beterraba ao natural, molho de rábano picante, geleia de kumquat, o que confere um sabor cítrico à composição harmoniosa de sabores, sem se sobrepor ao do peixe.
Entretanto, os comensais em ponto pequeno degustam um colorida e deleitosa composição de bolas de gelado com sabor a coco, tangerina, arroz doce, rosa e mousse de laranja.
Passamos ao Redoma Nieport tinto 2011 para casar – e bem – com o pregado levemente salteado com molho de lima kaffir, originária da Tailândia, arroz megumi, do Japão, e molho de arroz, uma combinação genial de um chef da alta cozinha.
Agora o Leitão, assado, de pele bem tostada e com um sabor exemplar, acompanhado por couve roxa fermentada – outra das técnicas explorada pelo chef Leonel Pereira – e couve roxa fumada, batata aromatizada com baunilha, geleia de tangerina e molho de pimenta suave. Ao lado, a Quinta da Fonte do Ouro Touriga Nacional tinto 2009 traduz-se na rima exemplar de duas especialidades das Beiras.
A adivinhar o doce final, eis que chega a pré-sobremesa, protagonizada por um Pudim de requeijão de ovelha, molho e pó de tangerina, e avelãs e ananás caramelizado, provas dadas de uma combinação de sabores perfeita e a confirmar de que estamos perante uma “cozinha irrequieta”. Para terminar em grande, uma Tarte de maçã desconstruída com saber, feita com creme de maçã Granny Smith, crumble de amêndoa, geleia de limonada, cubos de maçã fresca encimada pela “cereja no topo do bolo”: um gelado de arroz doce memorável.
Ainda há dúvidas em relação à c0zinha do chef Leonel Pereira e ao São Gabriel?
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© Fotografia: João Pedro Rato com Canon PowerShot G16