“Temos de defender o que é nosso e trazer para a mesa o que é mesmo bom”/ Chef Paulo Queirós

É bem verdade! No Cordel, a mesa é um roteiro gastronómico repleto de cheiros e sabores, de duas regiões casadas a preceito – Trás-os-Montes e Coimbra –, despertando as memórias de um passado marcado pelos repastos em família. As cadeiras, de madeira maciça, convidam a sentar sem rodeios, como se estivéssemos, de novo, na sala dos nossos avós, a conviver e a reviver os velhos tempos. Ao fundo, o armário de mercearia antiga, pintado de branco, com objetos de outrora, prolonga essa mesma viagem rematada por um doce pastel de Santa Clara, o ex-líbris de um defensor da doçaria conventual: Paulo Queirós. O chef de um espaço improvável, em Santa Clara, na margem esquerda do Mondego de Coimbra.

Nasceu no Porto e cresceu transmontano. “Com nove anos já fazia festas em casa dos meus pais e gostava de fazer de tudo [na cozinha]”. Depois veio o curso, em 1984, na Escola de Hotelaria de Vidago, núcleo pertencente à Escola de Hotelaria e Turismo do Porto, e uma incursão pelo país, “sempre com chefe estrangeiros”e, em 2000 é conquistado por Coimbra.

Trocar Trás-os-Montes por Coimbra deveu-se aos encantos desta vetusta cidade que preguiça à beira do Mondego?
Na altura surgiu um convite para vir dar formação e com tinha referências de colegas meus da Escola de Hotelaria de Vidago, decidi vir. Entretanto fui para o Hotel da Curia, Tive várias experiência pela cidade, desde as docas ao Hotel Dom Luís, abri o Nostradamus, até que decidi trabalhar para mim. Coimbra foi eleita por uma proposta de trabalho que surgiu na altura, o que desencadeou uma mudança de vida. Cá estou nas terras do Mondego e gosto muito de cá estar.

E nesta cidade dá continuidade à primazia dos sabores genuínos dos alimentos. Porquê?
Gosto de comer. De comer bem, não em quantidade, mas de saborear os alimentos, por isso não gosto de os mascarar. Hoje em dia, quando vou a algum lado procuro sempre desses sabores naturais, nos molhos, nos alimentos… O sabor tem de estar lá. E é isso que tento fazer aqui [no Cordel] – cozinhar os mais simples possível para que os produtos saibam ao que são e as pessoas saibam o que estão a comer.

Quarteto de tostas de abacate, ora com muxama de atum com laranja, ora com salmão fumado, para divertir o palato, seguido de terra de uma codorniz à moda de Coimbra em terra de alheira e batata palha, um prato que se serve frio e que conquista o paladar logo à primeira garfada

Aliar a cozinha transmontana com a da beira simboliza a união de duas regiões marcantes para o Paulo Queirós?
Sim. Trás-os-Montes, porque identifico com a minha juventude, é onde tenho as minhas raízes e as memórias que tenho da minha infância são todas de lá. Agora, guardamos na memória cheiros e o que comemos, mas não consigo reproduzir o sabor. Por exemplo, na minha opinião, temos no “arquivo” pastel de Santa Clara e lembra-se que comeu o primeiro pastel de Santa Clara não pelo sabor, mas sim onde o comeu e com quem o comeu. O sabor, propriamente dito, andamos lá perto, mas se comermos outro, passado uns tempos, gostamos ou não por um conjunto de coisas e não só por causa do sabor do produto. Esta é a minha opinião. Por isso, guardamos os cheiros, isso sim; quanto ao sabor, tem de haver ali um conjunto de coisas para chegar lá. Se repararmos, nos vinhos primeiro cheira-se, não se prova; se agradar, provamos. Na comida passa-se o mesmo – primeiro está o cheiro e o aspeto, só depois é que comemos.
São essas as memórias que guardo da minha infância – são boas memórias – e agora, pelo facto de estar em Coimbra e ouvir dizer que a cidade não tem gastronomia… mas tem. À volta de Coimbra, na região centro, há produtos muito bons – temos o Rabaçal com o seu queijo, temos o cabrito de Penela, temos a Figueira da Foz com o seu peixe… Portanto, quando falamos de gastronomia não vamos cingir-nos a uma cidade, falamos da região.

Eis os cogumelos gratinados em terra de broa e azeitonas, uma conjugação de deleitosos sabores, para petiscar a dois; depois, foi a vez do queijo de cabra frito, acompanhado por uma compra de frutos vermelhos, e queijo de ovelha em massa dos pastéis de Tentúgal, de comer e chorar por mais

Pelo roteiro gastronómico da região, a carta do Cordel apresenta as codornizes à moda de Coimbra.
É uma interpretação de um prato que é perdiz à moda de Coimbra, um prato da cozinha conventual, em que a perdiz é trocada pela codorniz, que é confitada e acompanhada com batata palha e salada, e servida fria, porque a perdiz à moda de Coimbra é servida fria. Infelizmente é um prato muito pouco conhecido.

Do mar veio o robalo com espumante, no refogado, em puré de batata doce e puré de ervilha acompanhados por curgete, espargos e cenoura; e da terra o naco suculento com Queijo Serra da Estrela, ao lado da batata frita e de um arroz com chouriço de cogumelos saboreado com gosto

No Cordel, os pratos, de inspiração regional, têm uma apresentação que não escapa ao olhar. Como se faz esta transformação na cozinha sem desvirtuar os sabores?
Temos de tomar atenção ao sabor de cada alimento e perceber as combinações sem mascarar os produtos, além de que as pessoas têm gostos diferentes e para nós, que estamos ali dentro, não sabemos quem vai comer. Portanto, se alguém pede um robalo servimos um robalo que saiba a robalo, mas com uma acidez com o tomate e alguma doçura associada ao peixe que se vai buscar à batata doce, ou seja, é importante ir buscar um fio condutor que faça a ligação entre ambos – o ácido e o doce.

Para adoçar a boca, o Cordel de doces compôs-se de um sorbet de frutos vermelhos, bolo de nozes com ovos moles, um saudoso bolo de bolacha e um pudim das clarissas como não há igual, assim como os pastéis de Santa Clara, que remataram o repasto, trazendo à memória a infância de uma matriz (a minha) jamais esquecida

Vamos à sobremesa do Cordel, que dá primazia à doçaria conventual ao invés da pastelaria francesa. Explique-nos esta fuga ao convencional, preferindo o conventual.
É uma questão de gosto pessoal e porque acho que está na altura de deixarmos de esperar por D. Sebastão, por isso temos de defender o que é nosso e trazer para a mesa o que é mesmo bom! Temos a melhor doçaria do mundo. Repare, os outros países tem feito interpretações da nossa doçaria, que é, contudo, muito pesada e muito doce, pelo que temos de fazer pequenas alterações, aligeirá-la e servir, por exemplo, o bolo de noz – com nozes de Penela –, o pudim das clarissas e, depois, há o suspiro de chocolate – há quem diga que é melhor do que o Melhor Bolo de Chocolate do Mundo [risos]. No fundo, gosto de defender a nossa identidade e porque temos uma doçaria muito boa, que está cheia de sabor.

“(…) não precisamos de ter tanta preocupação em tornar a doçaria conventual um produto comercial, mas sim em torná-la num produto bom.”

Ainda sobre o receituário dos conventos e dos mosteiros, o que se pode fazer para incrementar a importância da doçaria conventual, de uma riqueza inimaginável, no país?
O que se faz, hoje em dia, é pegar nos produtos e atribuir-lhe um lado comercial. Acho que não precisamos de ter tanta preocupação em tornar a doçaria conventual um produto comercial, mas sim em torná-la num produto bom, em que as pessoas não se importem de pagar um pouco mais. A doçaria conventual é uma doçaria diferente.

Além dos famosos pastéis de Santa Clara, a que outros doces conventuais se dedica a cozinha do Cordel?
O pudim das clarissas, que já referimos há pouco, o manjar branco, o arroz doce e o leite creme, a arrufada, a cavaca alta de Coimbra e estamos a testar outros para a cozinha do Cordel.

[A Confraria de Sabores de Coimbra] “foi criada, porque não havia nada que defendesse o que é de Coimbra.”

Foi esta nobre e doce causa que o levou a entrar na Confraria de Sabores de Coimbra.
A confraria é recente, tem entre três e quatro anos. Foi criada, porque não havia nada que defendesse o que é de Coimbra. Fizemos um primeiro capítulo, numa quinta, para as confrarias a nível nacional, só com sabores de Coimbra. Está a fazer um bom trabalho, o que é possível porque, lamentavelmente, poucos são os que acreditam que Coimbra tem gastronomia e o valor só existe quando se é partilhado. E partilhar é receber.

Passemos ao mestrado em Alimentação – Fontes, Cultura e Sociedade, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Paralelamente ao Cordel, estou a fazer um mestrado em Alimentação – Fontes, Cultura e Sociedade, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Muito interessante. A minha tese é sobre um tempo recente para perceber por que razão Coimbra não tem tradição gastronómica e o mestrado aborda a temática da alimentação na literatura, no cinema… Estou a fazer este mestrado, porque gosto de descobrir coisas e, entretanto, apercebemo-nos que, por exemplo, há filmes que abordam muito a gastronomia, como “A festa de Babette”, “O segredo de um cuscuz”, “Chocolat”, “Eat drink man woman”, “Sem reservas”, “Como água com chocolate”… Há vários que vale a pena ver.

Porquê Cordel e porquê na margem esquerda do Mondego?
Eu e a Eduarda temos um projeto e precisávamos de uma cozinha, e também queríamos abrir um outro projeto gastronómico ao público. Quando entrei aqui – foi num dia de muito sol – comecei a ver que tinha – e tem – muita luz e comecei a pensa ‘isto é giro para fazer aqui uns petiscos’. E abrimos a pensar nisso, mas as pessoas que me conheciam começaram a pedir outros pratos e, hoje, é assumidamente um restaurante. O facto de optarmos pelo lado de cá, foi por questões económicas, os comensais encontram sítio para estacionar e confeciono pratos com produtos de qualidade.
O nome surgiu porque, como queríamos ter embrulhos com papel craft [para os produtos à venda na parte de mercearia] e cordel, daí o nome Cordel. Depois surgiu esta ideia de fazer uma simulação de um tear de Almalaguês, identidade da região, e tudo funciona perfeitamente. Hoje, olhando para este percurso todo, sinto-me satisfeito com as pessoas que frequentem esta casa.

Há quanto tempo não vai a Coimbra, “património de capa traçada“, uma Coimbra da UNESCO? •

+ Restaurante Cordel
© Fotografia: João Pedro Rato