Conversa sobre “No True Magic” / a Jigsaw

Há uns dias, mais precisamente a 21 de Setembro, dia em que não sentimos bem a magia do sol nem a ilusão de verão seco, mas sim chuva e trovoada, estivemos num exclusivo com os conimbricenses a Jigsaw.

O exclusivo, para que tudo fique claro, foi poder privar com João Rui e Jorri entrevistando-os, fotografando-os, ouvindo-os pela primeira vez, ao vivo, a tocarem cinco das 11 músicas que integram o seu novo álbum de originais – “No True Magic”. Aqui, neste momento, partilhamos a longa conversa travada com quem nos apresenta um trabalho que aborda o nosso efémero, no que dizem ser a “aceitação dos termos da nossa mortalidade”. Tudo parte da construção da sua identidade no universo sonoro folk e blues, bem temperado pela literatura e criatividade. Agora, a conversa. No fim, link para concerto que foi e outro que será. Sem mais truques, avancemos.

“No True Magic”. Não há magia. Há mágicos que fazem truques que nos iludem. Vós magos e o álbum o truque da máquina Nikola Tesla, que nos transporta para um universo de ilusão. Sim ou é tudo magia com os segredos da física a produzirem um efeito surpreendente?
Jorri (J): Tem mais a ver com o ilusionismo. Esse momento de criar uma ilusão, onde as pessoas sabem que estão a ser iludidas e aceitam-no. Nada é explicado e não tentam saber o que está por detrás. Porém, se falares do processo, do que é o álbum até aqui chegar, ao momento em que o ouves, ai se calhar há muita magia.
João Rui (JR): Sim, mais pelo puro ilusionismo. O conceito do álbum, o que nós estamos a abordar, esta suspensão e encarar da mortalidade é sério e real, e “No True Magic” é a metáfora. O que o álbum trata mesmo, que é a morte, não é metáfora nenhuma. Então, talvez, a ser considerada essa é a única coisa realmente mágica porque tudo o resto é ilusionismo, uma metáfora e não passa disso.

De Piratas Marinheiros a crentes num Messias que nos trará o milagre da imortalidade ou, como vivos que estamos, com a razão que nos assiste nesta condição, a conscientes da nossa efemeridade. Falam da suspensão da mortalidade, falam num milagre em que talvez acreditemos, de uma razão que cede. E a música, é imortal ou tem morte anunciada?
JR: Se há alguma coisa imortal, no álbum, é a música. Não só enquanto melodia, mas englobando a palavra que ela vincula. A ideia de sermos imortais através da nossas obras, há que entender que é enquanto se lembrarem de nós. Enquanto se lembrarem da obra, talvez seja o mesmo que se lembrarem de nós, porém, às vezes, perdura só a obra, mas sim. Creio que seja imortal até porque nós não estamos a inventar notas, elas já existem. Há esse resquício de imortalidade em toda a música. A música é imortal. Não há volta a dar.

Ainda sobre a imortalidade do som, mas fazendo uma pequena distorção. A música, noutra leitura, pode ser absolutamente mortal?
JR: Sim. Sem qualquer dúvida. O tema que exploramos neste álbum é coisa que pode ser primeiro encarado como extremamente humano, obviamente, e tendo em conta a seriedade do tema que é sério e pesado, sim, pode quebrar tudo.

“Cada vez mais, talvez, deixa de haver ilusionistas e passam a existir mágicos, passamos a saber como é que foi feito ou, pelo menos, não nos deixamos iludir durante tanto tempo.”

Há magia ou ilusionismo, mágico ou ilusionista, supremo na música?
JR: Tudo depende do ponto de vista, se deles ou nosso. O facto de nós conhecermos bem ou suficientemente o nosso métier, também nos permite saber como é que tudo se vai integrar do outro lado, como é que outros músicos poderão sentir ou isto é uma resposta que seria diferente se fosse o nosso primeiro álbum, mas é o quarto álbum em que toda esta experiência na criação, publicação e apresentação, deixa-nos antever muito do que está para lá. Ver o músico, aquela magia, quase a forma do olhar inocente em relação à musica… o facto de nós também fazermos música faz-nos ter o olhar mais distante, outras vezes mais clínico, outras vezes mais cínico. Torna-se complicado dar a resposta, se é mais mágico ou ilusionismo. O nosso olhar perante esses mágicos e ilusionistas é diferente, tendo em conta que também fazemos parte da classe.
O facto de serem músicos tirou-vos a magia?
J: Os ilusionistas precisam que as pessoas se deixem iludir e, a dada altura, tens de encarar isso com “Vou deixar-me iludir. Não quer saber como, quero é ser iludido”. À medida que também tentamos ser ilusionistas, sabemos e temos curiosidade de como é que estamos a ser iludidos. Cada vez mais, talvez, deixa de haver ilusionistas e passam a existir mágicos, passamos a saber como é que foi feito ou, pelo menos, não nos deixamos iludir durante tanto tempo.
JR: O que não deixa, quando estamos no papel de meros ouvintes, de nos surpreender. Em alguns casos sabemos o porquê, mas gostamos da forma como o truque nos está a ser apresentado, ainda que o possamos conhecer.

Não ousando muito na literatura, agarro no Lev(e) Tolstoi. “O homem não tem poder sobre nada enquanto tem medo da morte. E quem não tem medo da morte possui tudo.” Existe o medo da morte na construção da identidade ?
J: Não tem de ser, necessariamente, o medo. A morte é uma dos pilares para construíres a identidade, a relação que tens com ela . Se é medo, se não é… É consciência que existe.
JR: O medo da morte é uma das pedras angulares da construção da identidade… Não é bem o medo. É a existência dela, o conhecimento da morte. Não temos o pensamento do medo, mas a consciência da nossa mortalidade. É apenas a fé poética que nos faz continuar e estar aqui, alegremente, a falar.

Um manancial de instrumentos, 20 instrumentos mais coisa menos coisa, neste álbum. Ainda em Tolstoi, isto é o medo da morte ou a garantia que não são imortais? A insaciabilidade instrumental.
JR: O medo da morte de quem nos rodeia, talvez. E aí, então, essa forma seja a maneira como nós vamos recolhendo estes objectos todos antes que acabem. Por outro lado, e pegando na expressão, é certo que todos estes instrumentos, que vamos adquirindo e tornando parte do nosso arsenal, são instrumentos que, maior parte, já não se fazem e que vamos resgatando a uma morte bem anunciada.
J: Não tenho medo da morte! Os instrumentos têm muito a ver com a história da magia e do ilusionismo, são ferramentas. Primeiro, procuramos instrumentos que nos iludam e andamos iludidos com eles até os percebermos e criarmos aquele distanciamento necessário. Depois, temos uma relação de construção do onde é que os podemos utilizar, quando perdem o encanto de novidade.

“Desde o início, quando decidimos gravar este álbum, tínhamos a noção que o queríamos fazer em Coimbra, em casa.”

Guitarra de Coimbra, numa música vossa. Uma surpresa. Acaba por ser um “folk” da vossa cidade? Como caiu ela no colo?
JR: Desde o início, quando decidimos gravar este álbum, tínhamos a noção que o queríamos fazer em Coimbra, em casa. Da última vez gravamos no Attack Release Studio, com o João P. Miranda, mas desta vez queríamos esse cunho muito pessoal de ser Coimbra, tinha de ser. O que significou depois, na música especifica em que entra a guitarra de Coimbra, quando estávamos a compor o surgir da ideia de termos uma guitarra de 12 cordas. Quando mostrei ao Jorri, pela primeira vez, ele disse “isto ficava bem era com uma guitarra de Coimbra!” E, posto isso, o pai do Jorri emprestou-nos a guitarra dele e criámos com som profundamente nosso.
Crêem que todos vão perceber que é guitarra de Coimbra?
JR e J: Não…
JR: Mas tivemos o cuidado de vincar, propositadamente, não só o instrumento, mas também parte da sua linguagem. Há muitos instrumentos para os quais nós criamos a nossa linguagem, mas no caso da guitarra de Coimbra, em vez de termos puxado a guitarra para o nosso universo, usámos da forma como é tocada em Coimbra, quisemos que fosse notório, que não houvesse dúvida de que é guitarra de Coimbra.
J: O que aconteceu contigo, é o que acontece com todos os instrumentos, com todas as pessoas. Tens uma referência desse instrumento que te vai identificá-lo ou, pelo menos, vai levantar-te a dúvida – “será que é ou não é?” Se não tiveres a referência de instrumentos que estão a ser utilizados, eles podem passar-te desapercebidos, ou pensas que é uma coisa e é outra. Se calhar se tocássemos a guitarra de Coimbra de outra forma, não reconhecerias.

Este novo trabalho chega-nos aos ouvido como “aceitação dos termos na nossa mortalidade”. Quando fizeram “I Accept” leram o texto todo? Ou fizeram o “tick” e siga, instale-se a mortalidade. Não há milagre ou salvação do Senhor para ninguém.
J: O accept já tem uns anos. Assinámos o contrato com o barqueiro há sete anos. Estávamos era em falta… Andamos, há sete anos, a ler o contrato (risos).
JR: O “willing suspension of disbelief” é em relação a esse contrato, em que nós vamos mantendo essa descrença bem certa.

Deixando não crenças de lado, imaginemos a existência de: céu, inferno e purgatório. Lúcifer caiu, criou-se o inferno: “deixai toda a esperança, ó vós que entrais!”. Temos o diabo no encalço e as belas Portas do Inferno (Dante by August Rodin). O céu, o inferno ou o purgatório para tocarem no além?
J: Tenho lugar garantido no inferno. Foi-me dito que eu não tenho salvação e não foi a minha mãe. Que, se algum dia me dissesse isso, lá bem no fundo diria para ela: “ele há-de ter salvação!”
JR: Junto de quem lá chegar antes de mim.

Não resisto a uma frase de Pitágoras: “Deve-se sair da vida como de um banquete, numa atitude decente.” Ruby Ann, Tracy Vandal… e eis Carla Torgeson. Esta chamada de vozes é o garantir que saem dos banquetes, os álbuns, com uma atitude decente?
JR: A resposta não andará muito longe de usarmos o instrumento A ou o instrumento B. Nós usamo-los para servir a canção que não se encerra, só, na parte melódica. Há a voz que está a servir a letra. Todas as músicas em que tivemos o privilégio de ter estas vozes connosco, foram convidadas porque aquela parte, a ser cantada, é a de uma mulher, elas estão a servir a letra porque é uma voz feminina que tem que dizer aquelas palavras e tivemos a sorte de as ter a fazer essa representação, e a interpretação, de qualquer uma delas, é magnífica. Portanto, a razão pela qual as convidamos não é porque queremos ter um dueto. É porque as canções assim foram escritas. Embora, em algumas músicas, havendo o espaço para o momento feminino. eu faça o papel de narrador. Quando nós as convidamos é para isto e quando falamos com elas explicamos isso, que é feminino e tem essa razão de ser. Temos tido este privilégio que nos tem ajudado a que esse banquete, realmente, seja algo do qual nos possamos também orgulhar.
J: A razão porque também apareceram estas vozes, não esquecer Raquel Ralha e Becky Lee, foi porque a Susana Ribeiro não cantava. Se calhar, se cantasse, não teria surgido algum convite. Teríamos esse instrumento.

“Foi um daqueles momentos em que nos conseguimos iludir.”

Que magia há em Carla Torgeson que vos tenha feito escrever, para ela, “Black Jewelled Moon”?
JR: A magia, foi a voz dela na primeira vez que ouvi no segundo álbum dos Tindersticks, onde a Carla canta “Travelling Light”. Aquela voz e interpretação, absolutamente, magníficas; sempre ficou para mim como algo idílico. Depois ouvi a interpretação dela de “Men from Reno”, música original de Scott Walker, uma coisa magnífica. Foi por causa disto que, logo de início, esta música foi construída e não outra igual até agora. Nem se quer nos passou pela cabeça ela não aceitar. Acreditamos que ela iria aceitar e se ela não tivesse aceitado, não teríamos convidado outra pessoa para o fazer. A música era da Carla.
J: E o grande responsável por ela estar no nosso álbum é o Chris Eckman, vocalista dos Walkabouts.
JR: A quem eu expliquei toda a génese da canção e ele depois encaminhou o nosso contacto para a Carla. E começámos a trocar emails com ela “tu cá tu lá” (risos). Quem gravou a voz da Carla foi o Glenn Slater, teclista dos Walkabouts, no estúdio deles, em Seattle, e foi maior alegria quando nós estávamos em casa e recebemos um email com o ficheiro das gravações da Carla.
J: Foi um daqueles momentos em que nos conseguimos iludir.
JR: Exato, estávamos a ouvir uma música nossa cantada pela Carla. Foi um momento mágico.

As 11 rosas que agora trazem diria que são menos díspares que as 12 marés que deram no álbum anterior. I.e. no anterior sentia uma maior variação musical, aqui o caule é mais constante. O tema a tal vos conduziu ou era a mudança/evolução necessária?
J: É o percurso normal, crescemos. A mudança tem a ver com este álbum ser mais profundo, denso e, desde os últimos seis anos, a Susana Ribeiro esteve sempre connosco, era parte do que é o nosso som de a Jigsaw, faz parte dessa construção e nós próprios, se calhar, seguíamos algumas direcções enquanto músicos instrumentistas porque tocávamos com a Susana e com outros que fomos tocando. Essa construção da identidade como músico instrumentista. Agora não temos a Susana, é o primeiro álbum que escrevemos os dois, isso muda logo tudo, menos um terço e esse terço teve de ser compensado…
…Tiveram de rezar de outra maneira?
J: (Risos) É isso.
JR: Estavas a pedi-las (risos).
J: Como não rezo, deve ter sido o João (risos). Tenho pacto com o diabo. Enquanto músico, compositor e a Jigsaw notei uma grande diferença em fazer músicas e arranjos só com o João. Dantes esperávamos por ver o que a Susana faria e a seguir íamos viver à volta da melodia do violino. De repente, isso não existe. Claro que isso ia mudar o nosso som e, se calhar, alguns desse altos e baixos, que sentias no Drunken Sailors & Happy Pirates, aqui não sentes tanto, embora eles existam. E também quisemos fazer de outra maneira, não quisemos tentar fazer o que a Susana fazia.
JR: Nota, nós não prescindimos da Susana. O single “Black Jewelled Moon” conta com o violino incomparável da Susana e o dia especifico, em que surge aquela ideia do riff inicial da música, foi na nossa tournée do Like The Wolf. É ai que surge a ideia com que começa a música e a Susana estava nesse concerto, quando eu tive de me afastar para guardar esse esboço com o João ou a Susana a fazer sound check. Ela gostou muito de saber que nesta música ela estava lá e tínhamos que a ter neste álbum.

“Há um encadeamento lógico, em cada música estamos a contar algo, as palavras não surgem ali, do meio do nada.”

Há noção da solidez que têm enquanto composição e lírica? É impossível criar algo sem um conceito estruturado e essa memória para a lírica?…
J: Tentamos isso. Se escreves 40 musicas que são estéreis, se calhar, terás mais facilidade em esquecê-las, pois falam todas do mesmo.
JR: Aqui, como há uma história, é relativamente fácil de decorar. Há um encadeamento lógico, em cada música estamos a contar algo, as palavras não surgem ali, do meio do nada. Tanto na parte de musical como lírica, temos vindo a refinar isso, não há nada só porque podemos ou sabemos. Tem que existir uma razão forte. Aquilo que falavas de olharmos para trás, daqui a uns anos, não queremos olhar ver que só colocámos aquilo porque podíamos. Há razão para tudo.
J: Não sei se algum dia o vamos fazer, até porque pode acontecer, em termos artísticos , um álbum de músicas avulso sem haver esse conceito, de não haver conceito. O que tentamos desde o Letters From The Boatman até agora, é aprofundar essa ideia de conceito mais aprofundado, junto com o grafismo e, neste caso, a fotografia da Sofia Silva na construção da imagem, que neste é mais vincado.
JR: Sim, não estamos manietados. Já fizemos versões em singles e B-sides que não colocámos em álbuns, porque seria como, num livro teres lá uma adaptação de um conto, sem sentido, ali metido no meio de um romance nosso. A não ser como o João diz, uma coisa desenraizada de conceito, para já não faz sentido.

Máquina de auto-transporte Tesla. Uma cidade para ouvir este álbum e livro para acompanhar?
JR: Primeiro não precisávamos de sair daqui. Quanto ao livro podia ser o “Magic “, do Eliphas Levi seria uma boa companhia para quem quer acreditar em magia. Ou a Bíblia! Versão do King James, claro.

A seguir à morte, virá a ressurreição?
J: Por acaso, esse tema, tem o seu interesse. Provavelmente, umas das próximas coisas que havemos de fazer é quase isso.
JR: Uhm! Sim.
J: E mais não dizemos, (risos).

E eis o que foram vários dedos de conversa e… sobre o concerto e futuros concertos? É clicar aqui .

Músicos convidados em “No True Magic”: Carla Torgeson (voz), Guilherme Pimenta (bateria e percussões), Miguel Gelpi, Pedro Serra e Gito Lima (contrabaixo), Susana Ribeiro (violino e glockenspiel), Maria Côrte (harpa, violino e viola de arco), Lauren Rossi (trompa) e Hugo Fernandes (violoncelo).

+ a Jigsaw
© Fotografia: Nelson Gomes / Nelson Gomes Facebook.