Eu também já fui adulto, sabia?
Usei camisa aos quadrados, calças com vinco e aliança no dedo. Saí de casa dos meus pais e mudei-me para trás dos óculos (a renda era barata, bem vistas as coisas). Ao passar a mão pela cabeça, armário estreito para preocupações e memórias, pude sentir a falta do cabelo que já lá conhecera (outro inquilino que se foi). A princípio, senti-me engolido por uma espécie de silêncio embaciado, queda livre de efeito retardado, seguro pela certeza das coisas que foram tão completamente o meu mundo. Rapidamente aprendi, afinal, a orientar-me no escuro e a escutar apenas o eco da minha própria voz.
As coisas foram acontecendo, alheias à minha vontade. Aprendi a tossir cavernosamente e a assoar-me num altifalante oculto no lenço. O casaco, companheiro de todos os dias, habituou-se a ceder na costura. O rasgo do tempo fez-se-me tortura. Multipliquei-me em desculpas, invocando preocupações, responsabilidades, reuniões, reserva, autoridade, relatórios, balanços, papelada (que maçada, que maçada).
No trânsito, pelo intervalo mínimo de um vidro, quebrei todos os códigos de conduta (a gravata, porém, irrepreensível). Tornei-me especialista em afinar a barba pelo retrovisor e não contive um poema quando a gilete me rasgou a pele e duas gotas, vermelhas, quentes, inesperadas, se me vieram atravessar na camisa. Aprendi a ser polido, a desejar rápidas melhoras e a evitar os palavrões. Com sucesso relativo.
Em casa, o frigorífico ergueu-se, em toda a sua imponente e desoladora ruína, a muro das lamentações (aqui, um arrepio na espinha). Vivi, religiosamente, de contas por pagar e de sonhos magnéticos. Os recados suspensos são porventura… as melhores lembranças que guardo do casamento. E mais confesso: usei, para meu refrigério, das garrafas de branco reservadas aos assados (tudo afinal, o que verdadeiramente interessava lá dentro).
Apontei números de telefone importantes nas costas dos talões de estacionamento. E das multas de estacionamento. E perdi-os sucessivamente. Fui trocando pessoas de lugar, na minha vida, antes mesmo de lhes vir a trocar os nomes. Perdi-as, irremediavelmente.
Até não foi difícil rir em coro e beber “à nossa”. Mas foi preciso engolir as dúvidas, da maneira mais rápida, ao toque austero do cristal. Como outrora vira nas novelas, quebrei jarras e molduras no chão, como promessas. Com a violência do sangue a bater contra as veias, sinto até hoje a angústia feita desejo de voltar atrás, de fazer, no passado, um risco de alto a baixo.
Contemplei o espelho, atónito. O sorriso amareleceu, as feições deram um passo em frente. Caiu-me a vida em cima, de repente. Deixei de ver o arco-íris em todo o lado. Ao tapar a boca de aquário percebi, com assombro, que o cabelo migrou afinal para as costas das mãos (nunca vi um estudo sobre isso).
De colher esquecida nos dedos, pêndulo-vertigem num quotidiano dormente, escavei bem fundo a sopa fria. E a ideia de fuga, na minha mente.
O que aconteceu depois? Fiz aquilo que agora lhe aconselho: recuei, com medo. Segui as migalhas e encontrei o caminho de volta (onde se lê “era uma vez”, leia-se “e viveram felizes para sempre”). Esses óculos (se me permite) são aros que engrossam, à medida que nos esvaziam de espessura. Por isso dizem do mundo redondo e depois disto, já se viu, não sou eu que vou discutir com adultos.
Nem tudo se perdeu, enfim. A camisa aos quadrados, por exemplo. Gastas as cadernetas, veio mesmo a calhar para colar os cromos. Os pirilampos, acredite ou não, esperavam por mim nas suas caixas de fósforos. Destas costas, arqueadas, talvez ainda brotem asas. E pareceu-me isto tudo um tormento escusado, uma aventura delirante, assim à distância.
Agora a sério… para onde lhe fugiu a infância?
+ Ilustração: Sara Quaresma Capitão