“Estou muito feliz, porque estou a pintar para mim” / João Feijó

Após duas décadas dedicado à pintura convencional, João Feijó explora os opostos delimitados por uma ténue linha que ora os separa, ora os une, pois ambos são o complemento de uma relação em Zen Connection. O nome da última série de obras do artista plástico português que, aos 12 anos inicia o seu percurso no universo dos quadros e, hoje, se encontra “numa fase em que a minha pintura me satisfaz”.

Zen Connection, o nome da última exposição de João Feijó, converte-se na dualidade dos opostos, ‘separados’ por um traço, quase inexistente, na horizontal.
Havia muita gente que perguntava ‘porquê uma linha’ nos meus quadros e se era uma paisagem, mas não tem nada a ver com isso. Por isso, fiz um texto enorme explicativo sobre a exposição, porque aquela linha não tem nada a ver com a linha do horizonte, mas sim com as duas partes que se complementam – o homem não existe sem a mulher, a vida não existe sem a morte, a noite não existe sem o dia… A linha tem muito a ver com a forma como vivo a minha vida – faço meditação há cerca de 25 anos, o que me preenche, pelo que o meu trabalho é muito metafísico, muito introspectivo. A linha, como no eletrocardiograma, é quase uma separação do nosso estado de espírito – ora estamos em cima, felizes, ora estamos em baixo, tristes.

Se fosse hoje, em que o outono apresenta cores de verão, que cores escolheria para definir um e outro?
Pinto quando sinto necessidade de pintar, quando a pintura me chama. Depois da meditação, tento apontar flashs cromáticos ou estéticos, daí que as cores saiam por inércia do meu estado de espírito. Porém, há duas cores-base nos meus quadros: o carmim e o azul. Quando ambas se misturam dão uma infinidade de cores… O azul tem a ver com o sossego e o vermelho tem a ver com a irritabilidade. A cor vermelha puxa o sangue, a violência. O preto representa a melancolia e o branco significa ausência de cor. Mas será que é ausência? Pelo menos é a ausência de pensamentos.

O estilo livre está implícito nos seus quadros. Desde quando surgiu essa forma de estar na pintura de João Feijó?
Desde o dia em que tive a felicidade de vender a minha última loja. Durante 20 anos fui escravo de galerias, de artistas e da minha própria pintura, porque a parte comercial é a que vende mais e eu estava agarrado a esse domínio do comercial. Neste momento estou muito feliz, porque estou a pintar para mim. Na pintura, a primeira fase é muito académica, depois entramos numa fase em que temos de ganhar dinheiro para vivermos da pintura e, depois, acabamos na fase em que ou continuamos a viver da pintura ou de vamos para um domínio mais apetecível. Neste momento, estou numa fase em que a minha pintura me satisfaz, a aguarela. Mas quero chegar mais à frente, quero ‘limpar’ mais a minha pintura.

É fácil manter essa fidelidade intrínseca?
Não, estou a passar um mau bocado, porque as pessoas não estão a conseguir acompanhar-me. Muitas pessoas não sabem ler um quadro. Com as aguarelas que faço e não uso praticamente o pincel – os meus materiais são: água fria e água gelada, pigmentos naturais, varas de bambu para movimentar as tintas, o rolo de cozinha que uso como pincel…

“A aguarela tem uma coisa que eu adoro: Não permite erros.”

Porquê a aguarela?
A aguarela tem uma coisa que eu adoro: Não permite erros. Errou, rasgou, vai para o lixo. Obriga-me a uma espontaneidade e a uma leveza muito grandes. Mas muitos a julgam uma arte menor, mas houve muitos aguarelistas no mundo que vingaram. Um dos que sigo muito é Zao Wou Ki [pintor chinês].

A fidelidade, sobre a qual falámos há pouco, está associada ao facto de ter iniciado o seu percurso na pintura aos 12 anos, com a aguarela? É um reencontro com o passado?
Tem a ver um bocado com o reencontro, embora nunca tivesse deixado a aguarela. A aguarela é a área que mais gosto nas artes plásticas, sobretudo por causa da espontaneidade e a que domino melhor. É uma pintura ‘limpa’, além de que obriga a que tenha um espaço limpo – não pode haver pó nem humidade. Tem de haver um ‘protocolo’ de higiene do ambiente para a aguarela resultar. Num dia como o de hoje [está sol] a aguarela fica de uma maneira; se amanhã chover, ela fica completamente diferente.

Pintou a maior aguarela alguma vez feita em Portugal, a qual pertence à série Zen Connection. A mesma foi exibida no Vera World Fine Art Festival?
Houve duas. Uma esteve no Vera e outra que esteve no Zen Connection – esta foi mais tranquila – porque coincidiram as datas. A 15 [de setembro] montei o Vera, que inaugurou a 17, mas de manhã montei [a exposição Zen Connection] no Casino [do Estoril], a 19 inaugurou a minha exposição no Casino, e a 21 foi a entrega dos prémios [do Vera World Fine Art Festival], onde me meteram ao lado de Noronha da Costa, na categoria mérito e carreira. Se me tivessem entregue o prémio, teria ido ao palco agradecer, mas ofereceria o prémio ao mestre Noronha da Costa, porque ainda me falta um bocado para lá chegar. Há que respeitar as hierarquias e quem fez muito por este país.

“Conheço muitos pintores que aniquilam o branco pintando a tela com uma base, porque o branco é nada.”

Muitos são os artistas que falam em transmitir as suas emoções para a tela. Se lhe pedisse para descrever os sentimentos transpostos para cada quadra conseguiria, lembrar-se-ia?
Conseguiria descrever a emoção, a hora e o momento em que os fiz. Tenho sempre todo o material preparado para quando a pintura me chama. A aguarela de cinco metros [de comprimento], por exemplo, esteve 15 dias no chão do meu atelier. Olhava-a e assustava-me – um papel branco com cinco metros por metro e meio assusta muito. Conheço muitos pintores que aniquilam o branco pintando a tela com uma base, porque o branco é nada.

É austero?
É. Olhar para um papel com cinco metros de comprimento e tentar sentir o que podemos fazer ali, é complicado. Lembro-me que, quando estive a fazer a primeira aguarela, para o Vera, tive três horas a fazer só a primeira parte. Foi um misto de conflito e medo em relação ao que iria sair. Acho, porém, a peça muito boa. Agreste demais, talvez, com vermelhos mais fortes, mais carmim, e menos azul. A segunda é muito mais tranquila, com mais azuis.

Apesar do interregno que fez na primeira, como fez para que a retoma da peça não ficasse perceptível?
Antes de a pintar, tive de a ensopar em água, portanto quando ‘dou’ tinta, a aguarela leva dias a ser absorvida pelo papel e a evaporar. Foi fácil.

“(…)muitas pessoas que traduzem Color Field à letra – fica ‘campos de cor’. Não tem nada a ver.”

Depois resultam os quadros com um título. Ou não.
Não gosto muito de atribuir títulos aos quadros. Faço séries. Fiz a Color Field e a Zen Connection.

As duas exposições estão interligadas.
Claro! Mas muitas pessoas que traduzem Color Field à letra – fica ‘campos de cor’. Não tem nada a ver.

Saímos da Zen Connection e entramos no Color Field. Como é que um movimento artístico russo, que surgiu em 1913, influenciou a sua pintura?
Houve um movimento de pintores impressionistas nessa altura em que estavam castrados pela política e alguns deles saíram dos seus países e juntaram-se, sobretudo, nos Estados Unidos e criaram o Color Field. Como eu estava com vontade de ‘partir a loiça’ criei o meu próprio ‘color field’, que é um campo de cor que vou ocupar, mas também tinha a ver com o movimento que queria criar.

As obras desta exposição são inspiradas neste movimento.
Bebo ali, do marasmo. Foi a primeira exposição que apresentei com obras abstratas.

Existe, no seu percurso pelas artes, um antes e um depois?
Começa com um presente e passa para um futuro, ou seja, começa com os Guinchos, as lezírias… e passa por esta exposição que inaugurou a 17 de janeiro de 2013.

Há mudanças a considerar no universo da aguarela?
Começa a haver uma auto-confiança crescente. Tem a ver com a serenidade emocional.

+ João Feijó
© Fotografia: João Feijó (Legenda da imagem de entrada: #25 / Série Zen Connection / aguarela sem papel / ø 100 cm)