Dream a little dream of… Tracy Vandal

Sing me a song, Tracy. Sing me another, please. And another one, if you don’t mind. Com Tracy Vandal é o que dá vontade. Pedir que ela nos cante e embale com a sua voz. Uma escocesa que escolheu Coimbra para viver e (en)cantar.

Primeiro, num final de tarde, fotografia no Jardim Botânico da Universidade de Coimbra. Depois, num início de tarde, a conversa de uma tarde toda, num accent bem definido, no que foi uma viagem pelos caminhos corridos até chegar aqui, às sonoridades sem heterónimos com o EP “The end of everything”, a primeira caminhada a solo de Tracy Vandal.

Na música, pedra basilar no existir de Tracy Vandal, tudo começou com 15 anos, na sua primeira banda, nos seus primeiros cruzamentos com nomes da música, em Glasgow, de onde é natural, e onde Alex Kapranos (Franz Ferdinand) fez parte integrante do seu arranque no mundo sonoro. Mais tarde, passagem por vários projetos, novas bandas, o tornar-se, dois anos depois, Sound Engineer, e mais tarde virar os acordes para Londres até chegar ao nome Lincoln. Com esta última banda, Lincoln, o sucesso reconhecido – “editámos vários álbuns, nos quais cantei duetos e solos, fizemos tours bem longas com bandas como os Tindersticks, Calexico ou Lambchop”. Do sucesso com esta banda, que teve músicas incluídas em álbuns da Uncut e The Guardian, entre outros, passou para uma longa pausa no universo desenfreado de tours e edição de discos. Pausa que, para quem tem música a correr-lhe nas veias e na alma, não foi fácil “a banda separou-se porque tudo começou a ter filhos, eu própria tive o meu primeiro filho e foi necessário abrandar a vida louca que levávamos, na música. Custou-me o fim da banda, estávamos muito bem, tínhamos cinco álbuns editados, mas última tour foi muito cansativa. Foi emocionalmente pesado tomar esta decisão”.

Mais afastada da música, cruza-se, em Londres, com Tédio Boys + The Parkinsons, dos quais temos de dar destaque a Victor Torpedo (músico português – Tédio Boys, The Parkinsons, Blood Safari, The Great Moonshiners Band) que a resgata, de novo, para a música, (mais o coração), e “decidimos mudar-nos em 2009 para Portugal, para Coimbra, onde o Victor tinha a família e casa. Já tínhamos formado os Tiguana Bibles, (2008), estávamos a começar a ir a algum lado com a banda e em Londres o dinheiro era sempre curto. Eu também estava determinada a não regressar à Escócia e adorava Portugal.

“Os Jigsaw têm sido, desde o primeiro minuto, uma grande fonte de inspiração e dupla com quem tanto gosto de trabalhar, sendo eu agora, também, parte dos The Great Moonshiners Band que os acompanham, em alguns concertos.”

Como Tiguana Bibles – Tracy Vandal, Victor Torpedo, Kaló (Tédio Boys, Bunnyranch), Pedro Serra (Ruby Ann & The Boppin’Boozers, The Great Moonshiners Band), e Augusto Cardoso ( Bunnyranch) – com a “ajuda preciosa de Mr. Boz Boorer (braço direito de Morrissey) editámos o nosso primeiro EP em Portugal – ‘Child of the Moon’ e mais tarde o nosso primeiro e único álbum ‘In loving Memory Of…’, dedicado a Paul Hofner, guitarrista e amigo que faleceu antes de ver o álbum editado.” Após este bom e bem vivido projeto, terminado em 2012, era hora de seguir por outros e novos caminhos e… surge o cantar, sempre que era e é devido e apetecido, com os portugueses a Jigsaw “numa relação musical que começou com um convite para cantar ‘Lovely Vessel’, no penúltimo álbum deles. Os Jigsaw têm sido, desde o primeiro minuto, uma grande fonte de inspiração e dupla com quem tanto gosto de trabalhar, sendo eu agora, também, parte dos The Great Moonshiners Band que os acompanham, em alguns concertos.

Todavia, além da colaboração e presença em concertos com os a Jigsaw, faltava a Tracy traçar e calcorrear um caminho desconhecido, a solo. É chegado o tempo de compor a sua música, escrever as suas lírica. “A música é disciplina”. Afirma sem hesitar antes de começar a explanar sobre este EP que nos trouxe até esta conversa, de uma tarde. No ar “The end of everything”, “são só cinco músicas, embora algumas bem longas (risos)”, um trabalho que começa a esboçar-se em 2012, numa fase em que Tracy passa muito do seu tempo em casa, num mundo profundamente seu onde se sente bem pois “envolvo-me nos meus sonhos acordados”. Um tempo passado numa luta contra um demónio de nome cancro, um demónio que lhe despertou demónios figurados, numa luta que venceu, com a garra que lhe sentimos a cada palavra dita. É nesta fase que percebe que esse isolamento, (quase) forçado, seria o momento mais que perfeito para criar algo só seu que acaba por ser também de Boz Boorer (músico, compositor, produtor), figura crucial para o consolidar e existir deste EP, com quem Tracy gravou este trabalho no Serra Vista Studio, de Mr. Boz, em Monchique – “fiz o telefonema no dia certo. Tive a sorte de ele ter tempo para me ‘aturar’, naquele momento“. Sem heterónimos, é-nos dado um mundo sonoro carregado de uma certa calma, melancolia, (des)amores… afinal “sou uma rapariga escocesa com um demarcado humor negro e grande parte das minhas músicas são sobre morte e amor ou amor e morte, embora também seja muito mais do que isto. Não tenho medo de cantar sobre a morte, a tristeza ou a solidão, apesar de me verem, quase sempre com um sorriso rasgado, eu tenho este ‘dark side’ (risos). Verdade seja dita, um artista não precisa de se resumir num estilo ou rotular, o importante é mantermo-nos fiéis ao que somos sem seguir modas, sem ter alguém que nos diga o que é que temos de fazer conceptualmente” e tudo com um certo travo acústico onde moram, também, sonoridades mais digitais.

Mr. Boz Boorer, que é um amigo incrível, no dia em que cheguei ao estúdio começámos logo a trabalhar. Numa noite ele apreendeu as minhas músicas e já as tocava todas na manhã seguinte. Sim, ele é um multi-instrumentista ímpar.

Straight to the stars”, “On this hill”, “Once a sunset” o trio de arranque que nos dá uma Tracy serena, num ritmo natural “apesar de a música que eu gosto de sentir e ouvir ser new wave, eletrónica…”, electrónica que nos chega com “Ex-codes” sem que a voz, etérea, deixe o ritmo calmo, voz que é quase hipnotizante, impossível perdê-la, deixar de lhe dar a nossa total atenção. Ritmo expressivo que volta a sentir-se bem na última música, homónima ao EP, “The end of everything”. Para nós, reflexo puro de momentos de altos e baixos, de uma voz que acabou por se tornar mais densa.

Ainda nas voltas dos temas de cada uma das cinco músicas “há musicas sobre amor, sobre o sonhar acordado, sonhar à noite, e tanto mais” e há o desejo que “quando tu ouves uma música tu cries um filme na tua cabeça e que cada um crie um filme diferente para uma mesma música” é esta a intenção clara na música de Tracy Vandal, deixar a nossa imaginação soltar-se a cada música ouvida, “não quero sugestionar, quero que se sintam livres de criar cenários quando ouvem a minha música“, neste EP tocado a meias com “Mr. Boz Boorer, que é um amigo incrível, no dia em que cheguei ao estúdio começámos logo a trabalhar. Numa noite ele apreendeu as minhas músicas e já as tocava todas na manhã seguinte. Sim, ele é um multi-instrumentista ímpar. Ele fez as alterações que eram necessárias e em quarto dias tínhamos quatro músicas concluídas; faltava a última que começou serena e ele transformou-a numa música bem mais enérgica, que sentes que podes até dançar. É a primeira vez que tenho uma música que sinto podes passar numa Disco (risos).

“Quis ser eu, ser o meu nome, sem personagens. Sou eu a fazer o que quero, o que gosto. Sem heterónimos.”

Já com a tarde a sair e a noite a cair, persistia a dúvida se este EP não seria um aviso à navegação, um abrir caminho para futuros trabalhos de longa duração e a resposta foi um claro “sim, isto é um aviso à navegação de ‘hey, eu estou aqui!’ e o optar por usar o meu nome tal como ele é, incomum, torna-se fácil de destacar. Quis ser eu, ser o meu nome, sem personagens. Sou eu a fazer o que quero, o que gosto. Sem heterónimos. Quero ser a Tracy que um dia toca mais lento, noutro dia é mais electrónica. Ser livre na minha música.

© Mutante.

Provas tiradas, “The end of everything” afinal não será o fim de tudo, mas sim um começo de tudo, num universo composto por Tracy Vandal, sem máscaras. De nós, fica o repto para ouvirem e descobrirem este trabalho recente da cena musical. Bons sons, voz tão singular, a seguir de perto.  •

+ Tracy Vandal
+ Boz Boorer
© Fotografia: Carlos Gomes.

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