A festa dos Açores à mesa do Anfiteatro

Os ingredientes são açorianos. Os vinhos são portugueses. Os chefs são d’aquém e d’além mar. O desafio é dar corda à imaginação e criar pratos com produtos que, para muitos, são desconhecidos e servir um menu com os olhos postos no imenso Atlântico.

A escadaria erguida sobre o edifício em forma de anfiteatro convida a espreitar os navios que atracam na marina através da enorme janela rasgada de lé-a-lés, numa parede encenada, que convida a sonhar a ir mais além. Um desejo que é, de certo, partilhado por quem, todos os dias e, em particular, ao longo de quase uma semana e meia, mostra quanto vale, dentro e fora da cozinha.

Falamos do Anfiteatro, o restaurante que faz parte da Escola de Formação Turística e Hoteleira dos Açores, em Ponta Delgada, e palco do 10 Fest Azores que, na 4.ª edição, que decorreu de 18 a 27 de junho, levou à ilha de São Miguel sete chefs além fronteiras – Brian Hansen (Dinamarca), Jordi Puigvert e Oscar F. Albiñana (Espanha), T. J. Delle Donne (EUA), Bruno Timperman (Bélgica), Pierre Sahut (França) e Jamie Kennedy (Canadá) – e três portugueses – Alexandre Silva, Miguel Casto e Silva e João Rodrigues.

Contas feitas são 10 chefs que, durante 10 dias, prepararam 10 jantares com o apoio de professores e estudantes locais e de outros países cujos estabelecimentos de ensino fazem parte da Associação Europeia de Escolas de Hotelaria e Turismo, como a Eslováquia, a Itália, a Estónia, a Eslováquia e Portugal, e aos quais se juntou a dupla de chefs responsáveis pela cozinha do Anfiteatro – Sandro Meireles e Pedro Oliveira – dois mestres, dizem os críticos, ao confirmarem a qualidade do trabalho de ambos, na noite de 19 de junho. Afinal, todos querem aprender mais, saber mais.

A reinterpretação do número 10

O chef Pedro Oliveira, um dos formadores e responsável pela cozinha do Anfiteatro

“O 10 Fest Azores começou em 2012, quando a Escola de Formação Turística e Hoteleira (EFTH) dos Açores fez dez anos, daí o nome de 10 Fest Azores, com 10 dias, 10 chefs e 10 jantares”, explica o diretor da EFTH dos Açores, Filipe Rocha. Um evento “feito com e para os alunos da EFTH”, para o qual os chefs “são convidados por sugestão dos chefs que já passaram pelo festival e amigos nossos aos quais ligamos a convidar”. O desafio? “Usar os nossos produtos – os de base da cozinha açoriana – e ver como cada um cria pratos diferentes com os mesmos produtos”, conta Filipe Rocha. Assim, surge “a oportunidade de partilhar experiências” entre chefs, cozinheiros, professores e alunos da EFTH e das demais escolas que participaram neste festival “marcado pela diversidade de abordagens que os chefs dão à cozinha e às diferentes interpretações”, as quais sobressaem em cada prato que compõem, com criatividade, o desfile, à mesa do Anfiteatro.

Sandro Meireles, chef e formador do restaurante da EFTH, a dar apoio aos alunos que formaram a equipa do chef Pierre Sahut

Nacionalidades à parte, a coordenação esteve na ordem do dia. “Um dos chefs está com o chef da noite e o outro com o chef da noite seguinte”, cada um numa das duas cozinhas, porque “conhecem melhor os estudantes”, justifica o diretor da EFTH dos Açores. Ou seja, enquanto Pedro Oliveira supervisionava a equipa da cozinha do piso superior, onde estava Pierre Sahut, o chef que assinou o repasto de 24 de junho, Sandro Meireles dava apoio aos alunos na cozinha do piso inferior, onde Miguel Castro e Silva punha em prática o menu do jantar de quinta-feira, dia 25 de junho, feito a partir de “produtos da terra revisitados”, para o qual o chef português se inspirou em “dois livros, de um padre, acerca da cozinha açoriana”, falando acerca da pimenta da terra – “é mais picantes do que a que temos no continente, com a qual fazem a pasta” – e da açafroa, que convidou a sentir o aroma, bem como a batata-doce e o funcho, lembrando, ainda, a caldeirada servida nas aldeias da ilha de São Miguel. Quatro dos muitos ingredientes que iriam compôr menu da noite de 25 de junho, que começava com tártaro de chicharro com leite de açafroa e poejo; arroz de açafroa com queijo da ilha e atum selado; encharéu com uvas, açafroa e pimento; gema cozinhada a baixa temperatura, espuma de batata-doce e cavala fumada; polvo com migas de broa e pimento, e funcho confitado; lombo de novilho com batata-doce e espinafre, e molho regional; e pudim de mel, ananás com cardomomo e açafroa, e gelado de requeijão.

Todos os jantares foram brindados com um produtor de vinhos diferente. Para acicatar o palato dos comensais, foram servidos os pães tradicionais dos Açores – o bolo lêvedo, semelhante ao bolo do caco, da Madeira, mas ligeiramente adocicado; o bolo de massa sovada, ideal para acompanhar a alcatra da ilha Terceira, segundo a recomendação dos presentes à mesa; e o pão caseiro, que é usado já duro nas sopas das Festas do Espírito Santo, celebradas no arquipélago.

Da Bélgica para São Miguel

O cocktail do mar de Bruno Timperman, o autor do menu com sabor a mar

Bruno Timperman, chef do Bristo Bruut, de Burges, na Bélgica, falou à Mutante sobre o seu menu, de 23 de junho, composto por vegetais colhidos no mar e no campo. “Esse é o meu lado verde”, confessa Bruno Timperman, que ficou encantado com a beleza de São Miguel, na qual “vê um grande potencial”, sendo esta uma ilha “com um grande futuro”, graças “ao solo e clima perfeitos”, razão pela qual aconselha os açorianos a “respeitarem os seus próprios produtos” e a procurarem na natureza o que esta lhes pode oferecer.

À mesa, Bruno Timperman começou a sequência de pratos que nos reportou para “um menu de verão”, segundo Carlos Rodrigues, o enólogo da Adega Mayor, no Alto Alentejo, cujos vinhos marcaram, uma vez mais, presença no 10 Fest Azores, que “coloca a gastronomia de excelência em palco”, frisou Rita Nabeiro, diretora geral da Adega Mayor.

Tapioca de rábano, chicharro marinado e aipo, rábano em pickles e azeite de coentros / Atum, cebola de curtume, dashi e tempura de perrexil
Vitela dos Açores, beringela, tomate, cereja e espuma de molho bearnês / Ananás dos Açores, queijo de São Jorge, amêndoa e mostarda de ananás

Levanta-se o pano e eis o primeiro prato – pargo, pepino, maçã granny smith e emulsão de salicórnia, uma composição harmoniosa num cocktail com sabores bem casados com o Monte Mayor Espumante Bruto 2013. A tapioca de rábano com chicharro marinado e aipo, rábano em pickles e azeite de coentros foi o prato que se seguiu, valendo-lhe o Solista Verdelho 2014. A viagem do atum foi, por sua vez, apresentado em falsas lulas feitas com cebola de curtume, acompanhadas por dashi e tempura do refrescante perrexil – ou funcho do mar –, harmonizado com o Monte Mayor branco 2014, o “bastião” da Adega Mayor, como lhe chamou Carlos Rodrigues. O roteiro pelas águas do Atlântico prosseguem, desta feita, com a abrótea com ervilhas, ruibarbo, camomila, azeite de verbena e manteiga de ruibarbo, um prato equilibrado e cuidado nos sabores, que tão bem rimou com o Solista Pinot Noir rosé 2013.

Da terra, coube as honras à vitela dos Açores acompanhada por um aprazível guisado de beringela, tomate, cereja e espuma de molho bearnês, ao lado de um Monte Mayor tinto reserva 2013.

No fim ficou o doce ananás dos Açores em infusão de gin Bruut, queijo de São Jorge, amêndoa e mostarda de ananás, uma combinação de truz aliado ao Reserva do Comendador branco 2013.

Um chef francês à prova

Pierre Sahut, o chef francês que com o peixe-galo, o grão-de-bico e o chouriço fez um prato muito aprazível

Por sua vez, a noite de 24 de junho foi protagonizada por Pierre Sahut, de 30 anos, natural de Cahors, no sudoeste de França, onde o “prato forte” é o foie gras, um dos produtos que o chef francês preparou na cozinha do Anfiteatro, no âmbito do 10 Fest Azores. Porém, e uma vez que o desafio é trabalhar os produtos açorianos, Pierre Sahut iniciou o jantar com Lapas gratinadas harmonizadas, e bem, com um Cabeça de Toiro Reserva branco 2014, um DOC do Tejo feito a partir das castas Arinto, Chardonnay e Sauvignon-Blanc, seguido da dupla foie gras e tosta casada com um Espumante Quinta do Boição Arinto Extra-Bruto 2008, DOC Bucelas, uma boa escolha do enólogo Carlos Eduardo, para equilibrar a gordura da iguaria francesa.

As lapas marinadas / O polvo, o funcho e o limão
Vitela assada, espinafre, alcachofra e sal de orange pekoe

Do mar, Pierre Sahut escolheu o polvo que, marinado, acompanhou o funcho e o limão, um prato que rimou com a estação quente do ano e com mui apreciado Quinta do Boição Arinto Reserva 2012, DOC Bucelas. O peixe-galo, o grão-de-bico e o chouriço foram os ingredientes principais do quarto prato, feito e apresentado na perfeição ao lado de um Quinta do Boição Special Selection Old Vineyards Arinto 2010, DOC Bucelas e de um Quinta do Boição Special Selection Old Vineyards tinto 2008, DOC Bucelas, feito a partir de Touriga Nacional e Syrah, o mesmo néctar de Baco que acompanhou a saborosa vitela assada acompanhada de espinafre, alcachofra e sal de orange pekoe, servida também com Cabeça de Toiro Special Selection tinto 2010, um DOC Tejo composto pelas castas Touriga Nacional, Syrah e Cabernet Sauvigon, com um caráter aromático intenso que, desde logo, seduziu o palato e passou a preferido nesta harmonização de sabores.

Para rematar, o chef francês elaborou uma taça gelada de ananás dos Açores e coco, uma combinação magistral com Thassos Moscatel 2009, DOC Setúbal, um vinho com aromas cítricos que tão bem rimaram com a frescura do ananás.

Os spots, os workshops e bons sons

O spot de chocolate de Lauren Haas no lounge do Anfiteatro

Na 4.ª edição do 10 Fest Azores houve ações paralelas, com o intuito de “alargar o âmbito do festival a mais pessoas, a mais entidades e a mais intervenientes”, justificou Filipe Rocha. Neste contexto, começamos pelo spot de chocolates de Lauren Haas, chef de departamento da área de pastelaria e panificação na Johnson & Wales University, em Rhode Island, nos EUA que, aos 15 anos enveredou pela pastelaria. Desde então a paixão pelo chocolate tem vindo a aumentar. “Cada vez mais gostava de fazer chocolates”, confessou e, hoje, Lauren Haas diverte-se a fazer bombons de diversos sabores e formas, como os que criou especialmente para o 10 Fest Azores. Uma composição de seis guloseimas de chocolate numa caixa, onde o ananás, a abóbora e o mel locais foram os ingredientes principais, ao lado das amêndoas, do limão e da lima, do pêssego e do pistácio, e do Porto Tawny, além da barra de chocolate com laranja cristalizada e flor de sal.

O cocktail spot e a música ao vivo que animaram as sextas e os sábados, do festival, assim como o bread & tea, que aconteceu uma semana antes de se dar início aos jantares, o qual foi inspirado no ritual do chá britânico, em que o chá dos Açores foi acompanhado pelos pães e doçaria feita por Mitch Stamm, também da Johnson & Wales University.

Da mesma universidade do outro lado do Atlântico marcou presença o chef Michael Makush, que deu voz ao workshop “Healthy Eating”. Sobre o tema, o chef norte-americano – e luso-descendente – falou da necessidade premente de ensinar os americanos a comer melhor e de forma saudável, dando prioridade à fruta e aos produtos hortícolas frescos, devido aos níveis de obesidade registado no seu país, um flagelo que deve ser combatido o quanto antes. Afinal, a comida saudável “além de fazer bem, sabe bem”, razão pela qual Michael Makush se inspira na dieta mediterrânica, onde o consumo de alimentos saudáveis é complementado pelo exercício físico. Mesmo assim, e entre muitas outras linhas mestras da sua cozinha, chama a atenção para o uso de técnicas adequadas na cozinha, “para extrair o máximo do sabor genuíno dos alimentos e sem usar muito sal”, o qual pode ser substituído pelas ervas aromáticas, assim como para a comida processada, “que contém uma quantidade exagerada de sal, açúcar e gordura”.

A gastronomia e a arte

João Couto, o barman que não para!

Entre as ações do evento, Filipe Rocha destaca, ainda, a vertente artística. “Este ano há um prato feito por um designer local e concebido por um ceramista da ilha Terceira. Também fizemos, aqui, em São Miguel, um copo para um cocktail, para um dos quatro cocktails do “nosso barman”, João Couto, os quais fizeram furor nas noites do 10 Fest Azores de 2015. Curiosos? Pois bem, João Couto, um dos 15 finalistas do concurso Barman do Ano 2015, falou sobre os cocktail criados com “a minha equipa”, inspirados “em produtos açorianos”, como “o maracujá, o ananás, a pimenta da terra, o chá, o limão galego, a pimenta da Jamaica, etc.”, e resultantes da “troca de ideias”, sobretudo, com quem está na cozinha.

O refrescante Strawberry mais…ing, uma sonata à estação mais quente do ano

Tome nota: Strawberry maiz…ing, servido no copo de barro açoriano com gelo moído e decorado com pipocas de pimenta da terra, uma analogia à tequilha com sal; K. Maracujá?, uma homenagem “à nossa kima de maracujá, daí ser servido numa garrafa pequena, para fazer lembrar o refrigerante”; Nêspera bêbeda, inspirado na pêra bêbeda, “mas com um toque mais fresco”; e A sour in a sugar pot, servido num açucareiro de vidro.

A Lagoa das Furnas vista do Pico do Ferro / A plantação de chá da Gorreana
A avenida de árvores ancestrais dos jardins do parque Terra Nostra / A belíssima Lagoa do Fogo

Mais não dizemos, pois este é apenas um dos muitos pretextos para partir à (re)descoberta da ilha de São Miguel e (re)visitar o Mercado da Graça, em Ponta Delgada, a Lagoa das Furnas, a emblemática Lagoa das Sete Cidades e Lagoa do Fogo, para contemplar tão imensa beleza à face da terra, provar o tradicional e memorável cozido dos Açores, que das furnas, perto da lagoa batizada com o mesmo nome, são levados para os restaurantes da ilha, sendo o do hotel Terra Nostra um dos mais apreciados. Depois, não há nada melhor do que um passeio pelo jardim secular do parque Terra Nostra, contemplar a flora endémica e nativa dos Açores, as coleções de flores e plantas do hotel, mergulhar nas águas férreas da piscina local e, por fim, beber um chá na Gorreana, a mais antiga plantação de chá da Europa.

E porque os chefs permanecem, hoje, na lente das máquinas fotográficas, a edição de 2015 do 10 Fest Azores contou com o trabalho de dez fotógrafos, amadores e profissionais, para registar cada um dos convidados das dez noites do evento. Assim nasceu o “10 chefs, 10 fotógrafos”, uma exposição composta por uma centena de registos fotográficos que estiveram expostos na Gare Marítima, ao dois passos do Anfiteatro.

Filipe Rocha, o diretor da EFTH, num brinde a uma noite de chefs

Portanto, “o festival é palco destes criadores – chefs, estudantes, designers, ceramistas…”, concluiu Filipe Rocha. Duas mãos cheias – e mais, caso houvesse – de sonhos concretizados e muitos mais ainda para realizar num evento feito a preceito, onde aprender é a palavra que cabe no dicionário de todos. •

+ Escola de Formação Turística e Hotelaria

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