O informal rima com rigor e o tradicional casa com saber fazer. A cozinha é honesta e demarcada pela qualidade dos produtos. A gestão é tão importante quão importante são as disciplinas inerentes à confeção de um prato, sobretudo quando fala de crianças, que tanto adora. Eis a súmula da conversa com João Espírito Santo, o chef do Bistrô4, o restaurante do Porto Bay Liberdade, em Lisboa.
Trecho do interior do Bistrô4
Conte-nos tudo sobre esta paixão sublimada no amor pela cozinha.
Comecei como principiante em 1985, 1986, em Neuchâtel, na Suíça quando, de repente, vejo-me a lavar pratos. No ano seguinte já estava na cozinha, onde tive a sorte de encontrar um chef – na altura o sub-chef da escola [Profissional de Cozinha] de Neuchâtel –, que achou que eu tinha jeito. Matriculei-me na escola, comecei a estudar e a trabalhar, mas tive de voltar para a Madeira, onde conclui o curso. Ou seja, comecei na cozinha aos 26 anos. A partir daí estive quase dez anos sem descansar, com estágios e a recuperar o tempo. Foi um percurso interesse. Agora, com 56 anos – já passaram 30 anos – tenho a noção que fiz tanta coisa enquanto cozinheiro, além de ter trabalhado numa empresa de venda de máquinas de cozinha, porque sempre quis aprender como se fazia o layout de uma cozinha, e ter feito estágios pela Europa e a dar formação na Escola [Profissional] de Hotelaria [e Turismo] da Madeira. Eu que raramente ia à cozinha, de repente apercebi-me que era o meu mundo.
“(…) em Portugal, as escolas deveriam ter uma disciplina de cozinha.”
Um mundo que também pertence aos mais novo.
Adoro trabalhar com crianças. Acho que, em Portugal, as escolas deveriam ter uma disciplina de cozinha. Afinal, quando está em casa e fala de cozinha tem de saber economia para gerir, tem de saber fazer contas – somar, dividir, multiplicar e subtrair –, tem de saber geografia para descobrir a proveniência de cada produto, tem de saber ciência… Por isso, a escola deveria ter um papel mais interativo neste contexto.
E porque ainda há crianças que julgam que os produtos vêm dos hipermercados.
Por isso é importante que saibam que não há uvas durante todo o ano. É importante que tenham conhecimento em relação aos hemisférios, às estações do ano.
Porém, o percurso pela gastronomia começou numa época em que a informação era escassa.
Sou do tempo em que a cozinha era feita por intuição, não havia a informação científica que, hoje em dia, os cozinheiros têm à disposição. Em contrapartida, hoje em dia tenho colegas que deixaram de ser farmacêuticos, arquitetos e engenheiros para serem cozinheiros. É incrível que este fenómeno esteja a acontecer só agora, pois já aconteceu na Europa há uma década. De qualquer modo, estejamos a ter uma geração de chefs fabulosos e que vão fazer uma cozinha de qualidade. Sem dúvida!
Uma cozinha de qualidade sem esquecer a cozinha portuguesa.
Sempre considerei a cozinha portuguesa fantástica. Somos muito tradicionalistas e muito românticos à nossa maneira e o turista que vem cá continua a acreditar no nosso turismo e, apesar de termos chefs com uma cozinha de vanguarda, acho que a cozinha portuguesa ter de ser tal e qual como ela está, adaptando-se às novas tendências e com o devido respeito pelo equilíbrio nutricional. Mesmo quem opta por uma cozinha moderna, de vanguarda, volta sempre à base, à comida da mãe ou da avó. É uma comida sofisticada – são experiências –, mas não é para comer todos os dias.
Peixe da costa acompanhado por cuscuz madeirense
O que nos diz acerca da gastronomia madeirense?
As ilhas têm a particularidade de, no passado, terem vividas isoladas. Por isso, desenvolvemos os produtos, basicamente os que eram mais importantes no dia a dia, o que impôs uma gastronomia muito resumida e muito delimitada também pelo espaço. A Madeira é, contudo, muito indisciplinada na gastronomia. Há a espetada, o ícone da nossa ilha, na zona do Estreito [de Câmara de Lobos], um prato tão simples e tão bom – o espeto, o alho, o louro e o milho – que representa a Madeira, há as lapas, que são fantásticas, o milho – a polenta – e pouco mais. Há uma cozinha internacional muito vincada por causa dos hotéis. E há a doçaria conventual – o bolo de mel, as queijadas. Não temos uma doçaria tão rica como a do continente, mas eu uso uma gastronomia madeirense muito honesta, muito simples, muito popular. A nossa maior aposta são os produtos – o peixe, a carne, os frutos. Temos um património muito rico à mesa, em relação ao qual destaco o nosso cuscuz, que temos aqui no restaurante e que é tradicional – em Portugal só existe no norte [em Trás-os-Montes]. A Madeira mantém essa tradição, – desenvolveu um cuscuzeiro em barro madeirense, onde o cuscuz é feito com farinha de trigo e segurelha ou tomilho. Por sua vez, o peixe sempre foi muito trabalhado, como as cavalas com molho de vilão.
Como é que veio aqui parar?
Vim à boleia do Benoît [Sinthon] e do Grupo Porto Bay. Perguntou-me se estava disponível. Como gostaria que viesse, aceitei o convite do Benoît, para estar à frente da cozinha do Bistrô4 cujo conceito tem a assinatura dele.
“Há requinte numa comida servida num tacho (…)”
Como é a cidade das sete colinas aos seus olhos?
Já tive a minha experiência na cozinha de um restaurante de Lisboa, nos anos 1990’, mas não gostei. Hoje, a cidade está diferente. Desta vez vim de corpo e alma.
Veio de corpo e alma para um restaurante com um conceito francês, a bistronomie.
O conceito bistronomie está aqui muito bem definido. É a comida que gosto de fazer, a comida de coração, em que olhamos muito para o produto e trabalhamos o paladar, numa cozinha informal, tal como este espaço, que também é informal. Sou um chef muito informal, mas gosto de tudo muito bem feito, feito com rigor, com luxo. Um luxo informal em que as pessoas se sintam descontraídas. Há requinte numa comida servida num tacho – há pratos que vão bem num tacho, como o arroz – e num ambiente genuíno. Tem sido uma experiência muito interessante.
Omeleta de camarão com cebolinho e molho de crustáceos é um dos pratos mais aclamados da carta
A qualidade do produto é transversal na opinião dos chefs, o que requer conhecimento.
Temos de ter sempre muita atenção quando compramos produtos, porque o produto é 80 por cento da cozinha, 20 por cento é técnica. Temos o melhor peixe do mundo, como dizem, mas se não tivermos atenção compramos peixe de aquacultura, o que é tão frequente em Lisboa, pelo que é importante que o conheçamos bem. Temos grandes produtos, mas há que os procurar. Há um plano de rentabilidade a cumprir e uma qualidade que é exigida, daí não termos produtos considerados de luxo. Para mim, uma batata vale tanto como uma trufa, por isso, para mim, é mais fácil optar pela qualidade. Essa é a grande vantagem desta cozinha, que prefiro chamar de cozinha honesta.
“É um conceito francês, mas a comida tradicional encaixa-se muito bem.”
Quem escreveu a carta?
Fomos os dois. Porém, o chef Benoît [Sinthon] será sempre a alma deste restaurante e é um privilégio o facto de me ter dado alguma liberdade. Além de ser um amigo, é alguém que fez muito pela cozinha madeirense. Para mim é um dos melhores chefs de Portugal. Quando preciso sei que posso contar com ele. Quanto ao conceito – voltamos ao conceito – a bistronomie tem uma grande vantagem, pois permite que coloquemos pratos portugueses na carta. É um conceito francês, mas a comida tradicional encaixa-se muito bem. Então o Benoît disse-me: ‘Eu construo a parte francesa; tu constróis a parte portuguesa.’ Ao mesmo tempo, tentamos respeitar a premissa do grupo [Porto Bay] – Madeira, Algarve, Lisboa e Brasil –, ou seja, tentamos trazer o perfume de cada um desses destinos sem dar ênfase a um sítio em particular, tornando-se, assim, muito interessante, devido a essas viagens que vamos fazendo ao longo da carta.
Lente com vista para a carne maturada
Só para acicatar a curiosidade, terminemos com a carne maturada.
Não vou além dos 30 dias. Eu explico: Há uns anos tive uma formação numa grande escola de cozinha da Bélgica, a qual era frequentada por alunos que começavam a ter aulas de cozinha aos dez anos e vi alunos de 15 e 16 anos a desmanchar um borrego, a fazer charcutaria, a maturar carne. Fiquei babado! Uma das melhores escolas da Europa onde a carne era maturada e, depois, afinada – primeiro matuta-se, depois há que afinar. Tem a ver com o Ph que lhe dá a informação sobre as condições em que o animal foi morto, além de determinar a cor, a consistência, a textura, o que o animal comeu… É muito complexo. Esta tem sido uma das minhas maiores experiências.
Por tudo isto, resta-nos desejar-vos uma boa viagem e um bom apetite no Bistrô4 do Porto Bay Liberdade (leia a reportagem aqui). •
+ Porto Bay Liberdade
© Fotografia: João Pedro Rato Fotografia
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