Oferecida pela Santa Casa da Misericórdia à cidade do Porto, a escultura de Rui Chafes, agora visível na Rua das Flores, faz parte do Programa de Arte Pública criado pela Câmara Municipal em 2015.
Foi no dia 15 de Julho, quarta-feira: ao mesmo tempo que se inaugurava o novo Museu da Misericórdia do Porto (MMIPO), seria oferecida à cidade, pela Santa Casa da Misericórdia, a obra O Meu Sangue é o Vosso Sangue, de Rui Chafes. Integrando o Programa de Arte Pública iniciado pela Câmara Municipal do Porto em 2015, a escultura há-de relacionar-se com uma emblemática pintura que agora se pode observar no museu em sala exclusiva: Fons Vitae, de autor quinhentista envolto em mistério (a descrição constante na SCMP atribui diversas possibilidades: Colijn de Coter, Bernard van Orley, ou uma oficina próxima do círculo bruxelense). Portanto, temos por um lado um autor misterioso, por outro, um escultor que acredita no segredo da obra de arte, que julga perdido desde o modernismo, e que indubitavelmente entende dever permanecer. Dialecticamente, com efeito, o segredo raramente resiste à devassa do microfone e da câmara: reportagens do despudor.
Dando voz a Rui Chafes: “o confronto com a rigorosa fachada barroca de Nasoni, a austeridade formal dos edifícios da Santa Casa e o cristalino rigor da pintura Fons Vitae criarão um ponto de grande tensão visual e emocional, ligando o interior e o exterior, o céu e a terra, a água e o sangue, numa imagem evocadora da vida e do martírio. Será uma veia de sangue entre Jesus Cristo e os Homens, entre Jesus Cristo e a Terra. Será uma veia que una tudo isto.” Palavras que constam da placa que se coloca na parede ao lado da sua escultura O Meu Sangue é o Vosso Sangue, que se inicia em arco no interior da sala onde permanece, então, Fons Vitae. Ou seja, existe uma sobreposição quase musical no que à forma diz respeito: efeito (fachada barroca), lisura (edifícios da Santa Casa), rigor (pintura), irrupção (escultura). Crisálida em descanso, despida de medo, aguarda o momento exacto do seu jorramento. Essa tensão remete-nos para um aspecto fundamental na obra do escultor: a explosividade potencial das intensas florações que são amiúde as suas ideias envelopadas de ferro. A “veia que una tudo isto” é uma ideia: mas daquelas que se cravam na carne e dela irrompem, por sua vez.
Em Fons Vitae diferenciam-se os planos celeste e terrestre: olhar o alto é sinal de elevação espiritual. Rui Chafes, ao estabelecer um arco entre Fons Vitae e a rua, interrompido milimetricamente, uma vez que entre a veia e o seu jorramento se verifica um espaço vazio, vem alagar aquela do próprio sangue de Cristo. Todavia, o movimento alternado igualmente se verifica: de baixo para cima, como se de facto a estrutura de ferro fosse uma espécie de transfusão, aludindo tanto ao movimento que, num gesto apenas, religa tempos e espaços diferenciados; como à própria comunhão das gentes com Cristo. Então: O Meu Sangue é o Vosso Sangue. Uma veia-ideia congelada pela firmeza conceptual do escultor, mas igualmente um “mecanismo” de vida, se fecharmos os olhos e golpearmos com uma lâmina pura o coração. Já Bernardo Pinto de Almeida dedicou um estudo a Rui Chafes que intitulou de Doce Flor da Desordem: não podíamos estar mais de acordo!
A obra pode observar-se na Rua das Flores, na fachada do MMIPO, mas começa no seu interior.