A gastronomia está para o vinho, assim como o vinho está para a gastronomia, um assunto que permanece nas mãos de Ricardo Gonçalves, o chef, e de Nelson Guerreiro, o escanção. Afinal, é de boca e de nariz que falamos, pois assim se faz a eleição de sabores e aromas, ora no copo, ora no prato, de um espaço onde a coleção de vinhos expostos são portugueses e continuam a dar cartas ao lado de uma carta, agora, de verão, na Enoteca de Belém, em Belém, Lisboa.
Começamos pela gastronomia e pela carta de verão assinada pelo chef lisboeta Ricardo Gonçalves, de 31 anos, cujo gosto pela cozinha começou na infância, época em que já gostava de fazer misturas e testar ligações. Daí até chegar à Enoteca de Belém, o percurso foi longo e, hoje, continua a pesquisar ligações de sabores de pratos do nosso receituário com um toque da cozinha nipónica e da italiana. Resultado? Uma cozinha [um pouco] internacional, com a qual se possam identificar os comensais, sobretudo, de fora de portas, ou não fosse Belém um dos paraísos turísticos da cidade das sete colinas.
Tártaro de salmão, com líchias, tomate e rúcula, na companhia do duriense Altano branco 2014
Vamos ao curso e ao percurso até chegar aqui, à Enoteca de Belém.
Tirei o curso muito cedo. Aos 16 anos começava na antiga Escola de Turismo de Lisboa, nas Olaias – agora é em Campo de Ourique. Terminei o curso em 2002 e o meu primeiro emprego foi no Sheraton Algarve [Hotel], onde já tinha estagiado. Depois fiz a abertura do Hotel Marriot [o atual Praia D’El Rey Marriott Golf & Beach Resort], em Óbidos, no final de 2003, onde fiquei até finais de 2004 — foi uma experiência interessante. Vim para Lisboa, para um hotel/resort de cidade, ao que se seguiram os restaurantes – o Bica do Sapato, na altura com Fausto Aroldi como chef e, depois, numa altura em que o sushi estava a crescer em Portugal, decidi estagiar durante um mês com o chef Paulo Morais, em Oeiras, para trabalhar a cozinha japonesa. Findo o mês fui para o Vírgula, no Cais do Sodré, onde aprendi muito. Foi uma experiência fantástica e quase o auge da minha carreira! Sai do Vírgula e rumei ao norte Inglaterra, para um restaurante italiano, a convite de colegas de curso. Quando cheguei a Portugal recebi a proposta para ser chef de cozinha de um restaurante italiano, no Bairro Alto, onde estive cinco anos, aos quais se seguiu a abertura de um restaurante no Terreiro do Paço – uma experiência curta – até ao dia em que eu e o Nelson [Guerreiro] falámos e vim para a Enoteca de Belém. Portanto, estou aqui há três anos. Costumo dizer que esta é a minha casa e estou feliz por ter entrado no mundo dos vinhos.
Já trazia a cultura do vinho na bagagem?
A cultura do vinho não veio comigo. Gostava de brancos, não bebia tintos… Então, o Nelson [Guerreiro] e o Ângelo [Santos], na altura, começaram tudo de novo, para que eu conseguisse perceber alguma coisa.
Como foi feito o equilíbrio entre o vinho e a gastronomia?
Eu fazia os pratos e o Nelson provava para, depois, ir buscar os vinhos que ligavam com esses mesmos pratos. Uma das grandes vítorias que tive foi quando cheirei um vinho e não senti o cheiro do álcool. A partir daí comecei a perceber os aromas e a fazer pratos que harmonizassem com o vinho.
Farinheira com creme de espargos, ovo escalfado e azeite de trufa, um clássico descontruído harmonizado com um Ninfa Escolha Pinot Noir 2011 e um Vale da Capucha Alvarinho 2012
Desde então ideias vão sempre parar às suas mãos?
Todas as ideias são bem-vindas. Mas desde o início que tive de ter atenção ao sal, ao vinagre, ao limão, ao picante, produtos que podem alterar o vinho na boca. Hoje em dia consigo usá-los, porque já sei qual é a dose certa de cada um e se é possível ou não fazê-lo.
Na enoteca o vinho é rei. Porém, a carta é feita para o vinho ou o vinho é escolhido para a carta?
Eu faço um prato. A parte difícil é provar esse prato com vários vinhos para encontrar aqueles que melhor fazem a ligação e todos temos de chegar a uma conclusão. Assim, sempre que um cliente se senta podemos aconselhar vários tipos de vinhos que vão de encontro com aquele prato. Podemos achar que há um vinho que é o indicado, mas por uma questão de gosto do cliente temos de ter sempre mais do que uma solução.
“Tentamos fazer sempre a harmonização com o prato, pelo que raramente sugerimos uma garrafa ‘inteira’.”
A copo ou a garrafa?
Tentamos fazer sempre a harmonização com o prato, pelo que raramente sugerimos uma garrafa ‘inteira’. Ou seja, sugerimos a copo, para uma degustação que é feita no momento — numa mesa onde está um casal, um come carne e o outro escolhe o peixe, por exemplo, pois não temos menu de degustação –, o que permite provar mais da gastronomia e muitos mais vinhos – só vinhos portugueses.
Voltemos aos pratos. O que mais aprecia na cozinha portuguesa?
A diversidade, sobretudo. Gosto muito da cozinha alentejana e da do norte. Qualquer região que eu vá encontro sempre pratos que gosto muito.
Dão-lhe inspiração?
Tento inspirar-me neles – já tentei mais vezes –, mas quando queremos dar-lhes uma apresentação mais contemporânea não é fácil. No entanto, tento trazer esses sabores para o prato.
Estamos de veraneio à mesa e os cinco sentidos alerta. Qual é o desafio do chef?
Temos várias maneiras de o fazer. Temos pratos que são terminados à mesa pelo Nelson [Guerreiro] e outros que têm aromas bastante intensos, como o da farinheira, com óleo de trufa, e outros com crocantes… Uso poucos ingredientes em cada prato e pouco temperos, para que o vinho seja o ingrediente que complementa o prato. Na realidade, o prato certo com o vinho certo faz todo o sentido, o que resulta sempre numa experiência interessante. Mesmo na cozinha utilizo muito o vinho nos molhos.
Atum com legumes salteados, molho de alcaparras e anchovas e Travessa da Ermida tinto 2011
O peixe está em alta, como tão bem apetece nesta época do ano. De onde vem e como os apresenta?
É sempre o mais vendido. Temos polvo, de Olhão, o atum, dos Açores, com o peixe-galo, e o bacalhau — descobri que o cachaço de bacalhau tem uma gordura e uma salinidade inacreditáveis, do qual faço um bacalhau “à Assis”.
Do mar avistamos terra. De que terras vem a carne e que carnes?
O bife de novilho vem do norte — de Fafe; o pato, que transformo para fazer uma empada de pato; as bochechas de porco – da mesma proveniência do bife –, as quais faço com uma açorda de coratos e torresmos, vinagre, azeite e cebola, tomate e maçã, a puxar pela cozinha alentejana; e o veado – era uma ideia que o Nelson tem desde há muito tempo, que é um veado com chocolate – um molho de ginja, vinho tinto e chocolate — e com a parte vegetal da ervilha, o que ficou fantástico. Sobre o bife à Portuguesa, há uma história com um senhor coreano que provou e gostou muito, regressando três dias depois, para repetir o prato. Um mês passou e reparámos que tínhamos muitos clientes coreanos que queriam o bife – já sabemos como se diz ‘bife’ em coreano. Soubemos que o senhor é dono de um hostel na baixa e a todos os coreanos, que ficam no seu hostel, diz para virem comer o bife se vierem a Belém; e descobrimos que há um site na Ásia e um na Austrália que ‘diz’ que temos o segundo melhor bife da Europa. Agora faço com esparregado, cogumelos e funcho.
Já na horta, os legumes vão para o prato em boa companhia. Mas será apenas por isso?
Além de não usar muitos ingredientes, como já o disse, tenho sempre em atenção ter sempre um ‘verde’ no prato, para que cada cliente tenha uma refeição completa e para equilibrar com a proteína e os hidratos [de carbono].
As três texturas de chocolate e o gelado de ginja
Dietas à parte, as calorias são sempre bem-vindas com a moderação recomendada. O que nos traz esta nova carta à sobremesa?
Tentei inspirar-me na doçaria conventual, mas confesso que não é fácil – apesar de já ter tido o pudim Abade de Priscos que, para mim, é tudo! Optei por ir buscar sobremesas mais leves e não tão doces. Tenho uma tradicional, uma com chocolate, uma com fruta e uma contemporânea, para equilibrar a escolha. Há uma torta de laranja com pimenta rosa e chocolate; há um chocolate, com três texturas, e uma boa de gelado de ginja e uma redução de ginja; há o crumble – é uma questão familiar, porque a minha mulher faz muito bem sobremesas –, que é um cheesecacke desconstruído, em que o creme, de figo, vem à parte com o doce, e a base, em vez da tradcional de bolacha, é feita com bolinhas e leva uma redução de moscatel; e uma outra, que é mítica, de leite creme queimado e massa folhada, e uma bola de gelado de café. No fundo, é como se fôssemos ali pedir um pastel de nata e um café.
Falar de vinho com quem sabe
Porque a harmonização é o prato forte na Enoteca de Belém, passamos a palavra a Nelson Guerreiro, de 38 anos. Eis o escanção, natural de Lisboa, que tão bem conhece os cantos à casa que viu abrir as portas a enófilos, de dentro e fora de portas, em 2009, onde o vinho português é rei e ornamenta as paredes deste espaço em que as boas novas – esta sobre o Travessa da Ermida tinto 2011 – são sempre bem-vindas, sobretudo quando reveladas numa conversa harmonizada por pedidos de sugestões com resposta pronta sobre que vinho servir na ponta da língua.
Travessa da Ermida tinto 2011 feito a partir das castas Syrah, Cabernet Sauvignon, Touriga Nacional e Baga
O que estão a magicar no que toca aos vinhos?
Como todos os anos é hábito, e como não temos produção própria, o que fazemos é identificar uma região e um produtor com o qual nos identificamos – por causa do estilo ou por causa das castas. Ou seja que tem algo de peculiar o características que, no nosso entender, dá para fazer o nosso vinho. Assim, compramos parte da produção e fazemos o nosso blend. Talvez tenha sido o mais difícil de fazer, porque a qualidade e a oferta eram tão grandes que ficámos baralhados. O processo das provas dos lotes davam para fazer cinco ou seis vinhos diferentes.
Qual foi a região contemplada pela vossa escolha?
No ano passado fomos para a Bairrada. Falámos com o Álvaro [Roneberg], das Caves Messias, que foi o nosso interlocutor durante todo este processo, e com o João [Soares], o enólogo. Experimentamos Baga, Merlot, Cabernet… que tinham da colheita de 2011. Todos nós fizemos as provas. Fomos provando, misturando as castas… Estávamos indecisos com dois lotes – um Baga com Merlot –, mas seria um vinho extremamente difícil, que iria precisar de mais estágio, ou seja, não seria um vinho gastronómico. Assim, optámos por fazer um vinho a partir de Syrah, Cabernet Sauvignon, Touriga Nacional e Baga. Depois pensámos nos rótulos – a ideia é do dr. Eduardo [Fernandes, o mentor e detentor da Enoteca de Belém e da Travessa da Ermida] – e todas as pessoas da Enoteca que participaram e fizeram o lote têm a sua fotografia nas garrafas – há 250 de cada.
Depois de servido no copo, aguardamos uns quantos minutos preenchidos por uma boa conversa à parte, até ao momento de provar o vinho.
A Touriga Nacional já não está tão exuberante, estamos a sentir uma certa comichão no nariz, devido às pimentas do Cabernet Suavignon e do Syrah, temos fruta madura, de boca temos secura, mas também acidez – a acidez é uma característica que aprecio muito no vinho. Vejamos, se tivermos um prato, como o do Ricardo [Gonçalves], com atum e um molho de anchovas e alcaparras que será salgado, e a maionese, que é um ingrediente gordo e, ao lado, há uma compota de cebola roxa, vinagre balsâmico, que tem açúcar e é ácido, sentimos muitas sensações na boca. Portanto, tenho de ter um vinho com acidez, estrutura e estágio em madeira, que lhe dá corpo.
“No fundo, as pessoas vêm aqui à procura de respostas sobre o vinho.”
Mas afinal, o que é a Enoteca de Belém?
No início não tínhamos a parte gastronómica. Serviamos apenas vinho e tínhamos a cozinha ‘de corte’. Hoje, continuamos a ser uma enoteca. No fundo, as pessoas vêm aqui à procura de respostas sobre o vinho.
Vale da Capucha Alvarinho 2012, um Vinho Regional de Lisboa que apetece ‘comer’, e Altano branco 2014, do Douro, que rima na perfeição com o verão
Se dúvidas houver, o melhor é sentar-se à mesa da Enoteca de Belém, na Travessa do Marta Pinto, em Belém, Lisboa, para conhecer o que Ricardo Gonçalves faz na cozinha e provar os vinhos portugueses recomendados por Nelson Guerreiro. Foi o que fizemos, a par com bons néctares de Baco cujas novidades não vão parar por aqui…
Um brinde e bom apetite! •
+ Enoteca de Belém
© Fotografia: João Pedro Rato
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