Memórias da infância à mesa do Vila Joya / Tribute to Claudia

CrEATive Portugal foi o mote para que, na noite de 14 de novembro, Dieter Koschina juntasse chefs dos restaurantes de Portugal com estrela Michelin — e não só – na sua cozinha, durante o festival que prestou homenagem à sua fundadora, Claudia Jung.

“A ideia consiste em trazer a comida típica portuguesa e aplicar as nossas técnicas, conferindo-lhe inspirações mais modernas”. Explicação foi dada por Dieter Koschina, o chef austríaco que, há 24 anos, tem nas mãos o restaurante (2 estrelas Michelin) do Vila Joya, em Albufeira, o qual, na noite de 14 de novembro, deu um sabor especial à “cozinha do antigamente”, como disse o anfitrião dos bastidores do restaurante do Vila Joya, em entrevista, à Mutante (leia aqui a entrevista na íntegra).

Em resposta ao desafio, muitos dos 12 chefs – 13, no total, contando com Dieter Koschina – levaram na bagagem os pratos que mais apreciavam em tempos idos, embora houvesse quem prestasse, simplesmente, tributo à nossa gastronomia em pratos que fizeram jus à criatividade.

Sanduíche de barriga de atum com molho francesinha, o reflexo da criatividade de Ricardo Costa

No alinhamento do menu, as honras couberam a Ricardo Costa, o chef do restaurante (1 estrela Michelin) do The Yeatmen, em Vila Nova de Gaia, que apresentou uma sanduíche de barriga de atum com molho francesinha. “No hotel [The Yeatman] chamamos de francesinha de atum com tosta de barriga de porco de Amarante”. Natural de Aveiro, Ricardo Costa justificou a escolha com o facto de trabalhar no norte do país há cerca de dez, “por isso sugeri pratos que marcaram o meu trabalho, que é a cozinha portuguesa.” Mas qual a receita que gostaria de ter feito? “Os ovos moles”, respondeu sem hesitar o chef que, pela terceira vez, marca presença no Vila Joya por ocasião deste festival gastronómico. “Tenho uma relação especial com esta casa, com o chef Koschina e o Matteo Ferrantino”, o sous-chef italiano do restaurante deste boutique hotel em Albufeira, rematou.

O falso tomate, cuja preparação requer um minucioso trabalho, da autoria de João Rodrigues

Passemos ao segundo prato: Tártaro com lagostim, gaspacho de gengibre e falso tomate, da autoria de João Rodrigues, chef do Feitoria (1 estrela Michelin), o restaurante do Altis Belém Hotel & Spa, em Lisboa. “A ideia foi trazer um prato muito fresco”, em que o falso tomate, criado ao sabor da imaginação do chefe lisboeta, foi servido em água deste fruto e azeite, numa alusão ao gaspacho. “Teria trazido uma feijoada de lebre, mas se a trabalhasse demasiado, fugiria à essência do prato”.

A açorda da infância de Leonel Pereira, na companhia das gambas

Leonel Pereira, chef do São Gabriel (1 estrela Michelin), em Almancil, sugeriu dois pratos, mas entre a canja e a açorda alentejana, a escolha recaiu na segunda. Sobre o prato eleito, o chef natural de Alcoutim reporta-nos para um passado longínquo, em que a açorda era feita com pão, coentros, alho e ovo, ao contrário da sua infância, “tempos mais abastados”, em que a açorda já levava camarão, daí esta açorda de gambas, numa ode às reminiscências em que a subida às árvores fazia parte das frequentes brincadeiras de menino.

Benoît Sinthon foi buscar o cuscuz das memórias de criança e fê-lo acompanhar de carabineiros e lúcia-lima

De Gardanne, perto de Marselha, França, Benoît Sinthon – chef, desde 2004, do Il Gallo d’Oro (1 estrela Michelin), o restaurante do The Cliff Bay, no funchal, ilha da Madeira – levou para terras algarvias o cuscuz “que a vizinha – de origem tunisina – da minha avó, que vivia no andar de cima, fazia quando lá íamos a casa – era cuscuz, com sumo de limão e coentros, e borrego. Por isso, o caldo de carabineiro é feito com coentros e acompanhado por um pudim de funcho, puré de funcho bicolor, mexilhão e carabineiro”, explicou. Agora o prato: Cuscuz da Madeira, carabineiros e lúcia lima.

O polvo à lagareiro saído da imaginação de Miguel Rocha Vieira

O polvo à lagareiro, assinado por Miguel Rocha Vieira que, desde agosto deste ano, desempenha o papel de chef na cozinha do restaurante (1 estrela Michelin) do Fortaleza do Guincho, em Cascais, foi o prato que se seguiu e “o prato que eu gostava de comer quando era criança”. Apesar da composição ser uma descontrução da receita original, “tem tudo o que tem o prato tradicional” – foi servido com uma terrina de rabo de porco, porque as pontas dos tentáculos do polvo parecem um rabo de porco, e será um dos pratos que irá constar na nova carta de outono/inverno do restaurante Fortaleza do Guincho.

Os preparativos do bacalhau e as suas ovas pelas mãos de André Silva

Do norte, André Silva, chef do Largo do Paço (1 estrela Michelin), o restaurante da Casa da Calçada, em Amarante, apresentou o bacalhau e as suas ovas, uma salada de bacalhau que, “apesar de não ser genuinamente português, sempre fez parte da nossa gastronomia” e que consta na carta do Largo do Paço, e acerca do qual o chef afirma que “está a ser um sucesso”, reforçou.

As recordações dos pratos que Miguel Laffan mais apreciava na infância estão representados neste tamboril com puré de funcho e caldo de bivalves

De Cascais, onde nasceu, Miguel Laffan – chef do L’And (1 estrela Michelin), do L’And Vineyards Resort, em Montemor-o-Novo – levou os sabores dos tempos de criança. “Os pratos que recordo da minha infância são o marisco, a caldeirada, o bouillabaisse (sopa ou guisado feito à base de várias espécies de peixe com vegetais e ervas aromáticas).” Foram, portanto, estas as iguarias que Miguel Laffan transportou para o seu prato, com o tamboril como protagonista – “marinado numa salmoura de açafrão, laranja e anis e servido com um puré de funcho, temperado com caldo de bivalves e limão confitado, e folhagens marítimas e algas”.

O salmonete, o choco e as alcaparras do legado da cozinha portuguesa de Pedro Lemos

De novo a norte, desta vez da cidade do Porto, Pedro Lemos, chef do restaurante com os mesmo nome, na Invicta – o qual, em novembro de 2014 conquistou, pela primeira vez na sua história, uma estrela Michelin –, apresentou o salmonete – “um dos peixes desta época do ano e porque uso o que a Natureza me dá” –, o choco e as alcaparras num prato que representa o fumeiro, como legado da mãe e, em simultâneo, o peixe, numa alusão ao negócio com o qual o pai estava ligado, daí a combinação do salmonete courado com o choco braseado servido com puré de batata, azeite e a alcaparra, “a azeitona curtida” colocando, assim, à mesa, “o que a terra dá nesta altura do ano”, justifica o chef nascido na Invicta há 36 anos, deixando transparecer o gosto pela cozinha portuguesa, pelos “sabores deste percurso da tradição”.

Dieter Koschina em festa na noite desenhada sob o tema CrEATive Portugal

Já Dieter Koschina, chef do Vila Joya (2 estrelas Michelin), restaurante do boutique hotel homónimo, em Albufeira, apresentou a sua cataplana cujos ingredientes-base do molho foram revelados pelo chefe anfitrião – “vitela, amêijoas chili, cebola, pimentos, tomate e alho” –, ao qual Dieter Koschina adicionou a vitela, as amêijoas e os percebes.

José Avillez a preparar o cozido à portuguesa

Da nossa cozinha, José Avillez, chef do Belcanto (2 estrelas Michelin), em Lisboa – que conquistou a dupla de estrelas em novembro do ano passado –, optou pelo cozido à portuguesa reinterpretado, porque “faz lembrar a minha infância, além de que é um prato de matriz portuguesa” composto, “essencialmente, por caldo, legumes e porco. É muito limpo e, ao mesmo tempo, muito intenso e, por isso, somos transportados para a cozinha portuguesa.” Dos pratos da infância, o chef do Belcanto referiu também o arroz de pato, que comia em casa dos avós, a sopa alentejana e o rabo de boi, entre outras iguarias de peixe, pois recorda-se que, em criança, esteve muito ligado ao mar.

O brasileiro Henrique Leis de olhos postos na composição do seu pombo, musseline de xerém algarvio e suspiro de morcela de Monchique

Henrique Leis, natural do Maranhão, no Brasil, e chef do restaurante homónimo (1 estrela Michelin), em Vale Formoso, Almancil, apresentou, por sua vez, pombo, musseline de xerém algarvio e suspiro de morcela de Monchique. “É a adaptação de um prato da minha infância”, disse-nos o chef do restaurante Henrique Leis (1 estrela Michelin), em Almancil. “A minha irmão mais velha preparava o pombo com fubá de arroz – daí o xerém algarvio – com caldo de piranha, que é muito bom!”, comentou.

Bochechas de porco e queijo açoriano apresentado com a habitual criatividade de Hans Neuner

Hans Neuner, chef do Ocean (2 estrelas Michelin), o prestigiado restaurante do hotel Vila Vita Park, em Porches, também na região algarvia, levou para a noite do CrEATive Portugal bochechas de porco e queijo açoriano, um prato cuja inspiração remete para a história e as memórias de um amigo português, não remetendo, diretamente, para os tempos de criança.

Horta da minha infância, uma explosão de cor assinada por Vítor Matos

De regresso ao passado, Vítor Matos, chef do Antiqvvm, no antigo solar do Vinho do Porto, na Invicta, falou sobre a “horta da minha infância”, o título da sobremesa alusiva aos tempos de criança, tempos esses em que o açúcar valia ouro e, por isso, nem a todas as casas chegava. Por conseguinte, o chef natural da região de Trás-os-Montes, retratou a sua horta como um doce lugar que guarda na memória, composto por a abóbora com requeijão, o tomate e o queijo de Azeitão sem esquecer a beterraba e as avelãs, os morangos silvestres, a hortelã da ribeira, pudim de abóbora inspirado no pudim abade de Priscos, creme de cenoura, creme de beterraba, sorbet de laranja… Uma mão cheia de preciosidades complementadas por um “ato lúdico”, como lhe chamou – o QR code que remeteu os mais curiosos ao site do restaurante cuja cozinha está nas suas mãos e no qual os presentes na noite de 14 de novembro, no Vila Joya, encontraram a explicação sobre a receita da sobremesa.

Agora resta-nos aguardar pelo próximo Tribute to Claudia no Vila Joya e ouvir de novo: “Sejam bem-vindos ao paraíso!” •

+ Vila Joya
© Fotografia de entrada: João Pedro Rato
Legenda da foto de entrada: Os chefs Dieter Koschina, Benoît Sinthon, Pedro Lemos, Leonel Pereira, Henrique Leis, Miguel Rocha Vieira, Miguel Laffan, José Avillez, Ricardo Costa, André Silva e Vitor Matos
© Restantes fotos: Vasco Célio / Vila Joya
+ Agradecemos à DS o apoio na realização da viagem / DS5 Edição Limitada 1955

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