“Posso dizer, hoje, que o Alma é ‘o’ projeto” / Henrique Sá Pessoa

Ao todo são cerca de 40 anos e quase 20 de um percurso notável pela cozinha. Feitas as contas, estão contempladas duas mãos cheias de livros, viagens e programas televisivos que, nos últimos dez anos, lhe deram a consistência necessária para se tornar um chef rigoroso e ávido de conhecimento, de querer aprender e ir sempre mais além.

Tudo começou em 1996 quando, aos 20 anos, Henrique Sá Pessoa decide ir para a Highlands High School, em Pittsburgh, na Pensilvania, EUA, para fazer o 12.º ano, seguindo-se o Pennsylvania Institute of Culinary Arts – que é, hoje, o Le Cordon Bleu Institute of Culinary Arts – na mesma cidade onde, durante um ano e seis meses o chef que, em agosto fará 20 anos de carreira, frequentou o curso de cozinha. Vamos conhecê-lo?

A experiência é um dos alicerces de um trabalho de equipa que Henrique Sá Pessoa se quer rever e ver consistente

Pittsburgh, na Pensilvania, EUA, marcou o início do teu percurso pela cozinha. Por que razão escolheste o outro lado do Atlântico para esse mesmo fim?
Foi ao acaso. Fui para o outro lado do Atlântico através de um programa de intercâmbio cultural e foi lá que descobri a possibilidade de a cozinha ser uma carreira que, na altura, ainda não sabia muito bem o que queria da vida. Gosto de cozinhar, faço umas coisa na cozinha, por isso deixa-me ver o que posso fazer como cozinheiro profissional. Inscrevi-me na escola, fiz os testes admissão, trabalhei durante um ano para juntar dinheiro, com o intuito de voltar para a escola e quando entrei na escola foi amor à primeira vista. Comecei a fazer o curso e foi ‘Uau, é mesmo isto que gosto de fazer!’ Imagino-me a fazer isto durante muito tempo. Senti não só uma vocação, mas também uma paixão. Há coisas que quando fazes pela primeira vez, sentes um click e tive sorte que esse click acontecesse aos 18 anos, porque tens energia, tens vontade.

Durante quanto tempo frequentaste o curso no antigo Pennsylvania Institute of Culinary Arts?
O curso era de uma ano e seis meses.

Apesar do curto período de tempo, foi muito intenso.
Foi muito intenso, porque as escolas de lá são super exigentes. Só para teres uma noção, se faltasses a uma aula, perdias dez por cento da tua nota final; se faltasses a duas aulas, perdias 20 por cento; se faltasses a três aulas, chumbavas. Os períodos de férias eram muito curtos – as férias de Natal e de Páscoa, por exemplo, eram de, apenas, uma semana. Além disso, as aulas eram dadas de rajada e cerca de 70 por cento das aulas eram práticas. E 70 por cento da tua nota final coincidia sobre um exame prático. Ou seja, podias ter ótimas notas na teoria, mas se ao chegares ao exame prático e te ‘espalhasses’ tinhas de dizer adeus ao curso.

Mas a tua alma de viajante levou-te mais longe…
Desde os 18 anos. Aliás a minha cozinha também denota essa minha alma de viajante.

“Fiz mais estágios enquanto chef do que enquanto estagiário ou aprendiz. (…) acho que todos os chefs deveriam fazer isso, porque estás sempre a aprender; por outro lado, estás a testar-te”

Atravessaste oceanos para chegares a Londres, a Sidney e a Lisboa. Apesar do teu percurso te levar a cozinheiro de primeira e a chef estagiaste, já depois disso, no Santi Santimaria (2007), no País Basco, no El Cellar de Can Roca (2011), em Barcelona, e no Tippling Club (2014), em Singapura. O que apreendeste destas experiências, destas viagens?
Fiz mais estágios enquanto chef do que enquanto estagiário ou aprendiz. Além disso, em cada sítio que vás tentas absorver tudo o que podes. Aliás, acho que todos os chefs deveriam fazer isso, porque estás sempre a aprender; por outro lado, estás a testar-te, pondo-te fora da tua zona de conforto e quando o faço, faço-o, acima de tudo, para perceber como é que aquele chef funciona em termos de conceito e o que posso aprender com ele, para adaptar ao meu conceito. Por exemplo, no caso dos Roca, recebi influências na forma de estar, nos elementos de design, da estética dos pratos, no marketing, na visão conceptual deles, apesar de terem uma cozinha muito mais técnica do que com aquela que me identifico. Mas, ao mesmo tempo, são muito terra a terra e cercanos e eu identifico-me com isso. O facto da nossa cozinha [do Alma] ser preta vem daí, porque a primeira cozinha preta que vi foi no [El] Cellar de Can Roca e achei que era antagónico ao que tinha visto até então – a maioria das cozinhas são brancas. Quando vi a cozinha preta disse ‘uau!’. Em Singapura recebi toda a influência asiática que tenho e que me inspira muito e já conhecia o chef com quem estagiei – já tínhamos trabalhado juntos em Londres –, daí a nossa amizade que vem desde o início da nossa carreira – que começou na mesma altura. O [Santi] Santimaria é muito produto e é inspirada na cozinha francesa – caldos, molhos, sabor –, detalhes com os quais me identifico muito também.

Leitão confitado, puré de batata doce, pack choi e jus de laranja, é um dos pratos icónicos do chef português

Foste Chef Cozinheiro do Ano, em 2005 e eleito Chef do Ano, pela Academia da Gastronomia Portuguesa, e abriste as portas do antigo Alma, no Dia dos Namorados de 2009, que recebeu o prémio “Restaurante do Ano” da Revista de Vinhos. Um percurso que se deve, sobretudo, ao respeito e à grande paixão pela cozinha portuguesa. É assim?
Quando regressei a Portugal tive de me formar na cozinha portuguesa, porque o início de carreira e toda a minha formação aconteceu fora de Portugal. Portanto, quando abri o Alma tive a necessidade de aproximação com a cozinha portuguesa, razão pela qual me esforcei em utilizar mais os produtos portugueses e evitar os produtos de luxo. A cozinha portuguesa é conhecida pelos ingredientes – o carapau, a sardinha, o bacalhau… Também temos a lagosta, a sapateira, o salmonete, entre outros produtos de um calibre mais alto, mas o Alma abriu no meio de uma crise, daí ter tornado os preços mais acessíveis – tinha um menu de 28 euros. Acho que o sucesso quase louco do Alma foi eu ter implementado um conceito pioneiro dentro de um segmento, de uma aproximação com a cozinha portuguesa. Foi, então, que apareceram os pratos mais icónicos, como o leitão, o bacalhau com grão, a cavala, o tataki de atum – quando pus cavala pela primeira vez, todos ficaram muito surpreendidos. O mesmo aconteceu com o leitão – quando o pus na carta poucos chefs o tinham também nos seus restaurantes.

Entretanto publicaste livros – o primeiro “Entre Pratos” é de 2007, seguindo-se “Legumes sem desculpas, em 2008, e “ingrediente Secreto”, de 2011, 2012 e 2013 (vencedor na categoria Best Authors and Chefs dos Gourmand Awards de 2014) –, os quais, na sua maioria, “sairam” da televisão – e aos quais somaste, em 2014, “Na Cozinha com Henrique Sá Pessoa. Sentiste a necessidade de partilhar o teu conhecimento com uma componente educativa e de desafiar o público a arriscar mais na cozinha?
Além de educativa, no “ingrediente secreto” também tentei não só a componente portuguesa, mas também introduzir um pouco a cozinha internacional, para abrir os horizontes das pessoas, tanto que comecei a utilizar ingredientes que as pessoas não estavam habituadas a ver, como a beringela, a curgete, a rúcula, a manjericão, as chalotas, a cherovia… Acho que com estes programas contribuí muito para a educação das pessoas e para o gosto pela cozinha, até porque temos uma cultura de boa cozinha – é diferente de alta cozinha, como a de França ou a de Espanha – o que aconteceu muito recentemente. Quanto ao livro “A viagem do salmão”, foi um desafio que, na altura, achei que o Zé Luís [o escritor José Luís Peixoto] era a pessoa indicada, gosto muito dele como pessoa – acho que não vale a pena falar sobre o Zé Luís, pois acho que todos o conhecem. Queria também fazer um projeto que fosse diferente porque, de repente, houve uma invasão de livros de cozinha quase todos dentro do mesmo registo, pelo que pensei em algo diferente – um livro sobre o salmão, sobre o qual não há muitas publicações, além de que é um dos peixes mais consumidos no país, além das viagens , que estão no meu DNA e no do Zé Luís, e do fotógrafo Nicolas [Lemonnier]. No fundo, juntaram-se três ingredientes que se traduziram numa aposta ganha.

Os roteiros que fizeste são como o prefácio dos teus pratos. Em que cozinhas te inspiraste para (re)erigir o Alma?
Acima de tudo, tentei acentuar o meu lado asiático em pratos como o choco, o carapau com erva príncipe, que já eram a minha imagem de marca – o próprio pimento tem um toque asiático com a tempura de carvão vegetal. Nas loiças e nas madeiras está patente o design nórdico, com o qual me identifico. A razão do Alma estar assim é a razão pela qual me revejo aqui e antes não tinha capacidade financeira para fazer um Alma assim, pois os meus sócios são uma peça fundamental, não só no campo financeiro, como também nas decisões, porque é completamente diferente quando tens dois sócios que trabalham na restauração há quase vinte anos [Rui e Margarida Sanches] – apesar de ser uma restauração diferente da que vemos no Alma –, sempre aspiraram a outro tipo de negócio, Aliás, acho que o facto de ambos se traduzirem numa empresa inovadora e de procurarem sempre novos projetos – onde se incluem os que construímos em conjunto, como Cais da Pedra, o do Mercado da Ribeira e o Alma –, que são fruto de um trabalho conjunto, feito por várias pessoas – o arquiteto pensou nos tapetes, o Rui [Sanches] pensou nas luzes, eu pensei nas loiças, desenhei as barcas, a cozinha tem a minha mão.

“Hoje em dia, o Henrique Sá Pessoa é um conjunto de elementos muito maior do que há seis anos.”

Conseguiram juntar as peças de um puzzle e o resultado está à vista.
O facto de termos conseguido juntar várias peças de um puzzle e de conseguir investir aqui – o que é fundamental – resultam neste Alma, razão pela qual acho que é importante reconhecer o trabalho de uma equipa. Hoje em dia, o Henrique Sá Pessoa é um conjunto de elementos muito maior do que há seis anos. Além disso, ao contrário do primeiro Alma, aqui posso voltar a ser criativo e a dar azo na cozinha, porque tenho o Rui [Sanches] na gestão, e temos consciência de que é diferente do Cais da Pedra e do Mercado da Ribeira no que toca a objetivos, mas é importante que haja Cais da Pedra e Mercados da Ribeira, para que haja Almas – recordo-me da altura em que recebi críticas por abrir o Cais da Pedra sem que se soubesse, cá fora, o que se estava a construir, mas também não desvendei o que vinha ai. Em suma, posso dizer, hoje, que o Alma é ‘o’ projeto. Vou estar aqui enraizado, apesar de ter de me desdobrar como o Zé [José Avillez] faz e outros chefs pelo mundo fora.

Além do lado asiático, trouxeste inspirações do país vizinho para esta cozinha?
Nem por isso. Talvez noutros projetos, não no Alma. Vou a Barcelona três, quatro cinco vezes por ano, o que acaba por ser uma fonte inspiração, portanto é normal que ‘beba’ sempre algo de alguma coisa, como a brandade de bacalhau que se faz em Espanha, sobretudo na Catalunha, e em França, apesar de não ter nada a ver com a brandade, pois esta tem castanhas e outras componentes que a tornam um amuse bouche muito confort food e apelativo ao paladar dos portugueses. Mesmo assim, sinto que a inspiração é muito mais asiática, ao mesmo tempo que são melhorados detalhes da cozinha portuguesa que trouxe do antigo Alma seguindo, ao mesmo tempo, a linha de pratos que sempre tive, ou seja, tenho 40 anos, 20 anos de carreira e uma cozinha identificável aos olhos do público e das pessoas que me conhecem. Mesmo assim, essa maturidade demora tempo, é preciso ler muito e viajar muito para a alcançar, alcançar o teu estilo o teu cunho pessoal na cozinha. Eu cozinho há 20 anos, mas sinto que sou chef, se calhar, há dez, desde o Flores [restaurante do Bairro Alto Hotel, no Chiado, em Lisboa], o primeiro espaço onde comecei a dar azo à minha liberdade – não à minha criatividade, pois considero-me criativo no que concerne à combinação de sabores.

A maioria dos produtos é de origem portuguesa?

À exceção do foie gras e das vieiras, sim a maioria é produto português – carapau, choco, salmonete, pescada, leitão.

Há mais terra do que mar neste Alma?
Há mais mar do que terra e a tendência será sempre mais peixe do que carne, e cada vez mais legumes, que têm muito protagonismo nos pratos de carne e de peixe.

“(…) acho que deveria haver mais reconhecimento, o que iria levar outros a querer subir a fasquia.”

Casa nova, equipa nova. Além de Daniel Costa, o teu braço direito desde há 13 anos, a cozinha é rematada por Telmo Moutinho, que podemos dizer ser “a cereja no topo do bolo”.
O Telmo Moutinho foi a contratação do Cristiano Ronaldo, no fundo, para a nossa cozinha, porque sentimos, na sobremesa, a necessidade de ter uma pessoa que permite que levantemos muito a fasquia, graças à formação Alain Ducasse [Jël] Robuchon, nunca chegaria a essa tarte Tartin por mais livros que tivesse lido e mais ideias que tivesse tido. O mesmo acontece com as madalenas [nos petits fours que acompanham o café ou o chá no fim do repasto] que cozinhamos três vezes ao longo do serviço, com o pastel de nata, que foi uma ideia minha. Ou seja, eu consigo passar a minha ideia para o Telmo que a executa como eu jamais conseguiria. Portanto, há aqui um click que fizemos muito interessante que, apesar de ainda ser muito jovem, tem uma maturidade no que respeita a bases de cozinha, em pastelaria, perfeita, como a massa folhada dele e que como ele há poucos chefs fazem, em Portugal. E há também o José Resende, que está comigo e com o Daniel desde 2007. Ou seja, esse pilares são importantes para abarcar a maturidade da equipa, assim como os novos elementos e todos se traduzem na aposta que eu e o Daniel [Costa] fizemos neste primeiro ano, em que podemos correr alguns riscos, sabendo que a obtenção de uma estrela é sempre muito difícil no primeiro ano, sobretudo em Portugal, principalmente para um chef que não a tem, apesar de as pessoas estarem a sobrecarregar-nos com essa pressão. Porque se me perguntares ‘é mesmo o teu sonho ter uma estrela Michelin’ eu digo que sou cozinheiro há 20 anos e sou chef há… dez anos e nunca me senti incompleto. Afinal, já recebi distinções, escrevi livros e fiz programas de televisão, ganhei prémios internamente no que toca à restauração. No entanto, o Guia [Michelin] daria a conhecer a minha cozinha fora de Portugal – não falo do World 50th Best, porque já estamos a falar de outro campeonato. Acho que para o ano há fortes candidatos [para mais uma estrela Michelin], como o Loco, o Alma… há três ou quatro projetos que podem subir à segunda, como os casos do João [Rodrigues], no Feitoria, do Ricardo Costa, no Yeatman, e do Leonel Pereira – que já o tinham merecido; e o Vila Joya e o Ocean subirem para uma terceira – o Belcanto, como está fechado para obras, pode ser mais difícil… ou não. Desde que não se baixe a guarda e se vá aprendendo com os que a têm [estrela Michelin], porque acho que é importante que haja essa partilha, temos tudo para chegar lá. É inevitável! Para a nossa dimensão e para o que tem vindo a ser feito, acho que deveria haver mais reconhecimento, o que iria levar outros a querer subir a fasquia.

Há muita informalidade nos restaurantes distinguidos com estrela Michelin? Há espaço e necessidade para “arejar” esta realidade tão austera?

O importante numa cozinha é bom produto, boa confeção, consistência e, acima de tudo, teres um conceito definido. Nunca vou querer apresentar uma cozinha igual à do Vila Joya, porque não me identifico como chef, mas identifico-me como consumidor. Acho que deves fazer sempre uma cozinha com a qual te identificas, porque isso reflete-se no prato que fazes.

Este é o Alma com o qual sempre sonhaste?

Sim, durante os próximos anos será, de certo, o Alma com o qual sempre sonhei. Mas se me fizeres a mesma pergunta para o ano, já pode não ser; será de outra maneira, porque sou muito irrequieto neste •

Para complementar a leitura, sugerimos o artigo sobre o “novo” Alma.

+ Alma
© Fotografia: João Pedro Rato
© Foto de entrada e terceira foto: Nuno Barros

Recebe a Mutante por e-mail? Subscreva aqui.