O mote da conversa estava definido no dia de apresentação de um menu especial traçado por um alinhamento concertado por dois chefs, o português João Rodrigues e o italiano Alessandro Negrini, que abordaram questões pertinentes inerentes às diferenças culturais de ambos os países e manifesta importância da criatividade e da qualidade dos produtos.
A entrada de sapateira, flor de limoeiro e nage com manteiga de café
O Feitoria, restaurante com uma estrela Michelin, do Altis Belém Hotel & Spa, em Lisboa foi, na noite de 19 de maio, palco da apresentação de um menu elaborado pelos chefs João Rodrigues, o anfitrião, e Alessandro Negrini que, ao lado de Fabio Pisani, está à frente da cozinha do Il Luogo di Aimo e Nadia (2 estrelas Michelin), em Milão, Itália, o qual rematou a 2.ª edição da Nespresso Gourmet Weeks.
Porém, o café “não é um produto fácil”, afirmou o chef anfitrião, João Rodrigues, “principalmente quando estamos a trabalhar com intensidades e porque estamos a trabalhar com uma grande variedade de cafés”, explicou, até porque se trata de um produto que, “por si só, já não está no seu estado natural, ou seja, sofreu uma torra e, normalmente, depois, são feitos os blends”, ao contrário do que acontece quando o café está no estado mais puro. Por conseguinte, João Rodrigues falou sobre o equilíbrio das intensidade, com o intuito de obter a harmonia entre os ingredientes no prato. Como exemplo, o chef do Feitoria falou do peixe e da sensibilidade que o caracteriza, o que obrigaria a uma de duas hipóteses: “Ou baixamos a intensidade do café ou arranjamos um produto que consiga rivalizar com o café.”
Mesmo assim, e ao contrário do que se pudesse pensar depois de ler este artigo até aqui, “decidi não ir pelo caminho mais fácil”, revelou, razão pela qual quis “casar o café com o marisco”, tendo a escolha recaído na sapateira que, na companhia da flor do limoeiro, e da nage com manteiga de café. “A maneira como utilizei o café é que vai determinar o balanço entre as coisas – decidi fazer uma manteiga, bastante intensa, com café, com a qual emulsionei o creme de sapateira. O que acontece ai é que o café traz ‘para cima’ os aromas do creme da sapateira.”
Por outro lado, a escolha do crustáceo está associada ao facto de ser “um produto com o qual nos identificamos, é típico comer sapateira, em vez de ir buscar um lavagante, que seria a escolha mais óbvia para este tipo de confeção”. Mesmo assim, é preciso “trabalhar as possíveis ligações, de modo a que um não passe por cima do outro”, além de que há outros produtos que ligam com o café, que “liga muitíssimo bem com cogumelos, com caça, com carnes mais estufadas e mais reduzidas, com sabores mais caramelizados”, exemplificou; e, à posteriori, “há que fazer as confeções que encaixem neste sistema, para que seja possível fazer o paring com o café”.
No alinhamento do menu, e para começar a sequência de pratos, o início do repasto foi feito pelas invulgares “pedras vivas”, de João Rodrigues.
Seguiu-se o pimento crocante de Senise com cupita, de sabor forte e intenso, feito por Alessandro Negrini.
E a muito bem conseguida enguia fumada, rábano, beringela queimada e cebola sublimada pelo miso, do chef anfitrião, como entrada.
A sopa Etruria de legumes da época que não deixou alguém indiferente
Para o efeito, o chef do Feitoria experimentou algumas variedades de café devido à intensidade e aos sabores, para encontrar o equilíbrio no prato servido num jantar que se converteu numa troca de experiências com Alessandro Negrini e, “de alguma forma, cada um de nós conseguiu homenagear a Nespresso com um prato de café. Ou seja, o que é interessante nestes encontros é a partilha das experiências entre mim e ele e que, depois, possamos passar essas partilhas entre ele e eu para quem nos visita”, dando a (re)descobrir a célebre sopa Etruria de legumes da época, trigo farro da Toscânia, ervas aromáticas e flores de funcho desidratadas, prato que despertou reminiscências associadas a aromas dos tempos de criança e ficou registado na memória pela intensidade de sabores que conquistou o palato.
Sobre o convite ao chef italiano, João Rodrigues falou da “ligação forte” que, nos últimos tempos, tem tido com Itália onde, em dezembro de 2015, conheceu o chef italiano, além de que “há outra coisa que nos liga, o Sangue na Guelra, que gera um circuito com pessoas que puderam passar por essa experiência, ou seja, no fundo criou-se uma família e, como tínhamos essas duas situações em comum, fazia sentido convidá-lo”.
Alessandro Negrini – nascido em 1978, em Caspoggio, Itália, formou-se em cozinha na Escola de Culinária de Sondrio, passou por vários restaurantes, com destaque para o do Hotel Palace, em Saint Moritz, Andorra ou o do Gallia Palace em Punta Ala, na Toscânia; esteve três anos no Il Luogo di Aimo e Nadia, em Milão, partindo depois para a Suíça, onde esteve no restaurante Domaine de Châteauvieux, e tendo regressado ao Il Luogo di Aimo e Nadia, onde assumiu a liderança do restaurante juntamente com o chef Fabio Pisani – já tinha estado em Portugal quando tinha 20 ano, num interrail, tendo conhecido o Algarve e, depois, o Porto. Há cerca de uma semana regressou, desta feita para a edição de 2014 do Sangue na Guelra e, ontem, mostrou a sua faceta criativa no repasto da noite. Afinal, a criatividade é de suma importância para qualquer chef, no entanto a Alessandro Negrini manifestou discordância em relação ao desvirtuar da cultura de um país na cozinha, a qual “não pode ser esquecida”, focando o prestígio que a própria cozinha italiana tem para o governo daquele país, com destaque, também, para o trabalho do chef Massimo Bottura e a união entre os chefs.
Vamos por partes neste pregado e carabineiro do Algarve
Em paralelo, Alessandro Negrini abordou a necessidade de mudar a mentalidade, ato que deve começar desde a adolescência, mas “é preciso tempo, trabalhar muito e não mentir ao cliente no que toca à matéria prima, à qualidade do produto”, associada ao sabor genuíno, fatores cruciais em qualquer restaurante, como o Feitoria, onde João Rodrigues apresentou um alinhamento resultante de um trabalho consistente.
A matança do porco no prato
Desta vez com o pregado e carabineiro do Algarve, espargos brancos e molho das cabeças de carabineiro comprimidas numa prensa de cozinha com mais de quatro décadas anos, composição que conquistou as papilas gustativas, sensação que se tornou superlativa com a presa de porco alentejano numa alusão à matança do referido animal, que acontece pelas aldeias do país e está representada pela cor vermelha espalhada no prato, e onde, no primeiro dia, as miudezas – como o coração, aqui representado pelo coração de alface – fazem parte do almoço deste ritual, assim como os grelhados recriados num momento cénico pouco antes deste prato de carne ser servido à mesa.
A pré-sobremesa do menu feita com alcachofra, caramelo salgado e cerveja vermelha
Antes do término do repasto da noite, foi a vez do chef italiano mostrar, uma vez mais, a sua cozinha através da alcachofra com caramelo salgado e cerveja vermelha, onde a colher deve ir até ao fundo, para melhor saborear o conjunto das três camadas de sabores em relação os quais a célebre frase de Fernando Pessoa se aplica na perfeição: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”.
O tirami-sud que rematou o repasto da noite
Para sobremesa, Alessandro Negrini fez um guloso q.b. tirami-sud de mascarpone e iogurte, biscoito de café, ricota aromatizada com bergamota e alcaparras confitadas em mel, que rematou o repasto no Feitoria, no Altis Belém Hotel & Spa, onde este menu permanece até ao dia 27 de maio, no âmbito da 2.ª da Nespresso Gourmet Weeks, pelo valor de 95€ por pessoa (as bebidas não estão incluídas). A reserva pode ser feita através do 210 400 207 ou do site do restaurante (em baixo).
A prova da Sovina API feita pelo chef italiano
Ao longo do jantar, André Figuinha, escanção do Feitoria, brindou os presentes com um roteiro vínico – e não só – pelo país, abrindo as hostes com uma cerveja artesanal portuense, a Sovina, feita ao estilo IPA, iniciais de Indian Pale Ale cujo sabor se revela ligeiramente amargo, tendo feito uma boa harmonização com o pimento crocante, à qual seguiu-se o Vale das Areais Colheita 2013, um monocasta de Lisboa feito a partir de Fernão Pires, para combinar com a enguia fumada do chef anfitrião. De novo a norte, desta vez rumo ao Douro, André Figuinha usou o Covela Reserva 2013, um blend composto pelas castas Avesso e Chardonnay, na combinação com a sopa Etruria de Alessadro Negrini, e o Dona Florinda 2012, da Quinta do Côro,do Ribatejo, feito com Encruzado, Verdelho e Arinto, eleito na conciliação com o pregado e o carabineiro de João Rodrigues (leia aqui a entrevista da Mutante publicada em 2014). Para a presa de porco alentejano, o escanção escolheu um casamento de truz: Poço do Lobo Reserva 2012, um vinho da região da Bairrada feito com Baga, Touriga Nacional e Cabernet Sauvignon. À hora da sobremesa, criada pelo chef italiano, André Figuinha optou pelo Cossart Gordon Bual 10 anos, um Vinho da Madeira que se revelou uma excelente escolha para este final.
Antes de terminar, e pegando na referência do trabalho feito pelo governo italiano, para quando podemos contar com o apoio do poder executivo de Portugal o que concerne ao trabalho dos chefs? Até lá, importa unir esforços entre os protagonistas. •
Bom apetite! •
+ Feitoria Restaurante & Wine Bar
© Fotografia: João Pedro Rato
Legenda da foto de entrada: Os chefs João Rodrigues e Alessandro Negrini
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