Luís Ferreira, Cognome: Bons Sons

Para quem ainda não descobriu, para quem a memória possa falhar e para quem sabe quase tudo de fio a pavio estivemos num breve bate-papo com Luís Ferreira, com todo o respeito, cabecilha do Bons Sons, em Cem Soldos, Tomar.

Com agosto à porta, era imperativo sentarmos-nos à conversa com quem há 10 anos não teve medo de sonhar, de querer mais, de arriscar, de acreditar, de não pensar na cidade, de ser maior e de ter toda a lata para ir aonde foi preciso, ter com quem era necessário para criar, numa aldeia, um evento virado para o que se faz por cá, com todo o amor possível. Luís Ferreira e toda a gente de uma aldeia dão-nos, há 10 anos, música feita no nosso território, num cenário real e este é o resultado de uma conversa regada com água mineral, num dia quente de julho.


© Bons Sons, Pedro Sadio

Recuando ao ano de estreia, 2006, e agarrando em Yourcenar – “Creio que quase sempre é preciso um golpe de loucura para se construir um destino”. Que afinidade é esta com terras do tempo de D. Sancho I para, num ato com q.b. de loucura e fora dos grandes centros urbanos, criar um festival de música portuguesa?
A afinidade é toda porque somos todos (organização) de Cem Soldos. Portanto, fora dos grandes circuitos, mas dentro do nosso. É isso que faz toda a diferença. A dose de loucura vem desta carga, destes 200% para construir algo que não é prorpiamente para nós, mas para o nosso contexto. Depois, parte dessa loucura tem a sua base no conhecimento e consciência real do que estavamos a fazer. Em 2006, já havia um manifesto e modelo de programação. Havia tudo aquilo que agora que estamos a fazer, passados 10 anos. A estrutura estava montada.
Voltando à loucura e aos 200%, havia uma vontade imensa de trazer a criatividade ao campo e, há que dizer, temos um vínculo muito forte com a nossa aldeia e suas gentes. O nosso ego foi muito bem trabalhado pela geração anterior. Porém, não nos identificávamos nem com a música, nem com o esforço que tínhamos ao fazer certas actividades. Tinha a ver connosco o convívio e a partilha; faltava fazer isto, com sentido para o hoje. Nesse ponto foi dificil trabalhar porque a música portuguesa, há 10 anos, não era falada. Foi complicado posicionarmos-nos, tivemos de adjectivar muito o que era isto da música nacional e feita cá, a aldeia e o porquê. E para a questão recorrente “Qual razão para isto não ser feito em Tomar?”: “Porque nós somos de cá”.

Na génese está uma aldeia – Cem Soldos -, a música portuguesa, e a população local. “A primeira qualidade que um etnomusicólogo precisa ter é o amor ao trabalho e o amor sincero ao povo”, Giacometti. Para o Bons Sons começar com o pé direito foi essencial este amor ao trabalho na música portuguesa e à população que nos recebe?
Creio que sim. Na população, é a nossa identidade. Na música, para muitos o nosso projecto era a loucura. Para nós era uma estratégia bem estruturada e sabíamos  que tinha tudo para dar certo. Pessoalmente, conhecia muita música nacional que não tinha palcos, ou quando os tinha mais valia não ter. Era fácil, para nós naquele contexto familiar, criarmos espaços para eles, onde eles seriam os protagonistas porque gostávamos e gostamos, verdadeiramente, de música nacional.
Para que não haja confusões, quando falamos em música nacional não é necessariamente só música cantada em português, mas sim música produzida em Portugal, certo?
Sim. É para bandas que trabalhem cá e que até podem ter ou não ter elementos portugueses. A escolha reside numa lógica de contexto e não de ADN. Acreditamos que o contexto influencia, cria uma temática, uma narrativa. Somos expostos a mais notícias do que a outras, temos um ambiente, uma atmosfera, uma geografia. Tudo influencia e é neste nosso território que as pessoas têm de trabalhar, território onde bandas não tinham tanta oportunidade, na altura, de mostrar o que valiam.
É o tal amor…
Claro. Voltando ao amor, é tudo isto e todas as histórias que temos para contar, do Bons Sons, são de amor. É o brilhos nos olhos que temos quando falamos do nosso projeto e essa energia extra que não nos fez/faz desistir. Nunca foi um projecto fácil. Nunca tivemos apoios e ainda hoje, com 10 anos e com um percurso bem simpático, não conseguimos ter apoios. Talvez por isso, para nós, a crise sempre existiu (risos); e temos um projeto forte suficiente que, se tivessemos apoios, ele não ia ser descaracterizado. Mas sim, é esse amor que mantém durante 10 anos uma equipa com uma chama acesa e vontade de fazer, mesmo sem ajudas.

Voltando ao amor, é tudo isto e todas as histórias que temos para contar, do Bons Sons, são de amor. É o brilhos nos olhos que temos quando falamos do nosso projeto e essa energia extra que não nos fez/faz desistir.

Mesmo quando há facadas no coração?
Sim. Por exemplo, 2012 foi um ano bem duro. Fomos roubados com pulseiras falsas. Tivemos um festival cheio e um retorno financeiro muito reduzido; isto só ultrapassas com amor ao projeto e com uma população local que tem estado sempre connosco, com uma confiança ímpar em nós, mesmo não conhecendo os projetos que iam para lá. Claro que conseguido porque não era o director X ou uma produtora Y, era o Luís, o Bruno, a Sofia… são pessoas que as pessoas conheciam. Algo que, ao início, também nos tirou alguma credibilidade profissional, mas agora, 10 anos depois, já está para trás.


© Bons Sons, Pedro Sadio

Tudo começou piano pianinho. Quase num método de Descartes do mais simples para o mais complexo. De um palco para oito. De um dia para quatro. De alguns nomes para uma lista que não dá para tentar escrever, agora, toda.

A invasão é total, nos dias de hoje, e não chegariam os 100 homens do destacamento militar do século XII para travar. Garantindo o domínio sobre Cem Soldos chegam a oito palcos e fecham a Aldeia. Como se convenceu uma aldeia a fechar-se e a deixar-se se invadida por música e seu público?
Tinhamos a idade certa para o conseguir! Eu tinha 22 anos, uma lata imensa e isso dava uma vontade louca de fazer coisas. Talvez hoje tenha muito menos lata. (Risos).
Como foi esta evolução, afirmação profissional difícil?
Imagina, na altura, um diretor de um festival, recém-chegado de uma aldeia, com um grupo voluntários de música portuguesa, com 22 anos. Hoje rio-me um bocadinho sempre que olho para trás. A juventude podia ser má para algumas coisas, mas eu levava tudo muito a sério e sempre que falava com alguém tentava vender o nosso conceito. E.g., os primeiros convites para bandas eram todos eles muito gráficos, muito bem trabalhados – o chamariz da imagem. Agora, já há toda uma marca criada e pode ser um email rápido de contacto, de pedido de dados e está feito. Foi, primeiro, necessário criar algo extremamente profissional, criar toda uma imagem, na conversa que ía ter com alguém procurar formas e o formal, e também não havia esta facilidade de ter os contactos como há hoje. Nota que continua o profissionalismo.
Mas lá está, tudo agarrou logo muito bem porque tínhamos o projecto bem definido na origem, há uma frase que usamos muito: “Barco que não tem rota não beneficia de vento algum”. Sempre tivemos a rota traçada, sabíamos onde queríamos ir e, normalmente, todos querem logo muito dinheiro e subsídios – um erro constante.
Há outros caminhos, não é?
Primeiro tem de existir um projeto e depois vemos onde há linhas de financiamento que, aqui, nem é dinheiro. São parcerias, trocas e a questão da sorte e do azar. Tivemos sorte, sorte que tem um trabalho invisível – aquilo que, muitas vezes, não se percebe que esteve alguém por trás a fazer. Há quem lhe chame sorte, mas é muito trabalho e é essa a diferença. Sempre apresentámos tudo com muita seriedade e fomos rapidamente acarinhados pela música.

(…) tudo agarrou logo muito bem porque tínhamos o projecto bem definido na origem, há uma frase que usamos muito: ‘Barco que não tem rota não beneficia de vento algum’. Sempre tivemos a rota traçada, sabíamos onde queríamos ir (…)

Fecharam a aldeia logo no primeiro festival?
Não. Só fechámos a aldeia – fechar mesmo – a partir de 2010. As pessoas da aldeia têm uma pulseira específica para circularem à vontade, sem filas nem nada e há as restantes pulseiras, das várias funções e dos dias, que foi inevitável e essencial. Se não tivéssemos fechado já não havia Bons Sons, tenho a certeza. O fechar foi uma resposta a um 2008 mais conturbado, em que percebemos que era preciso criar toda a logística de um festival e era a única forma de termos receita própria, muito precisa. As nossas duas receitas vêm da bilheteira e dos diversos serviços, e a outra do nosso voluntariado. Há toda uma área de recursos humanos que não é paga, por escolha nossa, porque é também a única forma de o fazer. É o nosso contributo para a nossa aldeia. São estas as nossas fontes de rendimento. Doutra forma seria impensável.

Cada palco uma linha definida. Lopes-Graça (um dos maiores compositores do séc.XX), Giacometti (fulcral no levantamento e divulgação da Música Tradicional Portuguesa) e, e.g., Aguardela (incontornável nome). Há a premissa para que todos aprendam, também, a história da nossa música?
Acredito que quando as pessoas chegam e não sabem, se interroguem sobre os nomes escolhidos. Perguntam o porquê, principalmente com Giacometti – o mais estranho para muitos. Todos os que estão na organização sabem explicar e está tudo bem explanado no nosso site. Depois, faz todo o sentido porque tem tudo a ver com a genética.
Primeiro, Lopes-Graça – grande compositor que está ligado à cidade de Tomar e tantas razões para lá estar. Segundo, o palco irmão – Giacometti – para mostrar que não é um festival só para ADN português. Homenageamos um francês que muito fez pela música portuguesa, um olhar externo que ajudou a que esse trabalho fosse feito; provavelmente, se tivesse nascido cá nunca o teria feito. Aguardela porque veio depois e a música desse palco está relacionada com o que ele fez, sendo também uma homenagem. Todos o acabam por ser, estão ligados à qualidade da música nacional e a esta visão que nós temos de não estabilizar, não acomodar, não cristalizar.
Eles tal como os músicos que escolhem para tocar?
Sim. Todos criaram novas camadas, novos olhares; criaram mais terreno para a música nacional, o que acontece, igualmente, com os músicos que nós programamos. Todos, à sua maneira, por um processo de aculturação de elementos que vêm de fora ou por repensar a raiz do que é feito por cá, há muito, trouxeram sempre um novo registo e abordagem; para nós isso é o fio condutor de todo o programa dos oito palcos. São músicos que não se conformaram e não se conformam com o que receberam, que estão a criar novos caminhos.
Reflexo do “novo” panorama musical?
Claro. É isso que tem acontecido à música portuguesa e não temos hoje mais palcos porque somos maiores; temos mais palcos porque há mais música. O Bons Sons é o presente e tenta fazer uma fotografia do que há no momento – é isto que está a acontecer este ano, é isto que tem de aparecer.

O objetivo final são as várias felicidades ou pelo menos a luta por elas. Creio que o Bons Sons tem esse papel porque se no fundo fosse fantástico para o público, mas fosse péssimo para a aldeia não faria sentido nenhum. Pessoas infelizes não fazem os outros felizes (…).

E passos futuros, já há esboços?
O objectivo seguinte, que queremos trabalhar – e que está a ser um pouco difícil porque também precisamos de um contexto mais favorável -, é o salto internacional para a música nacional, que não ainda está a ser trabalhado, verdadeiramente. Trazer aqui quem nos pode, à música, levar lá fora: trazer programadores, comunição social estrangeira, directores de festivais. Vemos o Bons Sons como um bom momento para se ver o que se está a passar no panorama cultural nacional, neste caso, a música. É ver o festival como um showcase do que está a ser feito pois vai a todas franjas. Aqui, podemos juntar uma world music e uma electrónica, a título de exemplo; podemos fazer um misto de tudo, aproveitar vários mercados e ao mesmo tempo mostrarmos uma banda no seu habitat natural com o seu público, o que é totalmente diferente para veres o potencial, a garra, a dinâmica… A melhor forma para criar roteiros internacionais é através destes formatos. Cremos que será o próximo passo para a música nacional e queremos dar o nosso contributo.


© Bons Sons / Pedro Sadio

Há, também, um palco Garagem, numa alusão perfeita a quem esta a começar algo. É fundamental, a quem começa, esta vossa disponibilidade em lhes darem espaço?
É fundamental e faz todo o sentido. O palco é numa garagem em Cem Soldos e já houve quem lá foi tocar que depois foi programado no Bons Sons. Apesar de ter muita dificuldade, no momento, de ver o que está a acontecer lá, é muito bom para testar, para ver a reação do público e é um estimulo para as bandas irem ver outros artistas. Vão e depois há aquela emoção de “ver um filme de super-heróis e querer ser super-herói”. Creio mesmo ser um estimulo estar a ver música e querer mostrar, também, o que se faz. É um palco sem programação com toda a logística necessária. As pessoas chegam e inscrevem-se; é um deixarem-se levar pelo impulso e partilha. Quem vai tocar tenta divulgar, criar dinâmicas e chamar público. O palco garagem é uma forma de criar uma primeira rede, uma oportunidade de ter daquele público especializado.
O vosso público é um pouco diferente dos demais festivais?
Felizmente e espero que este ano se mantenha, o Bons Sons traz pessoas que querem mesmo ouvir música, um público mais velho que quer viver a aldeia do lado certo, que procura novos sons; fazem parte da rota dos festivais da música e não apenas do lifestyle – querem uma proposta cultural específica. Também temos os mais novos que são normalmente da região, sendo este o primeiro festival de muitos pela proximidade e por ser um festival seguro, com uma escala interessante – no ano passado vi dezenas de grávidas e, portanto, se as grávidas confiam no Bons Sons, (risos), não há ninguém que possa dizer que é perigoso. Juntemos a tudo isto o ser um festival direcionado para as famílias com uma programação infantil cuidada e forte.


© Bons Sons, Pedro Sadio

Ainda no universo dos palcos, vamos usar o MPAGDP do incansável Tiago Pereira. Bons Sons é na sua máxima amplitude fazer a música portuguesa acreditar nela própria e fazer-nos acreditar na sua autenticidade e qualidade?
Sem dúvida. Esta explosão da música nacional vem precisamente desse acreditar. Uma outra frase que usamos é: “Esta é uma aldeia que acredita e, porque acredita, faz!” O Bons Sons é um testemunho de esperança na aldeia, no espaço rural, na música, na cultura nacional e a partir do momento em que fizemos um concerto com 10.000 pessoas a assitir, onde os grandes cabeças de cartaz eram músicos portugueses, começámos a fazer com que outros festivais, que não acreditavam na música portuguesa, começassem a acreditar. Consequência, surgiram muitos outros festivais que foram visitar-nos, que nós apoiámos, que agora trabalham nichos mais específicos da música nacional. Criámos notícia e em 10 anos tudo isto mudou, claro.
Não podemos, simultaneamente, ignorar a relação de proximidade entre as bandas e o seu público através das redes sociais, a queda dos grandes monstros da indústria nacional, o surgir de agentes mais independentes, novos olhares e tudo isso foi um contexto fértil, do qual nós fizemos parte. Esta é, para mim, uma década muito importante para a música nacional e que vem, toda ela, de haver pessoas que acreditavam no que estavam a fazer e depois, estas peças todas juntas criaram este ambiente. O passo seguinte será estas mesmas peças darem o tal salto para a questão internacional. A produção tem sido tanta, de qualidade e tão diversa que precisa não de um, mas de vários caminhos internacionais para que se mantenha à escala, para que mantenha o ritmo. Já há alguns movimentos a trabalhar nisto e sinto que a nossa qualidade está ao nível lá de fora, devemos trabalhar como uma marca como outros países já o fazem. Só temos de aprender a comunicar melhor e não querer tudo no imediato. Se nós em Cem Soldos conseguimos fazer isto… É duro, sai do pêlo, mas é mais fácil do que parece. O importante está conseguido: acreditar.

Rumando a outros mundos que fazem bons sons, a liberdade. “A liberdade de criação não é uma ilusão, nem é um ilusionismo, quando, nos melhores exemplos, a arte sabe conciliar a sua necessidade de ser livre com a sua obrigação de ser humana, de ser, por assim dizer, objectivamente humana, universalmente humana” Lopes-Graça. Criar neste festival um objectivo de fixação de jovens, de retribuir o esforço e dedicação dos seus anciãos, de ser um mundo para as famílias, faz-vos mais livres e felizes no recriar, a cada edição, o Bons Sons?
No fundo o que é a cultura e qual é o nosso papel como agentes culturais? O objetivo final são as várias felicidades ou pelo menos a luta por elas. Creio que o Bons Sons tem esse papel porque se no fundo fosse fantástico para o público, mas fosse péssimo para a aldeia não faria sentido nenhum. Pessoas infelizes não fazem os outros felizes portanto, se isto também fosse péssimo para quem o está a fazer também não faria sentido algum. O que mais gosto de ver num palco é um músico feliz, ver que está ali, naquele momento, naquela hora e que não poderia estar em mais lado nenhum. São depoimentos de felicidade.
A população é fundamental?
A população é tudo. A população em conjunto com a equipa – que também é da aldeia, mas que no entanto se destaca por ter uma responsabilidade diferente – é, entre tantas tarefas mais, quem acolhe e sem ela não se faria Bons Sons, e só haverá Bons Sons enquanto as gentes desta generosa aldeia quiserem.
A música ganha mais alma com o vosso projeto social?
Sem dúvida. A cultura/ música, em última instância, serve para criar consciência, pensamento, discussão e depois, para que se rearranje a sociedade, só através da cultura conseguimos recolocar o foco.

 “Os músicos começaram a acreditar em si mesmos, o público a acreditar nos músicos e até o poder local já acredita na música portuguesa. Talvez já todos acreditem na música portuguesa.

Li, no vosso site, que há o desejo de, com as receitas, criar um Lar da Aldeia (entre outros projetos sociais e culturais). Como vai esse sonho?
O Lar da Aldeia está a avançar, não na construção de edifício, pois percebemos que temos um projeto muito maior – somos ambiciosos (risos): a aldeia cultura, onde o Bons Sons está inserido. Não precisamos de um lar-casa, mas sim de uma aldeia renovada, a aldeia a ser o próprio lar e isso já está a acontecer com ciclos de conversas, encontros de avós e netos, costura criativa, o chamar da escola para atividades,… Projetos que, antes de tudo, capacitam, envolvem e criam um papel para a população idosa que passa a sentir-se útil, aprende e partilha dinâmicas
Este ano, e.g., foi lançado o documentário “Este Povo”, realizado por uma geração abaixo da minha – que orgulho imenso neles. Este documentário com a população mais idosa é ser Lar Aldeia, é o perceber que é deles que podemos criar histórias e ganhar mais conhecimento, mostrar que viver na aldeia é isto de não escolheres o teus amigos pela música que ouvem e pela forma de vestir – eu estaria tramado, não tinha nehum. Temos de procurar no outro o que é que nos une e essa curiosidade faz toda a diferença. Aqui, o meu amigo é da minha idade, é o pai dele e é a avó dele, em registos diferentes, como é óbvio. Quem me dera que toda a gente tivesse que fazer isto porque tudo mudava na questão dos preconceitos.
Portanto, o Lar Aldeia avança não na lógica de criar um edificio específico, mas de ir criando espaços para ele, com projetos vários. O conceito existe e quando dermos por nós já estará a funcionar em pleno. Nota, é um projeto de desenvolvimento local dirigido pela associação local – SCOCS, Sport Club Operário de Cem Soldos – que tem as frentes: cultural, desportiva, social, recreativa e bem-estar.


© Bons Sons, Palco Eira

Vamos agora tornar isto ainda mais blasé para quem já é veterano no panorama cultural.
Em 10 anos, concertos mais marcantes e porquê?
(Risos). Vou usar um recurso. Este ano estamos a repetir 10 bandas, pela primeira vez, e as bandas foram selecionadas por histórias. Portanto, posso dizer que esses 10 concertos foram 10 concertos marcantes. Não sei se foram os mais marcantes, mas marcaram e marcam porque assinalam não só a evolução do Bons Sons – por representarem anos diferentes – como todos deixaram uma história qualquer associada. Por exemplo, os Kumpania Algazarra, em 2008, começaram a tocar de noite e acabaram de dia. Foi a loucura com invasão de palco, foi marcante para o Bons Sons e para eles. No mesmo ano, os Deolinda, que ainda não eram conhecidos pelo grande público, tiveram aquele que foi o primeiro grande concerto deles, creio, e este ano regressam como cabeças de cartaz, claro. Os Desbundixie, em 2006, têm tido um percurso mais tímido, mas foram muito interessantes por, posteriormente, alinharem connosco em vários projectos. Ah! LuLa Pena na Igreja. Lembro-me daquela imagem de Lula Pena na sua languidez, todo aquele movimento do pegar no copo de vinho, cantar, pousar,… foi um céu que caiu ali naquela Igreja foi a comunhão perfeita e que justifica o abrirmos uma Igreja para esta lógica Bons Sons. Há mais… tanto mais. São 10!

Em 10 anos, quid pro quo que não dá para esquecer?
Bom, o que te falei das pulseiras, de termos sido roubados e o receio imenso de voltarmos a ser roubados. O que faz do Bons Sons, também, um evento especial é o que o torna mais dificl de produzir. Era tão mais fácil fazer um festival num descampado, onde que produzíamos e contávamos tudo com calma e tempo, mas só podemos construir ambiente Bons Sons quatro ou cinco dias antes, o que é a perfeita loucura. Se formos ver outro qualquer festival maior, vamos vendo o palco a crescer à distância quase que a ser um próprio muppi que anuncia o festival. Aqui não, tem de ser o também tal golpe de loucura que falávamos ao início, é a contra-relógio e há medo que alguém consiga roubar-nos no momento da loucura.
Depois, há algo como em 2008 quando as pessoas subiram aos telhados – bem intencionadas – mas lá eu andei nos telhados a pedir para saírem dali; esqueceram-se que aquilo não era um cenário montado por nós, não era uma Hollywood só com fachadas – são casa reais, com ritmos reais, com as suas vidas e há que respeitar isso. Como é natural, há muitos momentos caricatos.

Em 10 anos, quem ainda não veio, mas terá de vir?
José Mário Branco. Sem dúvida.
E por quem pagavam cem soldos ao porteiro – dos céus ou dos infernos – para regressar a palcos terrenos?
Zeca Afonso. Sem hesitar.

Em 10 anos, como vêem a evolução da música portuguesa e a relação do público com ela?
Uma relação de ego. Os músicos começaram a acreditar em si mesmos, o público a acreditar nos músicos e até o poder local já acredita na música portuguesa. Talvez já todos acreditem na música portuguesa. Há uma notória evolução na questão da quantidade, qualidade e diversidade, e creio que não vamos voltar atrás. Demos um avanço que seria muito difícil recuar pois não foi apenas um género musical que cresceu, foram todas as frentes da música portuguesa onde há espaço para o tradicional, o erudito, o indie, o rock,… : Todas têm conquistado público. Há uma evolução no reconhecimento e notariedade da produção nacional tanto cá como fora, embora fora seja ainda muito tímida – mas se bem trabalhado podemos, talvez, ser como uma Suécia ou Islândia onde a música passou a ser um espaço de afirmação destes territórios e não há razão para que isto não aconteça com Portugal.

Por fim, a pergunta principal para 10 anos de Bons Sons. A Tixa está boa?
A Tixa está de saúde e recomenda-se. Já tem um certa idade, são 10 anos que em anos de lagartixa são muitos. Mas está sempre renovada, com cores diferentes, muito acarinhada pelas senhoras de Cem Soldos que chamam ao Bons Sons – o Festival das Lagartixas. Enquanto existir Bons Sons ela estará sempre bem e alimentada. Agora até recebe uma refeição extra. Dantes era de dois em dois anos, agora é todos os anos. Até anda mais roliça.


© Bons Sons / Carlos Manuel Martins

De 12 a 15 de agosto rume a Cem Soldos e viva a aldeia, a música portuguesa, a nossa cultura de uma forma diferente, mais genuína, mais próxima. Alimente a Tixa e deixe-se levar pelas gentes de Cem Soldos que fazem dos Bons Sons um evento obrigatório na agenda quente do verão. É a música portuguesa a acreditar nela própria e o público a não duvidar da sua qualidade.

A ir. A não perder! •

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© Fotografias de Luís Ferreira: Sara Quaresma Capitão.

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