“É a minha cozinha no Guincho. É a nossa cozinha, é de toda a equipa!” / Chef Miguel Rocha Vieira

O sabor da nossa costa no prato. Eis o ponto de partida de um menu feito de boas memórias, de saber-fazer e de dedicação de um chef que revive a tradição portuguesa convertida num repasto primado pelo sabor e pela criatividade compartilhados à mesa do Fortaleza do Guincho.

O repasto começa inspirado na tradição do peixe seco da Nazaré, cuja cabeça é recheada com uma brandade, puré de grão de bico e tinta de choco, o qual é levado à mesa na companhia de pastéis de massa tenra “de comer e chorar por mais”, uma caixa que representa a costa e a Serra de Sintra, através de salsifi e o camarão da costa numa combinação de truz com um puré de limão e uma maionese feita a partir da cabeça dos camarões, e um shot de cerveja artesanal da Serra da Estrela que tanto apetece aqui, nesta trilogia de sabores a mar

A reconquista da estrela Michelin por parte do restaurante do Fortaleza do Guincho, em Cascais, em Novembro passado comprovou, uma vez mais, o trabalho de Miguel Rocha Vieira. Reconhecido pelo grande público, o chef lisboeta denota um imperativo desvelo no prato, dando primazia aos sabores genuínos e à conjugação de produtos, assim como à criatividade que remete para as memórias de infância e para tradições ora perdidas, ora resgatadas no tempo, servidas sob uma elementar contemporaneidade que merece aplausos. Vamos à entrevista.

Comecemos esta conversa com a última frase da entrevista que deu à Mutante, em Setembro de 2014: “Assim que surgir uma oportunidade de voltar, não a vou perder.”
Uma oportunidade que merecesse a pena. E demorou. A oportunidade surgiu quando soube que o Vincent [Farges] iria sair. Foi no Verão de 2015.

Para o amuse-bouche, o chef preparou o habitat dos perceves representado por algas, cogumelos braseados (ao centro) e pedaços de perceves, e puré frito com laranja (o fundo do mar), o qual dá frescura a esta iguaria marinha a ser temperada com um pó feito a partir de algas secas que se encontra nas cascas dos perceves

Como chegou a esta ponta de Portugal?
Enviei um email à Petra [Sauer] a explicar quem eu era e se achava que o meu perfil encaixava e se merecia a pena de, pelo menos, tomarmos um café. Foi tudo muito rápido. Passado pouco tempo vim a Lisboa tomar o café e, passadas umas duas horas, acho que ambos sabíamos que era chegada a hora.

Quando é que veio de malas e bagagens para o Guincho?
Cheguei aqui em Agosto, em plena época alta.

A sopa do mar, composta por algas, berbigão, amêijoas, lingueirão e caldo de caldeirada (com ouriço, peixes e berbigão) é a interpretação magistral de um mergulho nas águas do mar, ao qual se sucederam o quarteto de manteigas (noisette, com algas, de pimentos vermelhos e meia de sal), cada uma com formatos alusivos a moluscos e crustáceos, e o pão feito pelo chef de pastelaria Filipe Manita

Quais foram as primeiras mudanças que quis implementar?
Vês uma equipa que estava habituada a trabalhar durante sete, cinco anos com o Vincent [Farges] – que esteve cá dez anos – e, quer queiras, quer não, pensam de uma maneira. É normal. Chegas em Agosto, quando está tudo cheio e deixas o barco andar até que as águas acalmem e, depois, começas a implementar as mudanças. O que fiz foi mudar um ou dois pratos da carta por causa da temporada, da estação do ano, e deixei as coisas como estavam, com o selo do Vincent [Farges], mudei o pequeno-almoço e o bar – fiz uma carta de bar, a qual não existia. Quando chegou o Gil [Fernandes] já fazia sentido mudarmos a carta.

“(…) achei importante fazer uma carta para o bar, que funciona a partir das 11 até às 10 da noite.”

Do Algarve veio o carabineiro, salteado e servido com uma trilogia de cenouras, citrinos e molho feito a partir da cabeça do crustáceo, e acompanhado por um Quinta do Regueiro Primitivo Alvarinho 2014, vinho de Melgaço, uma Sub-Regiões da Região Demarcada dos Vinhos Verdes, e desenhado pela dupla de enólogos Paulo Cerdeira Rodrigues e Jorge Sousa Pinto; e da nossa costa chegou a sapateira em dose dupla – ora desfeada, com maçã, puré de beterraba e sumo de maçã Granny Smith, ora na companhia da couve portuguesa fermentada e de três variedades da beterraba – e contemplada pela uma harmonia de sabores perfeita, bem como pelo duriense Casa Amarela Reserva 2015 (castas: Malvasia Fina, Rabigato e Viosinho)

Comecemos pelo bar.
Criámos uma carta. Imagina: Ficas cinco dias neste hotel – há quem, no Verão, ficam uma semana e há pessoas que não querem almoçar nem jantar todos os dias fine dining, no restaurante –, então as pessoas acabavam por sair. Por isso, achei importante fazer uma carta para o bar, que funciona a partir das 11 até às 10 da noite.

Quem preferir um repasto convencional, pode fazê-lo.
Sim. Fiz isso, mas não pensei nas consequências, porque agora temos duas cozinhas numa, ou seja, tornou-se noutro restaurante, e funciona muito bem. No início, no meio da preparação de menus de degustação para o restaurante, de repente ouves “um hambúrguer!” e ficávamos todos a olhar. Com o tempo fomo-nos habituando, até porque é importante para o negócio, além de que há mais escolha.

O que há para dizer sobre a carta do restaurante?
Mudámos a estrutura da carta: Fizemos 12 pratos e cada um escolhe os pratos para fazer o menu pelo qual optou. Cada um desses pratos tem um preço individual, caso queiras escolher à carta. Por sua vez, o menu tem uma fórmula, ou seja, um menu de quatro pratos custa x e o de cinco custa y, e trabalhamos mais o amuse bouche.

“Se portuguesa é a matéria-prima ser nacional, sim, é 100 por cento portuguesa.”

O produto português é, uma vez mais, homenageado com este porco preto servido, da cabeça aos pés, com um memorável xerém algarvio coberto com terrina feita com a cabeça da referida raça autóctone e harmonizado por um Altas Quintas Reserva 2013, um Vinho Regional Alentejano feito a partir das castas Aragonês, Trincadeira e Alicante Bouschet, servido pelo escanção Ivo Peralta. Pelo meio foi servido o inesquecível choco frito, com salmonete, batata nova e couve pak choi, um prato que remete para sabores verdadeiramente genuínos, assim como o filete de peixe galo, com variações de aipo, castanhas e ouriços do mar cuja criatividade testemunha a sensibilidade do chef Miguel Rocha Vieira e da equipa de cozinha do Fortaleza do Guincho

É uma cozinha mais portuguesa?
Se portuguesa é a matéria-prima ser nacional, sim, é 100 por cento portuguesa. Até há cerca de um mês a manteiga vinha de França, agora, finalmente, chegamos a um acordo com as Marinhas, de Esponsende, portanto, agora, é tudo nacional. Nisso o Gil é paranóico – até o esparguete do pessoal vai ver se é nacional! E também reinventamos clássicos portugueses.

Como a sopa da pedra.
Temos a sopa da pedra. Nos snacks temos os pastéis de massa tenra, o carapau seco que, entretanto mudou, mas o conceito continua o mesmo. Temos a dobrada e temos um prato de carne maturada, que vem de lá do Norte. Mesmo assim, é uma carta muito virada para o mar.

De que forma são apresentados os dois clássicos das nossas cozinhas num restaurante com uma estrela Michelin?
A sopa da pedra tem duas mãos e as pedras, mesmo, ou seja, conta a história ali, no prato, daí o papel fundamental da sala, que entra e explica as nossas tradições também a quem vem de fora. Tentamos refinar um pouco, com um caldo e não a sopa pesada que conhecemos, com sabores nossos, fortes.

Esteve muitos anos fora do país, contactou com outras realidades, construiu uma cozinha de raiz, quer no Costes, quer no Coste Downtown, em Budapeste, na Hungria. De que forma decorreu a reaprendizagem na cozinha dentro de portas?
Lembrava-me dos clássicos que gostava de comer e que a minha avó fazia quando eu cá vinha, mas a entrada do Gil foi importante.

“Aqui, como é um hotel onde há mais estrangeiros (…), faz sentido que comam os nossos produtos.”

O delicioso risotto de cevadinha e os sabores inconfundíveis dos funchos da terra e de mar complementaram o pargo cozinhado ao vapor servido com o duriense Lavradores da Feitoria Meruge Viosinho 2013

É um regresso às origens?
Sim, é um regresso às origens, sem dúvida. Temos produto óptimo. Se calhar não tens o foie gras, de França, mas tens os carabineiros, um produto de topo, depois, para ter um ponto de partida, optamos por tudo o que seja nacional. Coloco-me sempre na parte de turista, quando vou viajar, por isso se vou para a Ásia não estou à espera para comer um hambúrguer ou um esparguete à bolonhesa. Aqui, como é um hotel onde há mais estrangeiros – felizmente, está a mudar um bocadinho com a vinda de cada vez mais portugueses –, faz sentido que comam os nossos produtos. Se estamos perto do mar, há que mostrar o produto do nosso mar.

Houve um trabalho que teve de ser começado no que aos fornecedores diz respeito?
Mais ou menos. O Fortaleza [do Guincho] sempre foi conhecido pela qualidade dos produtos, por isso sabia, de antemão, que quando aqui chegasse iria ter a liberdade de trabalhar com os melhores. Avançamos com a maior parte dos fornecedores que trabalhavam com o Vincent [Farges], como a Quinta do Poial, em relação à qual o Vincent [Farges] foi muito importante. De qualquer maneira, tive de me formatar, porque há dias certos para encomendar – lá ligava para me enviarem os produtos quando precisava –, por isso, ao princípio, essa gestão foi um bocado difícil.

“(…) vires, de Lisboa, para jantar ao Guincho, é porque tem de ser um grande jantar. Tem mesmo de valer a pena e isso tentamos sempre!”

As pinhas de chocolate e avelã e as de gelado de resina, o crumble de pinhão assado, a mosseline de pinhão e os biscoitos de massa choux são uma doce alusão às dunas do Guincho combinadas com um Domingos Soares Franco Colecção Privada Moscatel de Setúbal Armagnac 2004, da José Maria da Fonseca

O Gil Fernandes é o braço direito do chef.
É o direito, é o esquerdo… É a peça fundamental no meio disto tudo. Sou um sortudo! Somos diferentes, mas é um pouco como eu, quer tudo para ontem ou para hoje. Tem pernas para andar e eu dou-lhe liberdade para isso. Se calhar há chefs que não partilham desta opinião, mas se é para melhorar, porque não mudar?

As memórias de infância do chef estão nesta sobremesa de sorbet de marmelo, pedaços de merengue com argila comestível, marmelo fresco e mousse de tigelada, a qual é servida num prato pintado com marmelada numa alusão à tigelada, servida com Grandjó, um colheita tardia da Real Companhia Velha cuja casta é a Semillon, também conhecida como Boal, da colheita de 2012 da vinha de Casal da Granja, na vila de Granja de Alijó, uma combinação irrepreensível por parte de Ivo Peralta

Por falar, uma vez mais, em mudança, também as houve na sala, mais concretamente, na louça.
Sim, houve. Não tanto quanto gostaria, porque continua muito pesado para a cozinha que fazemos, mas há um choque, ou seja, o prato não pega muito com o ambiente, o espaço em si, ou seja, o espaço continua o mesmo, mas a cozinha já não o é. Não nos podemos esquecer de todo o passado que a Fortaleza do Guincho tem, é um Relais & Châteaux, quer queiramos, quer não, é um hotel de charme, o restaurante tem uma estrela – há pessoas vêm à procura disso, mas é difícil… que não percas a identidade e que seja uma continuação da cozinha. Mas acho que vamos a caminhar para lá. Não é a cozinha que faço em Budapeste, é a minha cozinha no Guincho. É a nossa cozinha, é de toda a equipa! É do Gil [Fernandes], do Filipe [Manita], o chef de pastelaria – uma máquina! Além da pastelaria, há o pão do pequeno-almoço, o do almoço, do bar, o do restaurante, as sobremesas, os chocolatinhos que deixam no quarto.

Sente que ainda existe este estigma em relação ao restaurante de hotel?
Ainda por cima de um que fica no meio do nada. Para, num dia de Inverno, te meteres num carro, à noite, e vires, de Lisboa, para jantar ao Guincho, é porque tem de ser um grande jantar. Tem mesmo de valer a pena e isso tentamos sempre!

Eis muitas e boas razões para se fazer à estrada e conhecer a nova carta de Inverno do chef Miguel Rocha Vieira, no Fortaleza do Guincho, a qual regista memórias, tradições e raízes do nosso país e, ao mesmo tempo, desfrutar de uma vista privilegiada para o Atlântico durante o repasto, pois vale a pena a viagem.

Bom apetite! •

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