“Un Certain Regard” / CAV

Inaugurou em Abril; permanecerá até Setembro. Propõe “un certain regard”, que se aloja nas cavidades da elegante sala onde persevera o Centro de Artes Visuais, em Coimbra. Sim, e intitula-se, mesmo: Un Certain Regard.

© Fotografia: Jorge Simões

Cabendo a curadoria a Albano Silva Pereira, nesta exposição contam-se obras de 33 artistas (32: um é uma “dupla”): 24 (23?) homens e 9 mulheres; provêm, as obras, essencialmente, da Colecção Norlinda e José Lima, que sustenta e motiva, portanto, esta exposição. Sendo o seu enfoque a fotografia, diria que comunga do espírito primordial da sala que vivifica o CAV; paralelamente resultou, aparentemente, de uma paixão. Qual? A que Albano Silva Pereira dirigiu ao sentimento equivalente do coleccionador: por isso foi preparado um documento onde pode ler-se extensa entrevista que junta os dois. José Lima, a dado momento, afirma: “Aquilo que mais gostaria era de ver a minha colecção espalhada pelas casas das pessoas, pelas escolas! Gostava que as pessoas começassem a olhar para a arte com outros olhos. É tudo muito elitista. Olha o caso dos críticos de arte (não é que isto seja uma crítica). As suas críticas contêm termos muito rebuscados, como se se dirigissem apenas uns aos outros.”

Na floresta, a crítica de arte avança tentando vislumbrar a(s) clareira(s), mas…como Bragança de Miranda observa acutilante: hoje, a luz é eléctrica; a (re)invenção, embora conte com a Lua e com o Sol, inscreve-se nas dobras do Tempo. À Palavra parece não reservar-se, já, o sentido original; todavia, e como Paul Celan deixou escrito, existe “um homem justo desprovido de ponteiros” capaz de sair dos pântanos da História e que, exactamente por isso, tem…tempo. Foi esse “tempo” que me concedi: fosse para ver a exposição (2 vezes), fosse para nela reflectir; e o olhar que vos proponho, agora, pese embora se contem 9 mulheres para 24 (23?) homens, é feminino.

Ora, se Albano Silva Pereira demonstrou, como afirmou, algum desconcerto ao mergulhar na ampla, e multiforme, Colecção Norlinda e José Lima, que considera mesmo um “diamante em bruto que ainda está por facetar”, e pressupondo que o pacto estabelecido pelo curador é em tudo semelhante ao pacto que a crítica enceta – a saber: apresentação de um ângulo sólido, cuja abertura para o respectivo ponto de vista não se dilua numa amorfa ausência de conflitualidade (a realidade é como a natureza, sobre a qual Maria Gabriela Llansol responde a Spinoza, a quem chama de “meu amor”, que nunca ninguém a viu); então, também aqui cada sujeito que percepciona leva consigo varas de vedor. E, ainda com Maria Gabriela Llansol, sei que “o começo de um livro é precioso”, o que é afirmar, pelo começo do actual texto, três realidades: o curador; as obras; o/as artistas. E por tal já se impõe uma perspectiva. Certamente esta colecção sintetiza um verdadeiro “estrelato” no que se refere a “nomes”, de artistas; no entanto, ao invés dos “nomes”, prefiro reparar no que as obras fazem, ou seja, no que propiciam ao pensamento. Uma ressalva: “nome” como uma espécie de vapor, ou perfume – sim; como marca, a reverberar o capitalismo – não. O tráfico dos nomes repercute-se. O que não significa que não defenda as palavras como se cobrissem o próprio corpo, como se fossem da mesma matéria que a minha pele: Bragança de Miranda também disso fala, em Analítica da actualidade.  

A potencial figurabilidade, no Ocidente, remete-se, usualmente, para o corpo de Cristo; no entanto, e como Hans Belting justamente coloca, vem ferida de morte: comporta uma irrealidade relacionada com a génese desse corpo, fazendo oscilar os nossos olhos ante a presença e a ausência, ou seja, ante o interdito de representar um corpo glorioso. A abstracção o que fez? Criar linhas de fuga, “ver” os corpos por dentro e recriar o(s) mecanismo(s) do(s) mundo(s). Todavia, existe um outro corpo matricial – o da Virgem, e seguindo a visão de Julia Kristeva: sendo um corpo sem sexualidade, ou cuja sexualidade se censurou, Maria protege o artista da angústia relativa ao drama edipiano, permitindo-lhe incorporar o gozo/prazer negado, que transfere para o delírio das formas por ele próprio engendradas. Para Julia Kristeva, ainda, a sagração de Maria é a condição intrapsíquica que favorece a eclosão da arte ocidental, com o autor a delinear-se, intempestivamente, enquanto criador solitário: simultaneamente sujeito e objecto. Será esta a visão ordenadora do olhar (o meu) que descortina Un Certain Regard: o que lhe proponho.

Gostaria, entretanto, de terminar com Robert Bresson, a partir das suas Notas sobre o Cinematógrafo, concretamente duas, bem próximas no pequeno livro: “Encenador ou director. Não se trata de dirigir alguém, mas de dirigir-se a si mesmo”; “MODELOS Entre eles e eu: ligações telepáticas, adivinhação.” Faço minhas as palavras de Bresson, e é com elas que derradeiramente vos deixo. Inaugurou, portanto, a 29 de Abril, mantendo-se até ao dia 10 de Setembro, no CAV: Pátio da Inquisição, 10, Coimbra. Noticie-se que, à semelhança do que aconteceu em Junho, Julho e Setembro terão visitas guiadas em dois sábados, respectivamente, 22 e 2, mediante pré-inscrição no endereço info@cav-ef.net . Guiado/a, ou solitariamente, não falte!

 © Fotografia de entrada: Anibal Lemos

Já recebe a Mutante por e-mail? Subscreva aqui .