Nesta recta final do verão, com o outono no horizonte, viramos atenções para Berlim, para uma conversa com Bonaparte, alter-ego de Tobias Jundt e do seu projecto musical, com o seu mais recente trabalho “The Return of Stravinsky Wellington”.
Bonaparte, projecto musical criado por Tobias Jundt – músico, compositor e produtor suíço radicado em Berlim -, é movimento na sua essência, que absorve elementos, imagens, sons, melodias, sabores, línguas, geografias, de todos os locais por onde passa, nas suas inúmeras viagens. Ao absorver toda a variedade de contextos culturais, Bonaparte desenvolveu uma habilidade fora de série para abraçar uma constante transformação que mantém a sua música sempre imprevisível e original. Da mesma forma que se deixa, sozinho, entranhar por tanta informação exterior – e que, até num campo da linguística se sente a sua liberdade, vontade de criar e experimentar – Bonaparte reúnes colaboradores, conspiradores, bailarinos e amigos que lhe permitem ir mais além na sua expressão artística.
Aclamado pelos seus concertos ao vivo, verdadeiras performances que já quem viu, certamente, atesta, o seu som poderia ser definido como indie/ punk rock, mas é muito mais que esta limitativa rotulagem; é toda uma experimentação de estilos, de influências pelo que é incomum. Com vários trabalhados editados e um último que deu mote para esta conversa, eis Tobias Jundt/ Bonaparte.
© Melissa Jundt
Comecemos com uma pergunta que já deve ter sido respondida um milhão de vezes. Porquê Bonaparte para nome deste projecto musical? Alguma afinidade com a figura histórica que se diz ter sofrido de dores de estômago e que teve problemas com a Rússia no inverno?
As dores de estômago não compartilho e, actualmente, não tenho problemas com a Rússia… Em 2005, deixei a minha cidade natal num carro de rali de 1969 e viajei pela Europa sem rumo traçado. Comigo, levava apenas uma pequena guitarra e um computador portátil, e comecei a escrever músicas que mais tarde viriam a formar o álbum “Too Much”. Posteriormente, quando fui convidado para dar um concerto em Berlim, tinha de ter um nome para colocar nos folhetos. Por algum motivo, disse-lhes para escreverem Bonaparte e para acrescentarem “Bonaparte – For the First and Last Time Ever””. Todavia, o concerto foi tão animado que continuei e não parei mais de dar concertos…
Ao ler sobre Tobias Jundt (Bonaparte) enquanto ser insatisfeito, sempre à procura de mais e mais na vida, cruzei-me com uma citação de Loic Matter (filósofo suíço) a falar de si próprio: “Vem-se entranhando em mim a quietude, a solidão, a rotina e a introspecção. Se quer ser feliz, não seja como eu”. Tendo visionado concertos teus, conhecendo a tua música, sei que seguiste o conselho de Matter.
Também podemos ler Matter a falar sobre ti, após ter recebido uma cópia do teu álbum. Citando o filósofo, “Conheci o Tobias Jundt, a quem vocês chamam Bonaparte, quando ele era apenas uma criança. A sua família estava em Troemli – uma rua abaixo da minha. Um dia bateu à minha porta e perguntou-me se eu tinha queijo. Ele era uma criatura bastante estranha, mas partilhávamos a mesma afinidade por queijo Gruyere. Agrada-me saber que ele nunca parou de procurar por queijo.”
© Capa do álbum “The Return of Stravinsky Wellington”, Melissa Jundt
Recorrendo a Stravinsky: “A minha infância foi um período de espera pelo momento em que poderia mandar todos para o diabo“. A tua educação permitiu que te sentisses sempre à vontade para mandar todos para o diabo, para seres tu mesmo desde pequeno?
Sim, claro. O cenário era este: sentado no meu quarto a tentar escrever músicas que me iriam permitir derrotar todos os miúdos cool que praticavam desportos, ou que tinham televisão, ou o mais que fosse. Normalmente, este tipo de missiva demora uns anos, mas, eventualmente, serás bem sucedido porque o que fazes é original. O que os outros miúdos faziam era serem bons na exacta mesma coisa que todos os outros. Era, definitivamente, eu contra o mundo durante uma grande parte da minha infância.
Depois, há a casa onde cresci. Era muito antiga, mas estava cheia de pequenos recantos, esconderijos e armários que eu podia usar para construir o meu próprio mundo. Desde os meus seis anos que tinha o meu canto para gravar coisas. Na minha imaginação, vivia sempre num universo paralelo e isso foi permitido por quem me circundava – bem, que poderiam fazer eles quanto a isso?…
Como é que aquela “procura por queijo” influenciou o teu caminho na vida?
Quando és uma pessoa que está constantemente a viajar, tu precisas de determinadas coisas que te relembrem a tua terra natal. Para mim, comer um bom pedaço de queijo suíço é como uma janela aberta para os cheiros e sons da montanha. É algo sagrado para mim… Eu como bocados enormes de queijo da mesma forma que outros comem pão. Se pudesse, fazia contrabando de malas cheias de queijo na fronteira.
Para saciar a minha humilde curiosidade gourmet, porquê Gruyere e não Emmentaler, e.g.?
Definitivamente, Gruyere. O Emmentaler digamos que é um pequeno lapso no universo do queijo. Porém, aconselho-te a provar o bom e velho Appenzeller, que garante, indubitavelmente, o seu lugar próximo do patamar de um velho Gruyere.
Assumindo que sempre foste “uma criatura bastante estranha” e sabendo que não és um músico comum, vamos concentrar-nos nos concertos já dados, a quem ninguém fica indiferente.
© Jean Raclet, Rock im Park
Nietzche diz: “E aqueles que foram vistos a dançar, foram tidos como loucos por aqueles que não conseguiam ouvir a música.” Os teus concertos são muito mais do que apenas músicos a tocar. São o que poderíamos chamar de “happenings” ou “live performances”. Alguma vez pensaste no que quem vos vê pode pensar dos vossos concertos?
Nunca pensei muito sobre isso. Para mim, nunca parece muito forte o que fazemos. É algo que, simplesmente, sentimos como natural. É uma espécie de explosão, de empurrão até o limite, levando-nos para novas áreas, não parando quietos, questionando-nos fazendo e acontecento. Entendo que, algumas pessoas, fiquem por vezes chocadas, mas honestamente creio que é por termos uma sociedade um pouco inibida e reprimida. Logo após o concerto que demos há dias em Lollapalozza (Berlim) – que não foi assim tão louco – algumas pessoas disseram que ao início ficaram chocadas e que depois sentiram-se livres. Diria que isso é bom.
Qual é o lema por detrás dessa “Manner of speaking” de uma dança livre contemporânea?
Não sei muito sobre arte ou o que é considerado contemporâneo. Interesso-me mais por reunir uma selecção de músicos e artistas para cada tour – o resto é a sua própria expressão. Cada corpo tem sua própria história para contar, o seu próprio vocabulário.
Essas performances são uma maneira de elevar as tuas músicas?
Creio que sim. Senti sempre que devia acontecer algo mais em palco do que apenas músicos a tocar música. Actualmente, tenho mais músicos que performers em palco, mas isso é também porque escrevi partes para instrumentos de sopro, para todas as canções deste novo álbum. Entre 2006 e 2012 o palco era, geralmente, 50/50; então, havia tanta música como havia live performance a acontecer ou, às vezes, até havia apenas um velho homem sentado numa cadeira a ler um livro durante 60 minutos, ou um chef a grelhar salsichas, ou um bico de Bunsen aceso, ou o que encaixasse ali, na música. Sempre foi mais pelas pessoas em si, pelas pessoas envolvidas. Primeiro conheço o ser humano e só depois decido como pode ele contribuir para o espectáculo.
© Melissa Jundt (pormenor)
Se tivesse que desenhar uma árvore de influências para Bonaparte – com família, heróis, ícones, ídolos – que fizeram de ti o que és agora, que nomes teria de escrever?
Um ramo seria com artistas, a maioria deles, de alguma forma, outsiders da sociedade que, eventualmente, se tornaram conhecidos por desenvolverem uma linguagem original forte como Serge Gainsbourg, Grant Green, John Coltrane, Siriusmo, Buster Keaton, Billie Holiday, Humphrey Bogart, Egon Schiele, Baudelaire, etc. Outro ramo seria a minha actual família que incluí parentes e amigos como Tim Fite ou a minha tartaruga Bengurion, ou os meus gatos Minski e Stravinsky. Um terceiro ramo seria dos lugares; lugares geográficos reais e aqui na terra. Mais do que isto, os meus heróis são, normalmente, apenas pessoas comuns. Sê um herói na vida quotidiana!
Dos concertos ao vivo para a lírica.
Se prestarmos atenção às letras, todos o deveríamos forma fazer, de alguma, com qualquer música, podemos notar o quão sociopolítica é, por vezes, a mensagem que transmites. Nos dias de hoje, isso é obrigatório para ti?
Creio que sim. Não é obrigatório para todos, mas sim, é quase inevitável para mim. Porém, também entendo que muitas pessoas não ouvem/ lêem as letras; mas, obviamente, quer a mensagem e quer a atitude desempenham um papel muito importante nas canções de Bonaparte. Assim, da mesma forma que sei que algumas pessoas não ouvem a letra, sei que nos outros que a ouvem que posso provocar uma mudança. A música pode ser algo extraordinariamente forte e ser catalisadora, uma banda sonora para uma revolução pessoal.
Concentrando-nos na parte política e não nos podendo alienar do teu nome artístico, citemos Napoleão: “Na política, a estupidez não é uma desvantagem“. Embora goste de manter a política fora das entrevistas, não posso resistir a perguntar-te o que pensas desta citação e o que terias dito a Napoleão se ele te tivesse dito isto a ti?
Teria dito: “Entre e tome uma bebida comigo”. Olha para a metade dos líderes do mundo de hoje – ou são incrivelmente inteligentes ou simplesmente idiotas – fingir ser-se estúpido parece funcionar bastante bem.
© Jean Raclet, Rock im Park
Afastando-nos da política e focando-nos na música como meio de expressarmos tantas emoções, sentimentos ou estados de espírito, Victor Hugo diz: “A música expressa o que não pode ser dito e é impossível silenciar“. Concordas?
Na verdade, é uma das minhas citações preferidas. A música é uma forma única de comunicação. Muito é dito entrelinhas de palavras e entre as notas tocadas – então, uma grande parte da mensagem não é realmente tangível, é mais interpretação emocional. Assim, tu podes comunicar através da música sem teres que dizer as palavras concretas e ainda assim seres compreendida – e isso faz da música uma arma fortíssima. É um mundo entre mundos.
O que é “mais fácil” de expressar através da música, o amor ou a consciência sociopolítica?
Ambos são, por vezes, muito fáceis e, outras vezes, bastante difíceis de expressar. Na melhor das hipóteses, tentamos expressar algo imenso com algumas palavras simples…
No amor, o “Accent” (vamos usá-lo como metáfora para o ser-se diferente) não deveria ser um obstáculo, certo?
O sotaque – “Accent” – pode sim, ser usado como uma metáfora para o ser-se diferente. No final do dia, tudo se resume a isso, é o que o sotaque é. A canção (“Fuck Your Accent”) diz, de uma forma divertida, que eu gosto do que é diferente numa outra pessoa. Num mundo xenófobo, digo que gosto das dissonâncias, do exótico, do sotaque, daquilo que se destaca, daquilo que não se enquadra, digo que abraço tudo isto e que tudo isto é atractivo.
© Melissa Jundt
“Up, Guards, and at them again“, Duke of Wellington. Com certeza, já imaginavas que não o ía deixar de fora. Bonaparte tem novo álbum, gravado por Stravinsky Wellington no Bonaparte Studios, em Berlim. Sugiro que imaginemos, por momentos, que é Bonaparte que diz “at them again” com um som tão distinto dos outros álbuns, contudo sem perder a identidade, com “The return of Stravinsky Wellington”.
Não, claro que não. Já estava à espera que o citasses. Como artista, tens sempre a possíbilidade de te manteres num estilo e fazeres uma versão verde ou azul de algo que já tenhas criado. Ou então, podes continuar a crescer e entrar em novas fases e depois numa outra nova fase, mais tarde. Não podemos dizer que um está certo e outro errado, depende do personagem que o artista encarna e da sua envolvente. Quis fazer este álbum da forma que está e, agora, já estou a criar um álbum diferente que se desenvolve a partir deste último e depois… farei provavelmente um álbum hard core, quem sabe?!…
Porquê, agora, um álbum que nos dá um Tobias Jundt mais calmo, com um som mais despido em Bonaparte? Isto sem perder a mensagem forte, como na canção que abre o álbum – “White Noise” – onde ouvimos ” the middle class is fading / those friends in higher places are deceptive clowns parading” ou na minimal “Melody X” com “now you look for love in a time of hate“.
Quando estava a escrever este álbum, senti que o mundo estava, e ainda está, um pouco transviado, que os modos e maneiras estão a ficar um pouco mais rudes e não quis responder na mesma moeda, gritando. Poderia tê-lo feito, mas senti que precisava de seguir um caminho diferente e, neste caso, era revelando o coração para, como tu dizes, ter uma postura mais despida, que mostrasse um lado mais humano num mundo cheio de máscaras. Quando as coisas se começam a tornar um pouco sérias, por vezes tens que guardar as piadas para mais tarde.
O mesmo Duque W. diz: “Não sei que efeito terão estes homens sobre o inimigo, mas meu Deus, eles assustam-me.” Que efeito esperas que este álbum tenha ao vivo e como constróis agora os teus concertos?
Nós estamos, praticamente, a encerrar os concertos deste álbum e, como em todos os álbuns, leva algum tempo até que tu percebas o efeito das músicas de uma perspectiva ao vivo. Normalmente, escrevo músicas enquanto viajo e depois gravo algures; uma vez que as músicas estejam lançadas, mostro à banda e tentamos deslindar como as podemos transformar para concertos ao vivo. É bom podermos adicionar músicas mais calmas ou mid-tempo ao alinhamento. Há mais espaço para outras coisas e quando voltas ao ritmo acelarado do punk, volta a ser animado, novamente. Com esta heterogeneidade podes fazer um alinhamento mais maniaco-depressivo (risos).
© Jean Raclet, Rock im Park
A fechar o álbum temos um “High five in your face” e uma criança a cantar. Stravinsky ataca novamente com “A minha música é mais bem compreendida por crianças e animais“. Que dizes Bonaparte?
As crianças e os animais têm uma forma muito direta de dizer se gostam, ou não, de algo. Diria que as crianças não ficam mais ou menos chocadas ou indignadas com algo só porque as regras de etiqueta o exigem; diria que elas simplesmente decidem se gostam de algo ou não e ponto final. Confesso que aprecio isso. Nos animais… O gato está com fome, o gato come. A gata está no cio, a gata procura companheiro. O gato precisa de mimo, o gato exige ser mimado. O gato gosta da música, o gato dorme em cima das colunas de som. O gato está chateado, tu foste em tour, o gato vai ignorar-te durante dois dias. Vivo tão bem com isto.
Sem sair desta música, e depois de ler as notas finais no LP, pergunto-me se é a tua filha que canta esta última música?
Sim, a letra do “High Five in Your Face” foi escrita e interpretada pela minha filha mais velha, Ruby, quando tinha cinco anos. Passou um dia pelo estúdio e ei-la aí… É uma das melhores letras deste álbum!
Insistindo na voz. Porquê a tua filha para cantar, foi premeditado terminar o álbum de forma tão espirituosa?
Bom, ela escreveu, fazia sentido ela cantar. Nós já escrevemos um par de músicas juntos, mas ainda não gravámos quase nada.
Não consigo resistir a analisar ao pormenor a conceptualidade desta letra. Temos uma “luta de gato” (cat fight), sem sangue no nariz (no blood in the nose), e a pequena Ruby até nos diz para darmos uma palmada no rabo do Apatossauros “tap it on the butt”. Há algo nas entrelinhas ou apenas o puro gozo para atingir um pico de incontestável alegria?
Para mim, a letra é genial porque conseguiu traduzir uma atitude, uma personalidade, de uma forma muito simples e engraçada. Uma luta de gato, pode ser também uma luta de mulheres ou de dois gatos, e assim damos à mesma “luta” duas leituras. Ao dizer que “my nose is not bleeding”, tu sabes que já estás a sangrar do nariz, mas não admites, enorme personalidade. Dizer “tattoo in your eyes” é tanto poético como é rebelde; é um outro nível e, claro, se há um dinossauro gigante no teu quarto – real ou metafórico – o melhor mesmo é dar-lhe uma palmada no rabo e ainda desafiar com um “Vá, vem cá. Podes vir”.
E, de repente, uma imagem cruza a minha imaginação, já alguma vez foste à procura de queijo com um gato ou um Apatossauro como companheiros da Grande Cruzada Gruyere?
Ainda não, mas vou colocar na minha bucket list. Obrigado!
Para terminar, concertos. Há no horizonte uma tour europeia?
Adoro tocar ao vivo logo, sim. Haverá sempre concertos! Todavia, costumava dar cerca de uma centena de concertos por ano e, neste momento, não quero ir por aí; quero passar mais tempo num lugar e gravar bastante material em estúdio. Consequentemente, haverá menos concertos. Só tocamos quando sentimos vontade e nos parece que pode ser algo especial, por uma razão ou outra. Tocámos no dia 10 de setembro no Lollapalooza, em Berlim, e foi excelente! O actual grupo de músicos e bailarinos que esteve lá, é o melhor grupo de pessoas que podia estar, em mil anos.
Se nunca ouviu, abra horizontes e parta à descoberta das sonoridades punk, genuinamente originais e com um percurso verdadeiramente heterogéneo, de Bonaparte. Se já conhece e ainda não se perdeu em “The Return of Stravinsky Wellington”, surpreenda-se. Quanto a concertos por cá, é cruzar os dedos (com convicção) na esperança que alguém os rapte (o quanto antes) e os traga, novamente, a Portugal (recordamos que Bonaparte já actuou, há uns anos, em Serralves). É a ouvir e (re)ouvir, de fio a pavio. •