Os produtos nacionais e a sazonalidade convocam uma viagem “de autor”, desde o Minho e do Douro à região algarvia, dominada pelo sabor real do Outono em cada prato, sobretudo, do imenso Atlântico e do fumeiro, à mesa do restaurante da Casa da Calçada, no centro histórico de Amarante.
A surpresa manteve-se até nos sentarmos à mesa disposta na sala privada contígua à garrafeira envidraçada do Largo do Paço, o restaurante da Casa da Calçada Relais & Châteaux, com uma estrela Michelin tendo, a primeira, sido conquistada em 2004, ou seja, três anos após a abertura de portas.
Preparados para o repasto, inicia-se o serviço com o espumante da casa, Quinta da Calçada rosé num gesto de boas-vindas, para acompanhar as conversas até ao momento das saudações do chef Tiago Bonito que, em Abril deste ano rumou, de malas e bagagens, para terras de Amadeo Souza-Cardoso.
Saudações para acicatar o palato
Antes de mais, há que começar pela trilogia composta por Porto tónico, kumquat (citrino de origem chinesa) e raspas de lima, seguida pela bolacha amêndoa e Queijo Terrincho Velho (de pasta dura e curado a 90 dias) recheada com banana e marmelada, e por uma pâte de fruit (pasta semelhante à goma, feita à base de fruta) de dióspiro – que não perde a textura que o caracteriza – e gel de gengibre.
Depois foi a vez do dueto composto por um admirável tártaro de ostras com peixe branco e molho asiático e de um cone de alga recheados com pepino, atum dos Açores e gel de limão. Ambos remontam para a infância e a adolescência de Tiago Bonito, natural da Carapinheira, em Montemor-o-Velho, concelho vizinho da Figueira da Foz – talvez seja esta a razão para afirmar com veemência: “Sou pescador.”
A interrupção nos sabores marinhos dominantes nas saudações do chef é feita com os chips de batata suflê recheada com frango e molho de barbecue, uma inspiração no frango piri-piri que, neste caso, contém paprica de camarão vegetal e molho aioli.
Veio o pão e a broa. A tarefa de moer a matéria-prima cabe a um moleiro de Bragança, mas é sobre a broa que Tiago Bonito mais fala, porque era feita, aos sábados, pela mãe no forno a lenha que, ao domingo, servia para assar o cabrito ou a chanfana ou o galo.
9 pratos, 10 mandamentos
Mergulhemos. Desta vez são a enguia, as ostras e o fitoplâncton que fazem companhia ao creme de agrião no prato e à espuma de maçã, o dueto que contrastou na perfeição os três primeiros. A escolha do escanção David Teixeira recaiu num Quinta da Calçada Alvarinho 2016.
Já a segunda entrada é protagonizada pelo foie-gras servido com pêra Rocha, cacau e especiarias acompanhada por Soalheiro Sócil 2016, do produtor e enólogo António Luís Cerdeira e feito a partir da casta rainha da Região Demarcada dos Vinhos Verdes, a Alvarinho.
O mar é, de novo, revisitado no prato pelo chef Tiago Bonito, com a vieira, os perceves, o tártaro de carabineiro, as algas e um surpreendente consomé de lavagante. Resultado? Uma combinação soberba de sabores harmonizada com Casa Ferreirinha Vinha Grande branco 2015, feito a partir de Viosinho, Arinto, Gouveio, Códega e Rabigato, castas autóctones do Douro.
O lavagante azul foi o protagonista que se seguiu na companhia de caviar imperial, uma espuma de citrinos, a renda de açafrão e o arroz carolino – talvez numa alusão aos arrozais de Montemor-o-Velho – com tinta de choco e funcho fumado. Um prato muito bem construído, quer nos sabores de cada produto, quer à combinação entre si.
Porque o robalo selvagem “tem agora mais sabor” e porque o respeito pela sazonalidade e pelo ecossistema são dois dos requisitos fundamentais na sua cozinha, Tiago Bonito escolheu-o para o prato seguinte, com a sapateira, a tupinambo (ou girassol batatateiro, oriundo da América) e o champanhe. É provar!
Vamos para terra. Primeiro com o pato de Landes com trufa, beterraba e geleia real, a representação do Outono à mesa apanhada em cheio! No copo houve Quinta da Casa Amarela reserva tinto 2013, um duriense feito a partir de três castas típicas da região: Touriga Franca, tinta Roriz e Touriga Nacional.
O bovino maturado da região minhota deu lugar ao sétimo momento do menu Identidade e o mote para Tiago Bonito revelar que dá primazia ao trabalho com produtores locais, “desde o agricultor ao produtor/fornecedor de carne”. Para fidelizar a relação, o chef desafia-os a vê-lo a fazer o prato, “para eles provarem e sentirem a importância da carne no prato”. Os cogumelos chanterelles e as alcachofras acompanharam a carne, rematada com um molho bordalês, aromas que reportam o chef à sua infância, ao fumeiro, ao qual se dedicava a sua mãe.
Na pré-sobremesa, a falsa noz de chocolate e uma falsa torta de abóbora e cardomomo, o memorável gelado de leite de cabra fumado e o caldo de beterraba adoçou o palato, preparando-o para o grande final, a recriação do Douro, “a palavra mais conhecida além-fronteiras”.
Entre folhas de videira comestíveis, esferificações que imitam uvas e um sorbet de moscatel duriense, Tiago Bonito desenhou um prato que homenageia o vinho produzido na mais antiga região demarcada do mundo.
Eis a criação da “Identidade” (€145) do chef e do Largo do Paço, um menu criado sem limitações, construído de raiz e que segue os 10 mandamentos por si implementados e respeitados em cada momento: criatividade, produto, evolução, inspiração, conhecimento, memórias, dedicação, sabor, tradição e experiência. Uma experiência com 15 anos sempre “aliados à hotelaria de luxo”, como fez questão de salientar, desde o Vilalara Thalassa Resort, em Porches, no Algarve, ao Lisboeta, na Pousada de Lisboa, com uma breve passagem pela cadeia Anantara e que, em 2011, conquistou o o título de Chefe Cozinheiro do Ano.
Na nova carta de Outono e Inverno do Largo do Paço há ainda um outro menu: “Caminhos” (€105). A analogia ao percurso profissional, mas também às raízes do chef, com a floresta e os seus aromas, seguido pelo mar, a perdiz vermelha, o bacalhau “cozido à portuguesa”, o leitão à Bairrada inspirado numa receita do avô e, para terminar, o leite de cabra fumado e a reinvençoa do algodão doce.
Para os enófilos recomenda-se a degustação de vinhos “Escolha do Sommelier” no valor de €65, para o menu “Caminhos”, e €110, para o menu “Identidade”. Já a reserva pode ser feita de segunda-feira a domingo, através do 255 410 830, para o almoço, entre as 12h30 e as 15 horas, e jantar, das 19h30 às 22h30, mas ambos os menus são servidos sempre em mesa completa, entre as 12h30 e as 14h30 e as 19h30 e as 21h30.
Vale a pena a viagem até Amarante. Bom apetite! •