Ascensão / Rui Chafes

Na Igreja de São Cristovão, em Lisboa, e no ano de 2016, pulverizaram o espaço, tanto interior como exterior, esculturas de Rui Chafes. A minha memória intermitente guardou-as e, agora, verteram-se na escrita.

Ascensão, instalação patente na Igreja de São Cristovão entre 5 de Maio e 1 de Julho de 2016, tendo sido a terceira parte de quatro de Não te Faltará a DistânciaUma Exposição em Quatro Passos, inseriu-se num programa cujo objectivo foi reunir financiamento para a recuperação do templo religioso. Este remete-nos para o século XVII, sendo estofado com mais de 30 obras pictóricas de Bento Coelho da Silveira. A ambiência primordial do seu interior parece transportar-nos directamente para a temperatura que certamente se viveu durante a Contra-Reforma: um tenebrismo e uma terribilitá óbvias, embora, simultaneamente, uma luz jorrante dos janelões que rasgam a frontaria do edifício; tal contraste induz o claro-escuro que informou, e formou, os séculos XVII e XVIII numa dialéctica de pecado e salvação, conformadora de dogmas circunscritos a cinzel.

Nesta ambiência, as esculturas de Rui Chafes são/eram espécies de excisões bastante dóceis. A distância é fundamental para sentir uma obra de arte: existem casos em que um excesso de proximidade provoca cegueira; outros em que o afastamento demasiado obsta ao entendimento sediado no coração. Tal parece exigir-nos a estabilização de um ponto de vista, que é também compromisso perceptivo. Existem, sempre existiram aliás, mecanismos de estabilização de macro-pontos de vista, globais, totalizações da percepção singular, sobreposições amiúde grosseiras a uma urgente musicalidade – stimmung, como se a sociedade fosse, devesse ser mesmo, um colectivo de solidões de onde emanam monólogos, fiozinhos de olhar, novelos de palavras. Passo seguinte: deixar que os monólogos embatam uns nos outros e se confundam, sem propriamente existir um chefe de orquestra. Sabemos, ou podemos lembrar-nos bem, de todos os esforços no sentido de estabilizar tal chefe; o seu ilidir, naturalmente, exige de cada um/a de nós a chancela de um compromisso ético inabalável.

Janela da frontaria, entrada, nave, escadas de acesso ao coro-alto, sacristia e uma sala à direita: os seis pontos que selam as posições das excisões do escultor e que, no mesmo gesto, prefiguram estreitas entradas de acesso a uma Alice do Outro Lado do Espelho. No entanto, desde há cerca de dois séculos a esta parte que se julga a Alice perdida derradeiramente, sem conseguir transpor a porta do sentido; coisa que o pós-modernismo, seja o que isso for, não beliscou e até agudizou. Aqui chegadas, das duas uma: ou falamos da transcendência inerente à obra de Rui Chafes, ou insistimos na negritude da sua caligrafia “férrea” e farejamos as 6 esculturas. A minha opção, agora, é outra: gostava de vos contar uma história de Ascensão, uma história, como todas as que se prezam de o bem ser, de amor.

Em São Cristovão, entre 5 de Maio e 1 de Julho de 2016, ocorreu um casamento: um homem e uma mulher uniram os seus destinos, ele à esquerda, preparado para nascer, ela à direita, aguardando-o mesmo à entrada da igreja, com as suas peles maceradas. Nas escadas de acesso ao coro-alto, riscadas a ferro e fogo pelos passos gastos de cuidados vários e incertezas sempre cruéis, mas em todo o caso necessárias, firmou-se um pacto, e registou-se a arqueologia do sentimento e da fé. Na sacristia permanecia a aliança com que tanto um como outra vestiram os seus dedos anelares das mãos esquerdas, aquelas que se tatuam e cujas veias transportam directas ao coração as memórias do silêncio. Do lado oposto da igreja, numa sala escura e vertiginosa, gruta do tempo, a passagem: vida e morte entrelaçadas. Na nave do templo e suspensas, novas escadas, cujos degraus replicariam os passos das anteriores: tudo quanto se pede a quem ama é tão somente isto, o caminhar sobre as águas. E assim se fez.

Pergunto: onde se encontrarão agora este homem e esta mulher? Termino com Daniel Filipe:

“[…] Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração
e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo […]”

+ Rui Chafes
© Fotografia: Alcino Gonçalves

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