Dos mariscos aos bifes, conheça a história de um espaço que de Convento virou restaurante.
Se já está a salivar ou com sede, calma! Hoje na cervejaria mais antiga de Portugal, servimos história. O chefe de serviço é o professor Anísio Franco, historiador de Arte e Conservador do Museu de Arte Antiga.
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Os primeiros séculos de história
Tudo teve início em finais do século XIII, mais precisamente em 1294, com a fundação do Convento da Santíssima Trindade, na colina de Lisboa em frente ao Castelo de São Jorge, pelos Frades Trinos da Redenção dos Cativos, designação associada à função que tinham: resgatar os prisioneiros cristãos aos mouros. No entanto, a sua implementação demorou ainda alguns anos sendo apenas inaugurado, em 1325, pela Rainha Santa Isabel, mulher do Rei D. Dinis, que fez grandes contribuições para a sua construção. Durante os séculos seguintes este seria um dos maiores e mais importantes conventos de Lisboa, apesar de ter servido de palco a uma vida bastante atribulada.
No início do século XVIII, um violento incêndio destrói o convento por completo e, poucos anos, depois de terminadas as obras de re-construção, o violento terramoto de 1755 deita-o por terra. Insistem na sua construção e, passados dez anos e 13 dias depois da sua re-inauguração, um novo incêndio devasta o convento. Intactos ficaram, porém, a biblioteca – escapando, assim, diversos documentos históricos sobre a instituição –, a capela – que tinha sido construída noutro local, próximo do atual Largo Bordallo Pinheiro – e o refeitório onde hoje se situa a grande sala da Cervejaria Trindade.
O momento fatal acaba por acontecer em 1834, aquando da extinção das Ordens Religiosas, facto da História que Anísio Franco considera “a data de maior catástrofe para o património nacional”.
“O barão comeu o frade”: frase de Almeida Garrett em Viagens da Minha Terra
A frase do escritor romântico português do século XIX, Almeida Garrett, descreve bem o que se seguiu. No fim da guerra civil ganha pelos liberais, a burguesia endinheirada, principal patrocinadora destes, toma o património edificado das Ordens Religiosas, que acaba vendido em hasta pública.
Com o novo plano de urbanização da zona, parte do Convento da Santíssima Trindade é demolido para dar lugar à Rua Nova da Trindade. Em 1836, Manoel Moreira Garcia, aproveita as ruínas do antigo convento para construir a primeira fábrica de cerveja em Portugal: a Cervejaria Trindade. A nova fachada, datada de 1838 é decorada com os restos dos azulejos do convento, misturados, sem grande critério. Ao lado da fábrica, o empreendedor de origem galega constrói também a sua casa, o Palácio da Trindade, que ainda hoje existe.
O sucesso é tal que em 1840, no espaço que restava do refeitório dos Frades Trinos, o empresário abre um balcão para vender a sua cerveja a copo. Volvidos 14 anos, já o Rei D. Fernando, em nome do seu filho D. Pedro, que estava como príncipe regente, lhe atribui a chancela de fornecedor da Casa Real.
Painéis de azulejos criados por “Ferreira das tabuletas” com motivos de inspiração maçónica
Com o incremento do negócio da fábrica, dez anos depois é aberto um novo salão e as paredes do antigo refeitório dos Frades Tinos são renovadas com símbolos da Maçonaria, pelo artista Luís Ferreira, conhecido em Lisboa como o “Ferreira das tabuletas”. O novo salão é também ele decorado com iconografia do calendário maçónico pintado em grandes painéis de azulejos, produzidos na fábrica Viúva Lamego, representando os quatro elementos – água, terra, fogo e vento (o ar) – e as quatro estações – primavera, estio (verão), outono e inverno. Manoel Moreira Garcia, tinha ambições de ser maçon. No entanto, não existem registos de que alguma vez tenha conseguido entrar para uma loja por não respeitar as regras secretas das sociedades maçónicas ao expo-las publicamente.
Nos anos 20 do século XX, por morte de Domingos Garcia, que tinha sucedido ao pai em 1876, os principais empregados da fábrica criam uma sociedade para dar continuidade ao negócio com o apoio do capitalista Robisco Pais, que acabará por ficar o único dono.
Robisco Pais morre e lega a Fábrica da Trindade à Misericórdia, que a coloca em hasta pública para criar fundos de beneficiência, acabando por ser comprada pela Sociedade Central de Cervejas, da qual fazia parte a Portugália.
Sala Maria Keil
Em 1946, a Cervejaria Trindade é submetida novamente a obras de beneficiação. É criado um novo salão no espaço onde, em tempos, existiu a igreja do convento e, posteriormente, a fábrica de cerveja que passou para a Central de Cervejas.
Inspirado nos valores iconográficos nacionais da época, o novo espaço, mais requintado e reservado, é reformado pelo casal Keil do Amaral, arquiteto, e Maria Keil, pintora e ilustradora. As paredes são decoradas com painéis modernistas em mosaico de pedra, elevando à categoria das artes plásticas a calçada que calcamos nas ruas de Lisboa. Com composições modernas, em vez dos padrões esteriótipados do século XIX, Maria Keil introduz modernidade com composições cubistas de naturezas mortas, dando-lhe um novo estatuto. Ao fundo da sala um palco acolhia frequentemente atuações folclóricas. As cadeiras onde ainda hoje nos podemos sentar foram desenhas por Keil do Amaral. Este salão é, mais tarde, adaptado a restaurante típico, passando a designar-se Restaurante Folclore a funcionar de forma independente até 1972. Dois anos mais tarde é restabelecida a configuração dos anos 1940′ com a ligação de todas as salas.
Em 1986, por ocasião do 150.º aniversário da Cervejaria Trindade, a Câmara Municipal de Lisboa integra-a na categoria de Património Cultural da Cidade. Em 2007, volta a integrar o Grupo Portugália Restauração sendo, no ano seguinte, reformulada a sua imagem de marca.
Agora que já conhece uma parte da história deste emblemático espaço do coração da capital portuguesa, garanto que muito ainda ficou por escrever, provavelmente, sobre a mais bonita cervejeira do mundo. Portanto, faça como muitos boémios, estudantes, artistas, políticos ou cidadãos anónimos, em família ou em grupos, fizeram ao longo dos anos e viva a história viva enquanto bebe uma cerveja acompanhada de marisco ou dos famosos bifes “da casa”.
Bom apetite! •