Determinação e coragem. São estas as palavras que melhor definem a exímia cozinheira que, hoje, assume a cozinha do Peixe na Avenida, em Lisboa, onde receituário regional e as nossas influências espalhadas pelo mundo associados aos sabores marinhos assumem protagonismo.
Pargo selvagem com pele crocante, esmagada de batata doce roxa com peixinhos da horta
Luísa Fernandes nasceu em Monte Real, Leiria, há 64 anos. Enquanto enfermeira, andou de malas e bagagens pela Europa e o outro lado do mundo. Como recompensa, trouxe conhecimento de culturas e cozinhas diferentes. Entre o ofício de enfermagem e o restaurante Tachos de São Bento (1998-2003), com a Assembleia da República como vizinha. Porém, o seu sonho maior era ir para Nova Iorque até ao dia em que se tornou realidade. Tinha, então, 49 anos quando embarcou no avião com destino à cidade que nunca dorme. Procurou restaurantes, mudou estilos de cozinhas e conseguiu o que queria: voar alto. No Robert Restaurant, localizado no topo do Museu de Arte e Design e um dos mais famosos em Nova Iorque, conquistou chefs, celebridades do mundo das artes e políticos pela arte de bem cozinhar os pratos regionais do país que a viu nascer. Em 2017 decidiu regressar. Em finais do mesmo ano inaugura o Peixe na Avenida, o restaurante dos n.ºs 2-6 da Rua Conceição da Glória, perpendicular à Avenida da Liberdade, em Lisboa, onde o peixe é rei por causa de um restaurante e de um chef: Le Bernardin, de Henri Ruppert. A carta é, por sua vez, inspirada nas influências deixadas e trazidas na época dos Descobrimentos Portugueses. Uma viagem que começa no mar, passando pelos ceviches, pelo sashimi e pelo sushi, sem esquecer o melhor do receituário espalhado pelo país nem o peixe do dia, terminando num prato de bife do lombo para quem ainda é da opinião de que peixe não puxa carroça.
Porque decidiu enveredar pelo mundo da cozinha?
A cozinha andou sempre a par com a enfermagem. Desde pequenina que gostava de cozinhar. Enquanto enfermeira, tudo o que era festas de família – baptizados, casamentos, aniversários – era tudo comigo e cheguei a cozinhar, à noite, num restaurante, o Tachos de São Bento [em Lisboa].
Fale um pouco sobre a aventura gastronómica no Tachos em São Bento.
Era um restaurante curioso. Só abria para jantares – menos ao domingo –, tinha 28 lugares e tive-o durante seis anos. Tudo o que ganhava no restaurante ia ao mercado de Estremoz, pra comprar os produtos. Era de lá que trazia os queijos, os chouriços, os tordos, as carnes de porco preto… Apesar de ser de Leiria, sempre gostei muito do Alentejo. Adoro o pão alentejano, os espargos bravos, os ovos com espargos… Mas o restaurante também tinha pratos da Estremadura e do Litoral. Estava sempre cheio!
Havia alguma razão particular para tão grande sucesso?
Saía em todo o lado! Houve uma vez um senhor que foi ao restaurante. Comeu tanto, tanto, que eu nem consegui perceber onde enfiava tanta comida. Comeu quatro pratos! No final, com a confusão dos pagamento por multibanco – ainda estávamos com os escudos – e ainda para mais o homem queria pagar em francos, não conseguiu. Então eu disse-lhe que pagasse quando voltasse ao restaurante. Passado uma semana, ligaram-me de França da parte do senhor que, afinal, era crítico na Elle francesa, onde considerou o Tachos de São Bento a nova mesa da Europa. Fez uma reportagem fantástica! Telefonaram a avisar que iriam três jornalistas fazer a entrevista.
Mas o sonho de ir para “cidade que nunca dorme” estava sempre latente.
Desde os 14 anos que tinha o sonho de ir para Nova Iorque. Quando apareceu a lei de que podíamos sair com 30 anos de serviço, independentemente do tempo de serviço, decidi ir embora.
“Assim que obtive a reforma, fechei o restaurante e fui para Nova Iorque.”
Tinha que idade, na altura?
Tinha 49 anos. Assim que obtive a reforma, fechei o restaurante e fui para Nova Iorque. Mas não falava inglês.
Como ficou rendida a Nova Iorque sem nunca ter lá ido?
Não sei. Mas tinha muitos livros sobre a cidade. Quando estreava um filme sobre Nova Iorque, eu ía ver. Logo! Finalmente, fui para Nova Iorque viver com uma amiga de uma amiga que viva num loft em frente ao Empire State Building.
Polvo assado, esmagada de batata doce assada e puré de grelos
“O Brandon [Kida] passava a vida na cozinha comigo. Fui eu que o ensinei a cozinhar polvo à portuguesa e pataniscas!”
A adaptação à cidade dos seus sonhos foi longa?
Ao início fiquei com o gato da amiga da minha amiga [risos]. Fui aos restaurantes portugueses em Nova Iorque. Nunca desisti! Ao fim de sete dias já estava a trabalhar no Alfama. Aprendi inglês sozinha. Escrevia tudo o que via, fazia ditados, mas sem saber o que aquelas palavras queriam dizer. Mas não parava de escrever. Por isso é que a minha filha diz que escrevo melhor do que o que falo [risos] e só não aprende línguas quem não necessita! Ao fim de seis meses quis sair dali. Quando disse que ia embora já tinha emprego: fui trabalhar para um restaurante americano. Depois passei para um bistrô francês que era de uma grega que não percebia nada de comida. Era mais português do que francês! Seguiu-se um wine bar onde estive durante mais de um ano e que contribuiu para o ‘meu’ salto. Era um dos mais carismáticos de Nova Iorque, mas fechou, com uma lista de vinhos enorme. Foi lá que conheci muitos chefs, como o Brandon [Kida], o chef executivo do Asiate, no Mandarin [Oriental], e o sub-chef do Daniel Boulud… os chefs dos restaurantes daquela zona iam, à noite, para aquele bar. O Brandon [Kida] passava a vida na cozinha comigo. Fui eu que o ensinei a cozinhar polvo à portuguesa e pataniscas! Entretanto conheci um senhor que me aconselhou a concorrer a um concurso. Era da Food Network e porque precisavam de 17 mulheres para participarem no concurso. Fui à entrevista e sai de lá uma hora e meia depois. Entre as 300 fui uma das 17 escolhidas. Fui à competição e ganhou. Só na final fiquei praticamente em segundo lugar, mas fui a única mulher que chegou à final. Isto virou como se ficasse uma artista de telenovela! Recebi tantas cartas, emails, facebooks que não eram meus… [risos] Houve um senhor dos Açores que, já mais tarde, foi ao Robert [Restaurant] de propósito só para me conhecer.
Quando foi para o Robert?
Entrei no Robert em Maio, mas o restaurante iria fechar em Dezembro, para abrir um wine bar, porque só estava a dar prejuízo. Em Setembro, Outubro, o restaurante estava benzinho, ao que eles decidiram mantê-lo.
“O restaurante começou ter muito sucesso: passou a sair em muitas revistas – saí quatro ou cinco vezes na Plate Magazine –, ganhou muitos prémios e ficou muito conhecido.”
Que tipo de cozinha optou por pôr na carta?
Era mediterrânica. Eu chamaria portuguesa, porque tinha bacalhau à Brás, carne de porco à alentejana, polvo à lagareiro… As pessoas já sabiam que a chefe era portuguesa e iam ao Robert porque era diferentes dos outros restaurantes. Os nova iorquinos estavam fartos da nouvelle cuisine. O restaurante começou ter muito sucesso: passou a sair em muitas revistas – saí quatro ou cinco vezes na Plate Magazine –, ganhou muitos prémios e ficou muito conhecido. Ficámos em quarto lugar na lista de restaurantes em museus dos Estados Unidos.
Robalo grelhado, favas guisadas, água de tomate aromatizada com chouriço alentejano e espuma de limão
Foi fácil conquistar o público americano pelo estômago.
A influência portuguesa também deu-me muito jeito, porque como Portugal começou a ficar na moda, as pessoas já iam ao Robert para falar acerca do país. Os homens de negócios iam para o lounge e, para acompanhar os copos de vinho, pediam os rissóis. Já tinha um homem só para fazer os rissóis, mas eu precisava dele. Tive de os tirar, porque viraram um vício naquela zona de Nova Iorque. Ah! O bacalhau à Brás deu outra história. O patrão não gostava de bacalhau, mas sempre que ia lá pedia-o. Passado algum tempo tive de tirar o prato da carta, porque todos o queriam e o patrão não quis ir na minha cantiga. Até ao dia que consegui pô-lo no brunch. Esteve três meses. Ao fim deste tempo, tirei! Foi uma luta para o pôr e foi uma luta para o tirar! O mesmo aconteceu com o peixe ao sal. Até que decidi fazer o peixe ao sal só para os amigos.
“Trabalhar durante 15 anos e viver na cidade de Nova Iorque não é fácil. É muito intenso!”
O sonho americano termina quando decidiu regressar a Portugal.
Teve de ser. Trabalhar durante 15 anos e viver na cidade de Nova Iorque não é fácil. É muito intenso! Esses 15 anos lá correspondem a 30 aqui. Regressei em Março de 2017.
Como surgiu a oportunidade de vir trabalhar para um restaurante?
Essa decisão já a tinha tomado. Tive muitos convites para abrir restaurantes cá. Já tinha uma proposta, mas decidi não avançar logo. Fui para a [Universidade] Católica tirar um curso e, depois, conheci este senhor que passado muito tempo lá me convenceu.
A ideia de fazer um restaurante só de peixe surgiu logo de início?
Foi mais ou menos isto: o meu restaurante favorito de Nova Iorque era só de peixe. É o Le Bernardin e o chef é Eric Ripert – um homem lindíssimo, muito charmoso, tem uma vida muito calma. Por isso, sempre pensei que quando regressasse abriria um restaurante só de peixe.
“Aqui, o menu é só de peixe e inspirado na viagem dos portugueses.”
A carta foi da autoria da chef Luísa.
Sim. Aqui, o menu é só de peixe e inspirado na viagem dos portugueses. As tempuras, que são nossas, os ramens, que são inspirados nas nossas sopas, daí ter ido buscar as influências que deixámos no Japão, assim como as sopas da Tailândia que também são de inspiração portuguesa, bem como pratos de Goa, do Brasil. O “Just in case” chama-se assim por causa do Le Bernardin, onde há apenas uma carne.
Papos d’anjo com calda de frutos vermelhos (sem açúcar)
Ao analisarmos a carta, podemos dizer que o facto de ter sido enfermeira também influenciou a dosagem dos nutrientes em cada prato.
Sim! Há-de reparar que, no meu menu, há muito poucos hidratos de carbono, apesar da batata doce ser um hidrato de carbono, mas mais saudável. A maioria [dos acompanhamentos] é feita à base de vegetais, a sopa não tem batata. Penso sempre nas dosagens de cada prato, para que as pessoas não saem daqui nem com fome nem enfartadas. Não uso óleo – só uso para as tempuras e é mudado todos os dias – nem margarina. Cozinho apenas com azeite.
Há novidades para breve?
Há, mas não posso revelar. Penso que não as há em Portugal. Vamos ver. •
O chefe do Le Bernardin é o Éric Ripert…
Um grande bem-haja, Fausto, pela chamada de atenção.
Os melhores cumprimentos,
Patrícia Serrado