Depois de muito esmiuçar o receituário de tempos idos, eis a súmula do menu “Espírito do Lugar” temperado com primor e saboreado a gosto em dois dias de descoberta por Aldeias do Xisto.
O fumeiro da Adega dos Apalaches, em Roqueiro, Oleiros
Este é apenas o começo de um pequeno roteiro pela cozinha tradicional com um receituário que urge manter, aprimorar e mostrar tanto a portugueses como a quem vem de além fronteiras conhecer o mais recôndito lugar do nosso país. Foi o que se fez no âmbito da Xisto Week, o evento gastronómico decorrido entre 26 de Janeiro e 14 de Fevereiro de 2017, nas Aldeias do Xisto.
Ao todo, as Aldeias do Xisto – a marca territorial do Pinhal Interior – acolhem 27 aldeias, das quais 12 estão localizadas na área abrangida pela Serra da Lousã, cinco estão na Serra do Açor, seis situam-se ao longo do rio Zêzere e quatro encontram-se junto ao Tejo-Ocreza (rio que nasce na serra da Gardunha e desagua no curso de água proveniente da vizinha Espanha). De acordo com o levantamento do receituário da região é de salientar a importância da carne de cabra (tudo é aproveitado, dos pés à cabeça, até mesmo os miúdos), do leite de cabra (para o queijo), do peixe de rios e albufeiras (barbos, bogas, trutas), dos produtos hortícolas e da fruta (o medronho, por exemplo), bem como da plantas aromáticas, às quais estão associados saberes e conhecimentos ancestrais.
Quanto às receitas, destaca-se o afogado da boda (guisado de cabra típico dos casamentos dos locais tradicionalmente servido com batata cozida), a sopa dos pés à cabeça (onde tudo do animal é aproveitado para este prato), a salada de almeirão (uma espécie de alface, mas mais rija e amarga que há apenas nos dias frios de Inverno) ou o cabrito estonado (com pele) assado no forno de lenha.
Segundo Paulo Fernandes, presidente da Câmara Municipal do Fundão e fundador das Aldeias do Xisto, esta investigação que resultou no evento Xisto Week é o “fazer mais pela valorização dos produtos, é valorizar a capacidade agrícola das aldeias”. Deste modo, a matéria-prima é conduzida para a restauração local, prevalecendo a continuidade da produção da matéria-prima, um ciclo rotativo e interminável que viabiliza a conduta económica e social de cada aldeia. Além disso, apoiar a pequena produção agrícola permite, em simultâneo, ter capacidade de olhar pela protecção das áreas florestais. Trata-se, portanto, de “um turismo de responsabilidade social”, conclui Paulo Fernandes, ou não fosse este uma das melhores formas de “fomentar a relação directa entre quem vem e quem vive aqui”.
Mas voltemos ao itinerário de dois dias, desta feita às estradas curvilínea de acesso à Sertã, a Proença-a-Nova e Oleiros, três vilas do distrito de Castelo Branco, na Beira Baixa. Por aqui, o receituário conta com décadas a fio à mesa das casas de família e de restaurantes. Desta vez, contou também com chefs de fora, como Rodrigo Castelo, chef da Taberna Ó Balcão, em Santarém, que semanas antes tinha calcorreado algumas das aldeias, no sentido de partilhar conhecimento e experiências com chefs e cozinheiros locais, no âmbito deste Xisto Week.
Do maranho e do bucho reza a tradição no Santo Amaro
Os maranhos (lado esquerdo) e o bucho (lado direito) à mesa do Restaurante Santo Amaro
Da sabedoria passada de geração em geração, ainda hoje, é dada a importância devida ao maranho e ao bucho. O primeiro é feito com bucho de cabra, o qual é recheado com carne de cabra e pedaços de enchidos, arroz, hortelã e temperado com azeite, limão, sal, pimenta e vinho branco. Quanto ao segundo, utiliza-se o bucho de porco recheado, essencialmente, com carne de porco, presunto, sumo de laranja natural e pão.
Cada prato é devidamente confeccionado e servido no Restaurante Santo Amaro, na Sertã. A casa é um dos ex-líbris da cozinha regional local e o nome advém do santo invocado na vizinha capela.
Em terras serranas, o cabrito é rei!
Para além das cabeças de peixe e do cabrito assado no forno, há que completar a experiência neste restaurante com a sopa de peixe da Dona Helena.
Cartuchos de amêndoa à moda de Cernache do Bonjardim são o doce tradicional do concelho da Sertã
O desfecho do repasto deste espaço de portas abertas, desde 1975, pela família Marçal, foi feito com os clássicos cartuchos de amêndoa à moda de Cernache do Bonjardim recheados com doce de ovos e amêndoa. A tigelada beirã é outra das sobremesas típicas destes santuário da gastronomia desta vila portuguesa.
Os saberes de antigamente da Casa da Ti’ Augusta
O chef Rodrigo Castelo corta o cabrito estonado por ocasião do menu “Espírito do Lugar” servido na Casa da Ti’ Augusta
De novo na estrada, a próxima paragem gastronómica é feita na Aldeia de Figueira, integrada nas Aldeias do Xisto. Pertencente à freguesia de Sobreira Formosa, no concelho de Proença-a-Nova, a Aldeia de Figueira não tem mais do que 40 habitantes. As casas em xisto são o seu ex-líbris e condizem com a paisagem circundante dominada pelo arvoredo frondoso e uma paleta de verdes a perder de vista.
No coração da aldeia está a Casa da Ti’ Augusta. O restaurante que também tem alojamento e cujo proprietário é João Matias, também ele criador de cabras. As especialidades da casa comprovam, por sua vez, o respeito pela tradição à mesa, com o cabrito assado no forno a lenha, o afogado da boda, o maranho, o plangaio (enchido recheado de farinheira e ossos do espinhaço) e a tigelada, sem esquecer o pão cozido no forno comunitário a lenha com mais de 70 anos.
No âmbito da Xisto Week, o receituário da aldeia manteve-se. No entanto, desta vez, o chef ribatejano Rodrigo Castelo pôs a colher – e muito bem – na cozinha de Lúcia Matias – mãe de João Matias –, no âmbito do menu “Espírito do Lugar” servido na Casa da Ti’ Augusta.
“Rins, tintins e afins com a malagueta da vizinha” foi a entrada que Rodrigo Castelo serviu para dar início ao repasto da noite acompanhada por pão cozido no forno comunitário da vetusta Aldeia de Figueira e, posteriormente, torrado. Uma dupla de “comer e chorar por mais” aprovada por adultos e crianças.
Já a típica salada de almeirão acompanhou, por sua vez, o pastel de afogado da boda. Ou seja, o pastel foi recheado com carne de cabra adulta cozinhada com vinho branco (ao contrário da chanfana, que é feita com carne de cabra velha e temperada com vinho tinto), prato esse outrora servido pelos casamentos, daí o nome.
Tradicionalmente, a almeirão é cortada como a couve utilizada no caldo verde e amassada com as mãos, para tirar o sabor amargo, passada por água quente e cozinhada a vapor. De acordo com a cartilha gastronómica da região, é servida com peixe frito e feijão.
O centeio de miúdos acompanharam o cabrito assado no forne a lenha
No alinhamento dos sabores da terra, seguiu-se a “Sopa dos pés à cabeça” feita para aconchegar o estômago e a alma nas noites frias, e o “Estonado de leite com centeio de miúdos”. Tradução: cabrito estonado (cozinhado com a pele) acompanhado por centeio (em substituição do arroz) de miúdos. É um prato muito comum por estes lados e até já conta com a Confraria Gastronómica do Cabrito Estonado.
Monte Barbo tinto reserva, tinto, branco e rosé
Durante o jantar, foram servidos vinhos da Monte Barbo, do produtor Tiago Cristóvão. A propriedade está localizada no concelho de Proença-a-Nova e tem Francisco Antunes (da Caves Aliança, na Bairrada) como enólogo. Quem começou este legado entre vinha e olival foi José Rodrigues há mais de quatro décadas mas, há cerca de cinco anos, a aposta na produção vitivinícola tem-se convertido em resultados muito positivos para a família que vê aumentado o leque de referências entre tinto reserva, tinto, branco e, mais recentemente, o rosé, tendo as últimas três feito parte da harmonização vínica.
Na sobremesa, a composição do prato foi protagonizado por medronho, tomilho e gelado de leite de cabra.
O bolo finto dos casamentos
Maria da Luz é quem ainda faz os bolos fintos da terra
Ainda antes de chegar à mesa, o importante é conhecer quem faz o bolo finto, palavra que advém do vocábulo “fintar” cujo significado, neste contexto, é “fazer levedar”.
Chama-se Maria da Luz e desde há 35 anos até então conhece a receita deste bolo de cor e salteado. Quando era mais nova, sentava-se na cozinha para ver como as mulheres da aldeia amassavam a massa e a punham a cozer. Segundo a tradição, este bolo era feito apenas por ocasião dos casamentos dos habitantes da aldeia, festim esse com a duração de três dias.
Hoje é mais comum vê-lo à mesa em outras festas do ano. Apesar dos imperativos do tempo que levaram à substituição do azeite por uma parte de manteiga, Maria da Luz ainda coze o bolo no forno a lenha que tem em casa sem nunca esquecer de lhe pôr uma folha de couve por baixo e o açúcar por cima. É um regresso às raízes e, ao mesmo tempo, um acto louvável de impedir que tão doce iguaria caia no esquecimento, tanto que continua a fazê-lo também por encomenda.
Sugestão: Finda a cozedura, deixa-se arrefecer um pouco. Corta-se às fatias e barra-se com manteiga.
A comida de Inverno da Adega dos Apalaches
O Brás de enchidos da Adega dos Apalaches abriu o apetite para o almoço
Entre panelas de ferro dispostas junto à borralha e o forno a lenha, guardam-se as memórias de outros tempos na Adega dos Apalaches, em Roqueiro, Oleiros. O porquê do nome advém da existência do Trilho dos Apalaches na vizinha Serra do Muradal, enquanto à mesa são os pratos regionais que demarcam a tradição. Na lista das recomendações constam a deliciosa sopa da panela, a tibornada de bacalhau ou o ossobuco de vitela na panela.
O Brás de enchidos, o escabeche, o presunto e o queijo regionais, e as empadas de cabrito estonado são, por sua vez, os responsáveis por temperar a alma e acompanhar as primeiras conversas à mesa da cozinha do forno a lenha. Aqui é assado o cabrito estonado, entre uma hora a uma hora e meia. A supervisão da cozedura é feita por André Ribeiro, chefe da casa e um dos confrades da Confraria Gastronómica do Cabrito Estonado de Oleiros.
O cabrito estonado do chef André Ribeiro
Quanto à especialidade de cabrito, esta só fará parte do repasto mediante reserva prévia para grupos entre oito a dez pessoas, no mínimo, ou ao almoço (de quinta-feira a domingo) para uma pessoa ou grupos até 30.
Para terminar o almoço ou o jantar, há que experimentar a famosa “Tigelada à moda da Beira” ou o deleitoso “Pudim das Beiras”, o bolo de coco e abóbora ou o bolo de cenoura e noz.
A Xisto Week regressa, agora, só para o ano, realidade que não serve, porém, de desculpa para deixar de explorar a beleza selvagem da paisagem destes lugares que, no seu conjunto, dão pelo nome de Aldeias do Xisto.
A ir. Bom apetite! •
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