Em Coimbra, no Centro de Artes Visuais/CAV, revele-se através de “Pure Emulsion”, exposição do fotógrafo José Luís Neto e com cuidadosa curadoria de Sérgio Mah. Inaugurou no dia 28 de Abril e permanecerá até 2 de Setembro.
No interior, de olhos fechados, existe uma folha branca que é, mais especificamente, um écran impressivo: “pure emulsion”. “Esta exposição reúne pela primeira vez um conjunto alargado e conexo de obras, iniciadas em 1991, em que o artista explora a superfície da emulsão, que adquire aqui um duplo sentido, como algo que remete para a matéria fotossensível mas também para os suportes – a película, o papel – que a sustêm. A estas foram acrescentadas outras séries com as quais partilha afinidades estéticas e conceptuais, designadamente pelo modo como intersectam o fotográfico e o pictórico”; escreve-se no desdobrável que acompanha esta ocasião, pela pena de Sérgio Mah.
Entre o fotográfico e o pictórico, de facto, a exposição interpela-me: por um lado, a diferenciar dois momentos; por outro, a seriamente reflectir num feixe de questões. Quanto aos dois momentos: o primeiro, em que a pintura se demarca da fotografia, para o qual convocamos Matisse; o segundo, em que a fotografia se reinventa com os argumentos da pintura, reclamando a marca autoral. Matisse: “O pintor já não precisa de se preocupar com pormenores insignificantes, para isso está lá a fotografia, que é melhor e mais rápida […]. Temos da pintura uma opinião mais elevada. Ela serve ao artista para ele exprimir as suas visões interiores. Ver é já um facto criador.”
Todavia, entre Matisse e nós, hoje, tempo decorreu e, como o coloca bem Hans Belting, desde há algumas décadas que os fotógrafos artistas buscam a emancipação relativamente ao facto visual, a fim de soltarem a imagem da contingência que opõe o material do mundo ao sujeito. De permeio, creio podermos fixar a posição de Walter Benjamin a propósito de naturezas diferentes: uma que fala à câmara, outra que fala aos olhos, na medida de um espaço que se explora conscientemente pelo humano (olho), contraposto a um que se penetra inconscientemente (câmara).
Ora, tanto nos dois momentos, como em Benjamin, parece-me delinear-se com subtileza uma polaridade: consciente/inconsciente. Aqui chegadas, julgo bastante reveladora a tónica que é colocada por José Luís Neto na figura do acaso que permanece subjacente no processo de produção das suas imagens fotográficas, inequivocamente afirmada com paixão no pequeno filme “Entre Imagens”, de 2012. Pese embora, e como o fotógrafo esclarece, para que tal acaso seja loquaz e devidamente aceite, é essencial um domínio irrepreensível do médium fotográfico, aliás o único com que opera precisamente pela familiaridade e conhecimento implícitos. Numa sociedade, a actual, dominada pela instrumentalização e pela gestão controladora de (quase) tudo, não podemos esquecer a centralidade que a arte, desde há mais de cem anos, tem reservado ao acaso.
No entanto, para que tal acaso seja alvo de integração e móbil de conhecimento é necessário cultivar, como bem diz José Luís Neto, uma destreza técnica e uma sabedoria vivencial. O que, transposto para a sociedade, obriga a trazer à discussão os pressupostos da consciência. Não devemos esquecer, nunca, que, geralmente, os sonos inconscientes são o locus mais provável de farpas externas que se espetam no sujeito, obstando a que este ouça o seu chamamento intrínseco: não lhe chamaria “essência”, mas sim “interior”. E é em tal interior, agora elipticamente desdobrado no do sujeito, no da relação, no da sociedade, que a arte, desde há mais de cem anos a esta parte, tem derradeiramente insistido. “Pure Emulsion” nele se detém com(o) exemplaridade.
Efectivamente, José Luís Neto prova o que diz Walter Benjamin, ou seja: “a fotografia revela com este material [inconsciente óptico] os aspectos fisionómicos, mundos de imagens que habitam o infinitamente pequeno, suficientemente interpretáveis e ocultos para encontrarem o seu lugar nos sonhos diurnos […].” Apesar de tal, ou precisamente por tal, e continuando a chamar à colacção o teórico da “aura” e do seu declínio, a mesma medida em que ele via na peixeira de New Haven um ser humano com nome que não se esgota no testemunho da arte do fotógrafo Hill, é aquela em que, para mim, “Ideia de Luz II”, de 1991, oito pontos bem precisos, não é exactamente uma marca autoral, mas o punctum magistral em que, seguindo o que Jacques Rancière defende, estas fotografias não se transformam em pinturas; antes nos mostram a leveza do “acaso”, caso o saibamos conduzir com a inteireza do olhar e a firmeza das mãos, sem cinismos.
Para ver no Pátio da Inquisição, 10, em Coimbra, de terça-feira a domingo, entre as 14h e as 19h, até, repetimos: 2 de Setembro.