Vi-o no Teatro da Cerca de São Bernardo, em Coimbra e numa Ante-Estreia, no dia 4 de Maio e inserido no Desobedoc 2018/Mostra de Cinema Insubmisso. Conselho sério: vá ver.
Susana de Sousa Dias, em conversa na companhia de Teresa Villaverde e Margarida Gil, com moderação por Ana Sousa Dias, decorrida no Festival Silêncio no ano de 2012, foi muito clara quando afirmou algo próximo do que a seguir se escreve: quero dar a palavra a quem a perdeu durante o Estado Novo, quero atribuir “imagem” ao que se eclipsou e se me questionam sobre o facto de não apresentar o outro lado, correndo o risco de laborar numa visão parcelar, pois eu assumo-a, porque não é meu intuito fazer um trabalho jornalístico que exija contraditórios. Tal afirmação foi proferida com inequívoca firmeza.
“Natureza Morta”, “48”, “Luz Obscura”: três passos bem delineados no percurso de Susana de Sousa Dias, indubitavelmente também as estações de uma insone escavação da memória, pessoal e colectiva. Estações, também, com o propósito de desacelerar o tempo, insistindo na duração, com um efeito muito claro a provocar no/a espectador/a: fazê-lo/a sentir o doloroso alastramento do Estado Novo. Sim: o trabalho da cineasta é insistente, persistente, obsessivo, elíptico. Perante a consideração, não tão inabitual como se poderia eventualmente desejar, de que a ditadura portuguesa terá sido menos pesada que as restantes, Susana de Sousa Dias atribui presença ao que, embora latente, porquanto atravessa o ar que respiramos, se mantém fechado a sete chaves. José Gil escreveu Salazar: a Retórica da Invisibilidade, pequeno livro lúcido que demonstra os mecanismos através dos quais o Chefe de Estado se inculcou no inconsciente da população, atomizada. Ora, através de “Luz Obscura”, e do lastro da anterior filmografia, acedemos ao regime da visibilidade.
Digamos que “Luz Obscura” é a caixa negra do avião que sofreu um acidente, e cuja localização desesperadamente se procura: além do filme ter o aspecto de caixas que sucessivamente se abrem, também é verdade que o habita, por dentro, uma negritude evidente. Desde o écran preto, passando pelo mar (da memória) profundo, tão profundo, seguindo pela opção quase total do preto e branco, até chegar ao negro da dor íntima, tão íntima. Diria que Susana de Sousa Dias constrói este filme de dentro para fora, o que se prova elipticamente em diversas camadas: a da memória, a da paisagem, a da casa, a da família.
As fotografias das quais brota o filme são obsessivamente perscrutadas pela câmara, num delírio da visão. “Que rede familiar se esconde por detrás de um único preso político? Como dar corpo a quem desapareceu sem nunca ter tido existência histórica? Partindo de fotografias da polícia política portuguesa (1926-1974), Luz Obscura procura revelar como um sistema autoritário opera na intimidade familiar, fazendo emergir, simultaneamente, zonas de recalcamento actuantes no presente”; lê-se na sinopse. Descrição: “Portugal / documentário / 76’ / 2017 / M/12”. Documentário … neste filme é a verdade que se diz, poeticamente.
Esvoaça por entre “Luz Obscura” o Anjo da História de Walter Benjamin, num ansiolítico farejamento da ruína. Todavia, aqui, o Anjo não se petrifica como o pintou alucinado Klee e o pressentiu Benjamin. Não esqueçamos, todavia, que Walter Benjamin disse igualmente que a História não se dá numa caveira, mas sim num rosto. E Susana de Sousa Dias dá-nos o Rosto; o mesmo é dizer que percorre os carreiros concretos, embora dolorosos, da Palavra, sem apelações, sem distrações. A História constrói-se: não é o que foi, mas sucessivamente o que poderia ter sido. John Berger bem nos diz que, no seu tribunal (da História), e na nossa actualidade, apenas os espoliados podem aspirar a que ainda se faça justiça. “Luz Obscura” fá-la.