Território: O valor patrimonial da Herdade do Esporão

O produto da terra, alentejano, português, é o ponto de partida do renovado restaurante mais aberto ao exterior, espaço de luz ornamentado por materiais locais, ora reaproveitados, ora reinventados, onde a partilha (da maioria) dos produtos regionais é tudo à mesa.

A madeira é o material predominante na decoração a par das cores das tapeçarias de Mizette Nielsen

As aduelas das pipas forram o tecto. Em lados opostos, criam espaços intimistas a rodear as costas dos bancos corridos forrados com as mantas alentejanas da fábrica de lanifícios de Mizette Nielsen, em Reguengos de Monsaraz. As mesas estão despojadas de toalhas. Das cadeiras feitas a partir da mesma matéria-prima sobressai o tom cinza. A luminosidade é maior, graças às janelas rasgadas nas, outrora, paredes viradas para o pátio central do edifício, com vista para as buganvílias que anunciam o esplendor da Primavera.

O terraço exterior é uma porta aberta para a Herdade do Esporão

Em frente, do outro lado da sala do Restaurante Herdade do Esporão, a enorme varanda continua a privilegiar a planície bucólica e serena de uma herdade vinhateira que vai para lá do enorme lago. A remodelação do espaço tem a assinatura do atelier de arquitetura portuense SKREI cujo trabalho centra-se, sobretudo, na reutilização e reinterpretação dos materiais e dos espaços.

A mudança estende-se à cozinha. O conceito define-se através da criação de “pratos descomplicados” que dão azo à partilha, e baseia-se na sazonalidade. Por isso, não estranhe se, de um momento para o outro, o menu tenha sido alterado. O quilómetro e o desperdício zero são outros dos requisitos fundamentais, daí que a origem dos produtos seja alentejana e o aproveitamento “dos pés à cabeça” esteja institucionalizado por Carlos Teixeira, sub-chef da equipa anterior, cujo trabalho conta, agora, com a colaboração da dupla de chefs Bruno Caseiro e Filipa Gonçalves – chegaram de Londres em 2017 e tomaram as rédeas do restaurante Cavalariça, na Comporta.

Além da carta, todas as semanas à um prato inspirado no projecto feito em parceria com Tiago Pereira: Esporão & A Comida Portuguesa a Gostar Dela Própria. Já o Menu Carta Branca é dirigido a quem aprecia uma experiência à mesa e permite isso mesmo, “dar carta branca” ao chef para preparar o repasto ou de cinco, ou de sete momentos.

O pão caseiro ganhou a dimensão devida no Restaurante Herdade do Esporão

Cada um pode começar com a manteiga de vaca com flor de sal e a banha de porco com pimentão e flor de alecrim, para barrar o pão caseiro feito a partir de farinha de Montemor-o-Novo e do moleiro Paulino Horta, de Alenquer. A avaliar cada prato e respectiva apresentação, vale a pena deixar-se levar e desfrutar dos sabores de cada ingrediente com uma forte ligação à terra, ao Alentejo. “O chouriço é feito aqui e as carnes são de Estremoz”, garante António Roquette, responsável pelo Enoturismo da Herdade do Esporão.

O receituário da região está bem representado. A começar pela cabeça de xara, uma espécie de terrina feita com as partes moles da cabeça de porco, acompanhada por funcho e mostarda.

Ensopado de borrego, prato que faz parte do projecto de “A Comida Portuguesa a Gostar Dela Própria”

O porco alentejano com ervilhas e acelgas e o ensopado de borrego, um dos pratos do projecto “A Comida Portuguesa a Gostar Dela Própria”, são outras das sugestões da carta.

Brócolos, maçã e rábano: a simplicidade e o sabor convertidas numa das entradas para partilhar

Por sua vez, o rissol de lagostim da barragem com coentros e os brócolos assados, servidos com uma maionese de rábano e maçã, representam o respeito pelos produtos da estação.

Couve, caldo e fumo, os ingredientes eleitos para começar uma refeição descontraída

É o caso do cidrão, produto do Lugar do Olhar Feliz, em Cercal do Alentejo, utilizado para fazer chá fermentado, uma feliz opção em dias quentes, ou da couve da horta fermentada e servida num caldo e maionese de alho fumado. “Tudo é aproveitado”, sublinha António Roquette.

A morcela, a acelga, o ovo e o choco juntos num só prato, para apaziguar o estômago e a alma

Choco, acelga e morcela, inicialmente confundido com um prato simples com tinta de choco, foi um dos mais consensuais à mesa, pela consistência e pelo conjunto de sabores, com os quatro elementos – há, ainda, o ovo – a “casar” por contraste na boca. Uma combinação improvável a experimentar.

Uma sobremesa magistralmente bem elaborada

(Gelado de) batata-doce, (pau de) louro e (bolo de) Magistra pode ser a sobremesa escolhida para pôr um ponto final, mas certamente que pode já haver outra ou não fosse a sazonalidade um dos critérios a respeitar pelo trio de chefs.

Em suma, “achávamos que deveríamos ter uma oferta mais simples e mais acessível”, afirma António Roquette.

Antes da mesa vem a terra

Preservar as castas autóctones e o solo, respeitar o ciclo da natureza são imperativos maiores no presente, para um futuro mais sustentável na Herdade do Esporão

Agir em conformidade com o território implica regressar às origens. José Roquette, o fundador do Esporão, é peremptório: “Vamos ter de voltar às castas que já cá estavam.” A afirmação tem a ver com a rega como imperativo face às condições climáticas da actualidade. A melhor maneira de evitar esta prática é recorrer à sustentabilidade, factor que “tem a ver, fundamentalmente, com a necessidade de preservar o que aqui existe”, para que “o dióxido de carbono volte a fixar-se na terra”.

Toda esta preocupação prende-se com o ciclo natural da natureza, assim como com o constante rejuvenescimento do próprio planeta e o quão fundamental é contribuirmos para a sua saúde. Por isso, a agricultura biológica é tão importante. António Roquette fala acerca da “correcção de problemas que possam ocorrer na vinha”, a qual é feita “através de plantas repelentes e outras que atraiam predadores, para que estes não cheguem às videiras”.

Outro ponto de partida para a ação do Homem na vinha sem destruir o seu ecossistema consiste em “estudar o problema e agir em consonância após pesquisa e testes feitos numa escala bastante maior do que as convencionais, dado o tamanho da propriedade”, continua o homem que dá a cara pelo enoturismo na Herdade Esporão. Resumindo, “quanto menor for a intervenção, maior é a expressão do território no produto”, conclui.

Reutilizam-se conceitos, criam-se espaços

“Dar à terra o que é da terra” poderia ser o lema desa adega construída em taipa

A frase alinha na perfeição com o trabalho desenvolvido pelo atelier SKREI. Com base numa arquitectura integrada, a empresa fundada em 2009 por Pedro Jervell e Francisco Adão da Fonseca, obedece a um registo que vai de encontro com o reutilizável. Além das aduelas marcadamente presentes no Restaurante Herdade do Esporão, também as há no tecto da adega feita em taipa, datada de 2014. Este processo de construção milenar utilizado na região alentejana permite manter a temperatura baixa no interior, com seis lagares em mármore, sete ânforas e seis talhas, além das cubas de inox utilizadas durante o processo de vinificação. Este ano, esta adega irá receber a quarta vindima.

Já a mais velha, de 1985, foi renovada e cresceu. Acolhe, agora, mais e maiores cubas de inox, de modo a dar resposta ao aumento de capacidade de 30 por cento da produção vínica. Junto a esta ficam os escritórios e o departamento de enologia, onde está integrado o laboratório de enologia da responsabilidade de Sandra Alves.

A inusitada sala de provas na cave é uma criação do atelier de arquitectura Skrei

Sob a adega em taipa permanece a cave de 1987, destinada ao envelhecimento do vinho. Aqui, o atelier de arquitectura pôs a mão com o propósito de reorganizar o espaço e criar a sala de provas a meio do corredor central, onde repousam os tintos em garrafa. As aduelas são, novamente, protagonistas na feitura da mesa circular disposta sob um candeeiro com a mesma forma e feito a partir da mesma matéria-prima: madeira de carvalho. À prova estão apenas os vinhos históricos.

Renovar, mostrar, provar: 20 anos de azeite

O plano de sustentabilidade e de respeito pelo ecossistema estende-se ao Lagar de Azeite

A mesma linguagem do reaproveitamento estende-se ao universo da produção de azeite. No Lagar de Azeite, de 2016, espaço confinado ao processo de extracção, uma cuba de inox transformada em cabine confere essa mesma dinâmica. Projectado pelo arquitecto Miguel Oliveira, o edifício amplo e simples, que acarreta três espaços contíguos cuja sequência abarca quatro fases pelas quais passa a azeitona: recepção, separação, extracção e decantação. Depois são avaliados e catalogados, seguindo-se o armazenamento no Lagar do Azeite, o edifício revestido, no exterior, de cortiça.

Ao longo deste processo, é de enaltecer o desperdício zero. Na primeira fase há uma máquina limpadora/lavadora que retiras as folhas usadas, por sua vez, para compostagem; enquanto que, depois de triturados, os caroços são uma mais-valia para a eficiência energética, ou seja, permite o funcionamento das tubagens que permitem a passagem de água fria utilizada para arrefecer o azeite, por forma a que este preserve as suas características aromáticas.

Da equipa fazem parte Ana Gaspar e Ana Carrilho, a oleóloga da casa e responsável pelo lagar. Ambas acompanham cada campanha do início ao fim, provam os azeites e definem a qualidade de cada um, consoante o estado da matéria-prima e, claro, o aroma e o sabor.

Fora da campanha, é feito o acompanhamento e o aconselhamento técnico aos parceiros/produtores de azeitona de olivais localizados fora da Herdade do Esporão. No seu conjunto, há três variedades de azeitona: cobrançosa, cordovil e galega. “Aqui temos azeites para todo o tipo de consumidores”, garante Ana Gaspar.

O pequeno Museu do Azeite apresenta uma mostra das garrafas produzidas pelo Esporão

A importância do azeite é tão grande, que o Museu do Azeite do Esporão está pronto a receber visitas. As paredes brancas do edifício acolhe uma exposição de garrafas deste precioso líquido da Herdade do Esporão e da Quinta dos Murças produzido, entre 1997 e 2017. As formas e as cores dos recipientes de vidro, assim como os rótulos e, claro, o próprio azeite foram evoluindo ao longo das duas décadas, com destaque para a garrafa de 2007, comemorativa da plantação do olival na propriedade alentejana que, hoje, soma 80 hectares, e a de 2014, com o primeiro azeite biológico. Contígua a este espaço está a sala de provas de azeite.

O restaurante é, por conseguinte, o território de excelência do vinho e do azeite, do Esporão, mas também da horta e a criação de animais que estão a despertar cada vez mais o desvelo de quem está na cozinha. Eis as premissas para a sustentabilidade, o quilómetro zero e o biológica desta empresa cada vez mais agrícola.

A visitar dentro do horário de funcionamento do enoturismo (das 10 às 18h30), com programas a consultar, umas vez que as visitas guiadas às caves e às adegas têm horário pré-definido. Inclua no roteiro o bar (das 10 às 18.30 horas) e a loja (das 10 às 19 horas). Já o Restaurante Herdade do Esporão mantém as portas abertas de terça-feira a sábado, das 12.30 às 15.30 horas, e só funciona mediante reserva prévia.

Já agora, e em jeito de agenda, deixamos a sugestão do “Dia Grande”, a decorrer nos dias 30 de Junho e 1 de Julho, o fim-de-semana mais especial a ter lugar na Herdade do Esporão, durante o qual há mais de uma mão cheia de experiências, entre degustações, provas de vinhos, azeites e cervejas, visitas, passeios, workshops, concertos, conversas e outras actividades culturais, com destaque para a preparação do almoço e do lanche feita por nove chefs portugueses.

É reservar, ir e viver o património! •

+ Esporão
© Fotografia: João Pedro Rato

Legenda da foto de entrada: Bruno Caseiro (à esquerda) e Filipa Gonçalves (ao centro) são os chefs consultores do Restaurante Herdade do Esporão cuja cozinha está nas mãos de Carlos Teixeira (à direita)

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