A Mutante esteve na mais recente edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim, mais conhecido por Berlinale, à conversa com Rima Das, produtora e realizadora de “Bulbul can sing”. O filme, que recebeu uma menção honrosa dentro da categoria Generation 14 Plus, é um drama visceral sobre uma adolescente e os seus amigos que enfrentam o preconceito na aldeia onde cresceram. Um filme feito por uma mulher, que está a revolucionar o cinema indiano.
Rima, obrigada por este filme tão honesto e comovente. O que é que te inspirou a criar “Bulbul can sing” e a história por detrás?
Rima Das (RD): Na verdade, eu estava a filmar o meu segundo filme, “Village Rockstars”, e o meu protagonista era uma criança. Depois disso, decidi trabalhar com adolescentes. Quando regressei à minha aldeia para filmar o meu primeiro filme, reconectei-me com as minhas raízes e, ao trabalhar com a natureza e pessoas reais, ocorreu-me que são feitos cada vez menos filmes com adolescentes e as suas problemáticas, como a amizade e o amor. Fazer filmes com adolescentes é muito complicado porque é uma idade difícil, porque quando és criança tu tens liberdade, mas a partir dos quinze, dezasseis, começas a enfrentar dificuldades na sociedade, porque as pessoas não permitem que faças certas coisas. Então, tudo aquilo que eu vi e experienciei fez-me pensar que tinha que fazer um filme.
Quanto tempo foi preciso para criares o guião, encontrares os atores certos e filmar o filme por inteiro?
RD: Não há equipa de filmagem, sou eu sozinha na maior parte das vezes. A irmã da minha prima também me ajudou, inclusive com o som, então tivemos bastante liberdade criativa. No começo, ia desenvolvendo a história e os meus personagens, mas não tinha um guião fixo que tinha de seguir à letra. O filme levou um ano para ser completado mas durante esse ano as coisas mudam, as tuas ideias mudam, e eu gosto de estar presente, com as pessoas na aldeia, a observar. Ao longo do tempo acabas por encontrar novos elementos, novos “twists” que achas interessantes, então acaba por ser um processo muito orgânico.
E espontâneo.
RD: O guião está sempre na minha cabeça mas o resto é espontâneo. Eu gosto muito de viver com a história e as personagens que estou a criar. E também gosto muito de visuais. Fazer filmes é uma arte e tu tens que te assegurar que o teu trabalho é ótimo, na maneira como transmites as mensagens à tua audiência. Por isso, eu prefiro filmes realistas. Filmes simples, que abordam questões complicadas.
“Bulbul can sing” fez parte da secção “Generation14+” da Berlinale 2019, que tem por objetivo apresentar filmes que lidam com as vidas e os desafios de crianças e adolescentes. Porque é que gostas de filmar com atores infantis?
RD: As crianças são transparentes, honestas e entregam-se completamente. Como cineasta, eu gosto quando os meus atores se entregam e confiam em mim plenamente, até porque se torna mais fácil trabalhar. Crianças e adolescentes são mais abertos e é isso que me atrai.
Durante o filme, há uma poderosa cena na qual Bulbul e os seus amigos são violentamente atacados por aldeões. Inspiraste-te nas tuas próprias experiências como adolescente em Assam?
RD: Experiências próprias não, mas uma das minhas melhores amigas teve uma experiência parecida e acabou por se suicidar. Ela ficou profundamente afetada pelo que lhe aconteceu e quando eu estava a escrever “Bulbul can sing”, descobri que o mesmo incidente se passou na minha antiga escola com outras três raparigas. É uma triste realidade que ainda está presente, não só na Índia, mas também noutros lugares do mundo. De facto, na televisão, na Internet e nos meios de comunicação social, é uma espécie de loucura; as pessoas reportam estes incidentes por WhatsApp, publicam no YouTube, então é como se fosse uma lenda antiga, uma realidade distante, mas que ainda está bem presente na sociedade indiana. Esta não é a “minha” experiência, mas a minha amiga sofreu, perdeu a vida, e isso é muito triste.
Tal como “Village Rockstars”, nenhum dos atores era ator profissional. Qual é que foi o maior desafio de trabalhar com indivíduos que não têm experiência?
RD: Definitivamente, foi muito desafiante. É um risco e quando os meus atores começam a trabalhar e não estão motivados, o que pode acontecer é eles abandonarem o projeto a qualquer momento. Depois de alguns dias de filmagens eles podem dizer “Eu não quero trabalhar mais” e esse é o género de risco que tens de correr com atores sem formação. Pelo contrário, os atores profissionais entendem o trabalho e aspiram a tornarem-se bons atores mas, com indivíduos sem experiência é diferente, porque eles não sabem como atuar no começo. Então, há um medo constante da minha parte mas eu acredito na natureza, em Deus, sabes? No começo era o meu medo, mas mais tarde comecei a encarar as coisas de maneira mais ligeira porque tu não tens controlo do que pode ou não acontecer quando estás a gravar um filme.
Em relação aos desafios, a câmara, os figurinos e a luz foram os mais importantes. A luz é uma coisa muito difícil. Eu só posso fotografar de manhã cedo e à tarde e também porque gosto mais das cores do céu, do verde dos campos, que só se consegue encontrar durante as horas da manhã. É tudo muito natural mas é a sensação de liberdade que me atrai acima de tudo.
“Bulbul can sing” lida com tópicos sensíveis tais como a homossexualidade e expectativas de como as mulheres se devem comportar em sociedade. Ainda sentes que isto é uma realidade na Índia de 2019?
RD: Sim. A Índia é (70%) composta por aldeias e nas aldeias é uma espécie de… Eles não percebem que as pessoas podem ser transsexuais, por exemplo. Não percebem. Com a Internet, as gerações mais novas já têm outro conhecimento, mas mesmo assim é como se elas ainda não conseguissem perceber. No filme, as pessoas não atacam Sumu só para o magoar deliberadamente, mas só porque simplesmente ele é feminino e (as pessoas) não conseguem perceber que ele é diferente. Não percebem as diferenças entre género e sexualidade. Volto a reforçar, os pais do Sumu consideram-no um rapaz e não lhe dão o espaço para explorar a sua personalidade e ele também sente essa pressão de não envergonhar a sua família. É muito complicado, e eu julgo que levará muito tempo nas aldeias até se ver um casal gay, um casal de lésbicas, porque eles nem sabem que tal é possível. Mais de 90% das pessoas que vivem em pequenas localidades nem sabem que homossexualidade existe, percebes?
Mesmo nas grandes cidades, como Mumbai onde estás a viver, ainda sentes que há preconceito?
RD: Claro! Há um nível de aceitação mas, mesmo assim, ainda não é visto com bons olhos.
“Village Rockstars” tornou-se na candidatura oficial indiana aos Óscars de 2019. Como cineasta independente, podes-me falar do teu percurso na indústria do cinema e de como atingiste o sucesso?
RD: Eu só queria fazer filmes. Mudei-me para Mumbai com o objetivo de ser atriz, então nunca pensei que seria possível tornar-me cineasta. No entanto, quando cheguei, tive oportunidade de ver filmes do mundo, filmes europeus, iranianos, e por aí fora, e desde essa altura comecei a sentir necessidade de contar histórias. Foi assim que me iniciei na arte da realização, a ver filmes. Ser popular nunca foi o meu objetivo, o que eu queria realmente era fazer filmes, bons filmes.
Estou muito contente por “Village Rockstars” se ter tornado tão popular; a Índia tem das maiores indústrias cinematográficas, e nós competimos com Bollywood e toda uma panóplia de outros filmes mas, mesmo assim, o nosso filme foi selecionado para concorrer aos Óscars. É bastante inspirador porque recebo muitos e-mails e mensagens de pessoas de todo o mundo sobre como eu os inspiro, e isso deixa-me muito feliz.
E a tua família, apoiou-te?
RD: A minha família apoiou-me, embora não acreditasse completamente em mim. São de uma outra geração, com outra mentalidade e não têm conhecimento da indústria cinematográfica ou de produção de filmes. Eu estava a trabalhar como atriz, então a mudança repentina foi confusa para a minha família. No início foi difícil, mas depois habituaram-se. No entanto, tens que ser muito forte e lutar pelos teus objetivos; é importante reconheceres a tua própria voz e muitas vezes só acreditam em ti se tiveres alguma coisa concreta para lhes provar o contrário. Não foi fácil.
41% dos realizadores presentes na Berlinale eram mulheres. Alguma vez foste discriminada por seres mulher e realizadora?
RD: Honestamente, o meu percurso é bastante diferente. Eu nunca trabalhei como assistente, nunca procurei trabalhar com produtor algum. Eu trabalho maioritariamente sozinha, com a minha câmara que é a minha arma e a minha companhia. Só durante a filmagem do meu quarto filme é que encontrei dificuldades, como atores que não confiaram plenamente em mim ou quando a minha pequena equipa de filmagem começou a interferir e a ser demasiado condescendente na maneira como me ajudavam. No entanto, o meu percurso é muito diferente de uma atriz que está num estúdio ou a trabalhar para um proeminente realizador.
E quanto a projetos futuros?
RD: Estou a pensar em filmar um filme todo em inglês e também em colaborar outras pessoas. Tem sido um processo caótico, sem pausas, mas depois da Berlinale vou começar a pensar em algo.
No Comments