Chef João Rodrigues: “Acho que estamos quase a esgotar o modelo do chef super-estrela”

A noite de 23 de Março, no Feitoria, foi uma espécie de ensaio para o que aí vem: centrar a atenção na sala do restaurante premiado do Altis Belém Hotel & Spa. Dinâmica que o chef João Rodrigues e escanção André Figuinha estão a implementar em conjunto. Será este o caminho para uma nova era na restauração?

O Altis Belém Hotel & Spa e o Feitoria, em Lisboa, celebraram a primeira década das suas “vidas” com a realização de dois jantares: um a 22 de Março, que contou com a estreia dos chefs Alexandre Silva (Loco), António Galapito (Prado), Ljubomir Stanisic (100 Maneiras) e Pedro Pena Bastos (Ceia) na cozinha de João Rodrigues, e de quatro sommeliers; e outro a 23, com a selecção dos pratos mais marcantes para o chef do restaurante, os quais foram harmonizados com um desfile de vinhos escolhidos pelos dois escanções residentes – André Figuinha e Pedro Nogueira – e de outros seis convidados: António Lopes (consultor), Emília Craveiro (Loco), João Chambel (Garrafeira Estado d’Alma), Manuel Moreira (consultor e formador), Nelson Guerreiro (Alma) e Rodolfo Tristão (Belcanto).

João Chambel (Garrafeira Estado d’Alma), Pedro Nogueira (Feitoria, António Lopes (consultor), André Figuinha (Feitoria), Nelson Guerreiro (Alma), Emília Craveiro (Loco), , Manuel Moreira (consultor e formador) e Rodolfo Tristão (Belcanto)

Esta escolha “tem a ver com pessoas que têm acompanhado o meu ‘crescimento’. Alguns deles foram meus professores. São pessoas que me têm ajudado, portanto, este jantar acaba por ser uma forma de os mostrar, mas também de agradecer tudo o que tem sido feito para trás, e acho que consegui juntar tudo isso neste evento”, declara o sommelier responsável do Feitoria.

O programa incluiu, ainda, a primeira edição de Vinhos com Sentido, programa organizado pelo escanção colombiano Alejandro Chávarro, radicado em Portugal e fundador da Vinhos Livres.

É precisamente sobre o jantar, de 23 de Março, com o menu de degustação “Best Of Feitoria”, que vamos aqui escrever. Durante o alinhamento foi feita uma “revisão” da Matéria dada, ao longo de uma década, pelo chef lisboeta João Rodrigues e por André Figuinha, também chefe de sala, ou não fosse este o foco da nova era – chamemos-lhe assim – do Feitoria. Por outras palavras, a sala e a equipa que dela fazem parte vão ter uma dinâmica diferente, desde o instante em que o cliente entra pela porta do restaurante até ao momento em que dali sai.

“O verdadeiro ano da procura de identidade do Feitoria” 
{João Rodrigues}

As boas-vindas foram dadas com o espumante HEHN Reserva 2011, da região de Távora-Varosa, feito a partir das castas portuguesas Cerceal, Malvasia Fina e Gouveio. A escolha coube a André Figuinha, para quem a importância deste jantar também pôs em evidência a escolha de referências vínicas “fora da caixa”, com particular ênfase nas diferentes regiões e, sobretudo, em castas que integram o património vitivinícola do país. 

As entradas escolhidas para o acompanhar representam, antes de mais, a súmula de uma década que João Rodrigues dedicou à cozinha do Feitoria. Pela ordem cronológica da sua presença nas cartas do restaurante, foram servidos o crocante de pés de porco de coentrada (2012), a casca de maçã, pele de galinha e sapateira (2013), as falsas cerejas de foie gras (2014) – uma homenagem à cereja do Fundão feita com uma terrina de foie gras, no interior, com a avelã ano lugar do caroço –, o refrescante e memorável cubo feito com melão, lima e hibiscos (2015) e a tartelete de ervilhas e presunto ibérico (2018).

Concluído o primeiro roteiro de sabores, os comensais foram convidados a sentar. Foi dado, então, início ao desfile de pratos datados que constituíram o menu de degustação. 

Tártaro de atum e rabanetes {2015}

Tártaro de atum e rabanetes (2015), com maionese de wasabi, sem que os sabores dos dois últimos se sobrepusessem ao primeiro, recebeu as honras de começar o jantar.

Lula, camarão, caldo fumado e mão de Budha {2015}

Seguiu-se um dos pratos mais emblemáticos de João Rodrigues e da sua equipa de cozinha, lula, camarão, caldo fumado e mão de Budha (citrino de origem asiática), devidamente harmonizado por Palácio dos Távoras Vinhas Velhas 2016, um branco da Costa Boal Family Estates, de Trás-os-Montes, cujas castas autóctones da região duriense representam um grande percentagem de Códega de Larinho entre outras variedades de uva, uma escolha do escanção João Chambel. Do prato sobressaíram os aromas dos fumados da região minhota contrastados pelo fruto, que tem o Lugar do Olhar Feliz – produtor alentejano que consta na lista de preferências do chef – como produtor. Esta versão é decorrente do prato de 2015 composto, desta feita, por lula, camarão, amendoim e dashi, a remeter, na altura, para um pequeno desvio a Oriente. 

Foi neste mesmo ano que o trabalho de pesquisa para a preparação de cada prato se intensifica, dando origem ao Projecto Matéria, que se concretiza em finais de 2016. João Rodrigues define 2015 como “o verdadeiro ano da procura de identidade do Feitoria”, restaurante “que quer, assumidamente, fazer ou ter uma linha de pensamento e de cozinha portuguesa. Aí sim, há uma grande reflexão e quase todos os pratos de 2015 para a frente têm uma reflexão por trás, têm uma lógica, são pratos com sentido, são pratos pensados”, esclarece.


“2014 representou exactamente uma mudança de paradigma”
{João Rodrigues}

“Como se fosse uma bacalhau à Brás” {2014}

“Como se fosse uma bacalhau à Brás” (2014) foi o terceiro do alinhamento do menu de degustação. Este é um dos pratos que desafiava os clientes a misturarem todos os ingredientes presentes no prato, para que se assemelhasse ao aspecto original desta receita, aqui, acompanhado por Luís Pato Vinha Formal 2003, um branco da região da Bairrada feito a partir da casta Bical e eleito por Nelson Guerreiro. 

Por sua vez, o prato remete a “um ano marcante no Feitoria”, nas palavras de João Rodrigues, uma vez que “2014 representou exactamente uma mudança de paradigma”. Foi, então, quando o chef lisboeta decidiu suprimir com a cozinha praticada até então, bem como “criar uma estrutura nova na sala, na forma como iríamos organizar-nos, como queríamos o menu, como passaríamos a servir o menu’”

Na verdade, o chef deste restaurante deixa transparecer, em 2014, em entrevista à Mutante, preocupação no que à louça diz respeito, detalhe que tem vindo a ganhar destaque com o tempo, mas também com o cliente, que tem de ser “muito bem servido e acompanhado na sala”, dizia. Além disso, expressava preferência pelas “nossas raízes” na cozinha, apesar do gosto que tinha em viajar.

Carabineiro do Algarve {2015}

O emblemático carabineiro do Algarve (2015) também esteve em cena. Como é hábito, as cabeças do crustáceo são previamente grelhadas para, depois, serem prensadas na prensa de prata – propriedade do Grupo Altis – com a finalidade de extrair os seus sucos. Estes são, posteriormente, regados sob o carabineiro, conferindo-lhe um sabor singular.

Arroz carolino de salicórnia queimada e ostra Angulata do Sado {2015}

Em tributo à Península de Setúbal, o chef João Rodrigues cria, em 2015, outra receita que ficará na história do Feitoria: arroz carolino de salicórnia queimada e ostra Angulata do Sado. Um prato pensado e muito bem estruturado no que toca aos sabores que, neste jantar, fizeram par com o Lés a Lés Arinto 2016 de Pedra e Cal Branco, da Região Demarcada de Bucelas, um vinho que reúne os enólogos Jorge Rosa Santos (Casal Santa Maria, na Região Demarcada de Colares) e Rui Lopes (Somnium, da Região Demarcada do Douro), escolhido por António Lopes.


A cozinha francesa intemporal separada por dez anos
Salmonete, macarrão recheado e cogumelos da estação {2009}

Até que chegou o momento de um clássico de 2009, o deleitoso salmonete, macarrão recheado com cogumelos da estação. “Aprendi a fazer este prato com um chef francês que eu tive”, de nome Sébastien Grospellier, do Varanda, restaurante do Ritz Four Seasons Hotel Lisboa. “O chef Sébastian marcou-me muito, porque me ensinou outra forma de trabalhar, outro rigor, outro tipo de cozinha. Portanto há coisas que, quando vim para cá, vieram comigo.” 

Da parte dos vinhos, foi Manuel Moreira quem escolheu o Vinha de Saturno 2010, um branco da Monte da Cal, no Alentejo, feito a partir de Antão Vaz, Arinto e Alvarinho.

Robalo, champanhe e caviar {2019}

Eis que é, então, servido robalo com champanhe e caviar, a exuberância de sabores elegantes num só prato! É caso para dizer “What else?” Um marco de 2019 que representa a um momento de nostalgia para o chef em relação à cozinha francesa. Por isso, “tem um lado emocional forte, porque é um prato de memória pessoal, apresentado com uma simplicidade atroz que tem a ver com aquilo que preconizamos no Feitoria neste momento, que é simplicidade, não mais do que três produtos num prato e sabor directo”, revela.

Este conjunto de produtos comprova que a cozinha francesa “faz parte do meu percurso de aprendizagem, está-me no sangue, está por baixo da minha pele, nunca vou renunciar a nada disso, e as técnicas estão noutros pratos que fizemos. Aqui é assumidamente uma lembrança. Faz parte de mim, é algo que eu gosto, que me fascina, ainda. A cozinha francesa é uma das grandes cozinhas do mundo”, confessa João Rodrigues, que faz um balanço “extremamente positivo” destes dez anos, muitos dos quais teve – e tem – André Cruz, sub-chef, como seu braço direito. “Tudo aquilo que eu sou, emprego no Feitoria sem qualquer tipo de travão”.

Emília Craveiro decidiu seleccionar o Ninfa 2015, um branco de João M. Barbosa, feito a partir da casta Sauvignon Blanc, vindimado na região dos Vinhos do Tejo.

“Matança do porco” e “Portugal num só prato” {2016}

De 2016 é, também, a “Matança do porco”, em que o coração é feito com o coração de alface e o sumo da beterraba é o suposto sangue do animal, bem como “Portugal num só prato” reproduzido por lâmina de copita e caldo de cozinha à portuguesa. Ambos complementaram-se na perfeição, que entre si, quer com o néctar escolhido por Pedro Nogueira: Quinta do Mouro Erro 3 2013, feito com Trincadeira e Touriga Nacional e produzido por Miguel Louro, na propriedade alentejana de Estremoz.


“Queremos voltar a uma restauração clássica, tradicional sem o ser”
{João Rodrigues}

Osso buco, puré de batata e trufa {2011}

O mesmo vinho fez pairing com o décimo momento deste menu de degustação, o qual teve como protagonista o suculento ossobuco com um delicioso puré de batata trufado e raspas de trufa (2011). O prato foi finalizado na sala e mereceu a atenção dos presentes durante o empratamento refinado do mesmo comprovando, uma vez mais, a importância que passará a ser atribuída a este espaço do restaurante Feitoria. “Há uma dinâmica de sala que estamos a construir, isto é, há mais cozinha de sala, para dar cada vez dar mais protagonismo aos empregados de mesa e ao trabalho que eles fazem”, revela o chef. Por essa razão, os vinhos passaram a ter já uma nova abordagem da parte de André Figuinha. 

Esta é a visão do futuro na restauração para o chef lisboeta. “Acho que estamos quase a esgotar o modelo do chef super-estrela e do prato super-manipulado, empratado na cozinha e que vai directo para a mesa, onde só se conta a história. A história tem de ser acompanhada com ‘massa’, portanto, queremos fazer um retrocesso que não é um retrocesso. É um voltar atrás por outro caminho, porque queremos voltar a uma restauração clássica, tradicional sem o ser.”


“Esta celebração em que os vinhos têm esta importância é o princípio de muita coisa.” 
{André Figuinha}

Sopa dourada, gelado de pão alentejano {2010}

De 2010, veio a surpreendente sopa dourada e gelado de pão alentejano, seguida de uma sobremesa representativa de Alcácer do Sal, de 2017, ano em que o chef evidenciou, ainda mais, a importância da tradição, da identidade, da sustentabilidade e da sazonalidade. Isto é, a valorização do produto é – e continua a ser, para João Rodrigues – o centro das atenções da cozinha do Feitoria, até porque, tal como disse, à Mutante, nesse mesmo ano, o “menu Matéria é mais do que um menu, é um conceito, uma afinação constante”.

A última combinação vínica deste “Best Of Feitoria” – cujos pratos fizeram uma enorme justiça ao nome – esteve nas mão de Rodolfo Tristão, que elegeu o Quinta da Bela Vista Carcavelos, licoroso feito com a casta Galego Dourado, produzido na Região Demarcada de Carcavelos e, agora, pertença da Companhia Agrícola do Sanguinhal, no Bombarral.

Alcácer do Sal {2017}

“Esta celebração em que os vinhos têm esta importância é o princípio de muita coisa”, garante André Figuinha. “Conseguimos isto, porque já nos conhecemos há muitos anos e isso é muito importante. Acho que cada um de nós tem de dar um contributo para a nossa paixão, para o que fazemos, além de que é a altura certa de conseguirmos fazer mais a respeito de tudo isto”, assegura o escanção responsável e o chefe de sala do Feitoria acerca da sua relação de amizade com João Rodrigues.

“No fundo é conseguir que [o Feitoria] seja um palco para dar esse passo. Quem quiser fazer o mesmo, faça, mas acrescente mais alguma coisa e que se torne um desafio para evoluir e de trazer toda esta beleza que é a sala, os vinhos e o trabalho do escanção de uma forma consistente”, remata André Figuinha.

O escanção André Figuinha e o chef João Rodrigues

Afinal, como o chef João Rodrigues afirmou em 2014, “tudo está em constante mudança”. E eis a resposta à pergunta inicial: no Feitoria é este o caminho para uma nova era na restauração.

+ Altis Belém Hotel & Spa
© Fotografia: João Pedro Rato

Legenda da foto de entrada: O chef João Rodrigues e o escanção, e chefe de sala, André Figuinha

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