“RITMO”: Marina Abramovic e Clara Menéres

Foi nos anos 70 do século XX: Marina Abramovic e Clara Menéres mostraram que o “sexo” tem um “ritmo”. Questiono: trata-se de um sinal de modernidade alcançar a igualdade de “género” obstando a “rótulos sexuais”? 

1974. Local: Studio Morra, Nápoles, Itália. Performance intitulada Ritmo 0, em que Marina Abramovic se colocou “nas mãos” do público durante 6 horas, com a possibilidade de interagir com ela através de 72 objectos disponibilizados para o efeito. Os objectos eram muito variados: penas, uvas, flores, mas também facas, tesouras, uma barra de ferro, lâminas de barbear e uma pistola carregada com uma bala. Marina deixou a assistência tranquila quanto ao teor das intervenções no seu corpo-objecto, já que assumia plena responsabilidade pelos actos eventualmente praticados. 

1977. Ocasião: Exposição “Alternativa Zero”, organizada por Ernesto de Sousa e barómetro da vanguarda em Portugal, decorrida na Galeria Nacional de Arte Moderna, em Lisboa. Clara Menéres apresenta uma escultura-instalação, intitulada Mulher-Terra-Viva e de dimensões generosas – 300 x 180 x 90 cm, composta por acrílico, terra e relva. Tal escultura-instalação definia um torso, em alusão ao corpo feminino, destacando-se: os seios, o ventre, a vulva e a cobertura integral de relva de um verde intenso, que aliás crescia na zona da vulva e exigia, por tal, ser permanentemente aparada. 

1974: o que começou por interacções marcadas pela timidez e hesitação, e aparentemente inofensivas, acabou por, gradativamente, adquirir contornos de violência atroz, com as roupas da artista-performer a serem rasgadas, o seu corpo a ser golpeado e apalpado, a pistola a ser colocada numa das mãos e apontada na sua direcção. Quem assistiu conta que se tratou de uma bolsa de tempo extremamente perturbante, fosse pela brutalidade dos actos cometidos, fosse pela imobilidade de Marina Abramovic, totalmente à mercê das vontades alheias. 

1977: Ernesto de Sousa vê em Mulher-Terra-Viva um projecto muito eloquente, já que transpõe a natureza, assassinada através do sentido-das-formas, para o interior de uma exposição e provoca uma luta quotidiana, a que reconhece o sentido de performance, ao exigir que se apare a relva na zona da vulva, como já se assinalou. Quem aparava a relva: a própria Clara Menéres. A escultora haveria de explicar posteriormente em entrevista às Faces de Eva, já em 2000, que se trata de “uma peça que identifica as curvas da paisagem com o corpo da mulher, uma clara referência aos mitos da Terra-Mãe”, tocando, por tal, “em níveis muito profundos do inconsciente humano.” A comprovar esta profundidade, e sua capacidade de perturbação, faça-se notar que Mulher-Terra-Viva foi vandalizada através de golpes durante a exposição “Alternativa Zero”.

1974: quando a performance Ritmo 0 terminou, o que coincide com o momento em que a artista-performer se levanta, conta quem assistiu que as pessoas a terem ferido ostensivamente Marina foram incapazes de a olhar frontalmente, saindo da sala apressadamente. 

1977: na Bienal de São Paulo foi também apresentada uma versão de Mulher-Terra-Viva, com as mesmas características, mas de dimensões maiores, ocupando um espaço exterior e provocando perplexidade, já que se considerou a escultura-instalação impudica e provocatória na nudez feminina traduzida em material vegetal.

1997: no Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves, Porto, é realizada a exposição evocativa “Perspectiva: Alternativa Zero” e Mulher-Terra-Viva marca presença, mas causa desconforto quanto à sua localização, acabando por dissimular-se no jardim da Casa de Serralves por sugestão dos arquitectos paisagistas que, pese embora serem quem “cria volumes”, resistiram em relação a tal obra de arte e seu impacto. 

1974 e 1977, e 1997 agora e também: o “sexo” tem um “ritmo” que não se dilui no género, o que é uma asserção de grande bom senso e em nada devedora do pensamento binário. Por que razão não optar pelo rigor, confundindo-se diferença sexual com pensamento binário, vulgarmente associado à dita normatividade heterossexual? Aposto: se no lugar de Marina Abramovic permanecesse um homem, igualmente disponível e indefeso, a violência seria mantida, mas, em lugar de pretenderem ostensivamente penetrar o seu corpo, simular-se-ia provavelmente uma castração dirigida ao órgão sexual e toda uma depravação simbólica. Por tal, igualdade e diferença são dois planos distintos, cuja necessidade se afigura premente. Além de tal, a denúncia de que a diferença sexual reifica, porque “rotula”, é uma completa ignorância acerca da transcendência que habita, por dentro, a nossa humanidade. 

Já em outro plano, asseguro-vos: o pensamento tem sido sobretudo homo-erótico; interessa “fecundá-lo” permanentemente tornando-o, pois, hetero-erótico.

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