“Os Amantes”, “Les Amants”, “The Lovers”, um quadro pintado a óleo sobre tela no ano de 1928, com as dimensões de 54 x 73 cm e pertencente por ora à Galeria Nacional da Austrália, interpela/m.
René Magritte está inscrito no surrealismo metafísico, a par com Giorgio de Chirico, Paul Delvaux ou Max Ernst, por exemplo; nesta têmpera surrealista encontram-se igualmente mulheres bastante inspiradoras: não me esquecerei delas e, proximamente, a uma se dedicará reflexão. Mas, agora, “Os Amantes”, na versão aqui presente. Sim, porque existem variações em torno dos amantes, todas constando de três elementos essenciais: um homem, uma mulher, panejamentos que tapam os seus rostos.
Por exemplo, sobre a versão que se encontra no MoMA, que será porventura a mais divulgada e conhecida, podemos ler na descrição que é feita pelo Museu que Magritte atribui destaque às máscaras, aos disfarces, às mentiras, precisamente dando a mão ao sopro surrealista, onde tais elementos adquirem um sentido muito ostensivo. Daqui extrapola-se, não raro, para uma mascarada da identidade, depois concluindo-se pela impossibilidade de os amantes se conhecerem efectivamente, já que cada um (se) esconde, não revela, não se entrega, portanto, verificando-se o desconcerto do sentimento, a impossibilidade, agora, do amor. A minha hipótese, no entanto, é outra.
A. Ponto cego, B. Ângulo morto, C. Falha, D. Tempo vertido, E. Futuração: cabe-me (tentar) demonstrar-vos (o melhor que sei) a minha hipótese.
A. Ponto cego. O rosto, e consequente olhar do rosto, é certamente o lugar de reconhecimento imediato, e a pintura foi, a partir da Alta Modernidade, o espelho mágico em que o Mundo se celebrou como imagem ao colocar, no mesmo gesto, o Homem em cena. Que a arte moderna venha depois cegar o quadro, e segundo a percepção de José-Augusto França, será o lance que nos exigirá ver de olhos fechados, o que é dizer, sentir com o corpo todo. Por tal, “Os Amantes” exigem-nos, também, apesar do surrealismo ser aqui metafísico, uma espécie de ponto cego d/na visão.
B. Ângulo morto. A partir de tal ponto cego perspectiva-se, logo, um ângulo morto, ou seja, um suposto lugar de onde apenas podemos ver através da escuta, tacteando as hipóteses, mapeando mentalmente as possibilidades, interiorizando. Por tal, dá-se um mergulho em profundidade, no interior, sem com tal exceder-se em actos de imaginação porque, repare-se, os panejamentos são cinzentos, e o cinzento é a cor da memória, quero crer. Logo, a identidade não está aqui disfarçada, mas antes a-profundada.
C. Falha. O ângulo morto, ao a-profundar, origina uma falha, dupla falha, aliás: a do sujeito e a da relação. Tanto o homem é um enigma, como a mulher é enigmática, como a relação que estabelecem connosco é misteriosa. Sim, muito para lá da máscara, Magritte, em “Os Amantes”, providencia o mistério, intensificando precisamente as potencialidades, tanto do par, como do seu desvendamento perante a nossa angústia evidente.
D. Tempo vertido. Em função da falha, e perante o olhar ostensivo do par, bem como a partir da nossa angústia evidente, dá-se como que uma suspensão do tempo: aparentemente representa, mas não dá a ver; aparentemente expressa, mas não se revela. Então – o tempo vertido, em que não é mais possível ligar ostensivamente, não é mais possível relacionar os acontecimentos numa cadeia ininterrupta, donde, o futuro não está de forma nenhuma escrito.
E. Futuração. Em relação íntima com o tempo vertido, a futuração é o tempo inacabado. René Magritte não nos dá uma mentira, mas sim uma identidade secreta que, muito longe de ser conivente com o anonimato do Ser, antes irrompe enquanto abertura e inerente tarefa de construção incansável, trabalho dos dias, e um dia com horas. Emmanuel Levinas refere-se às “horas” pelo menos de duas formas: como ausência do humano – “longa noite sem horas”; como resposta aos apelos da actualidade – “preocupações da hora”. Magritte, para mim, calibra as “horas”.
Será que colhem a minha hipótese?