Street Art que nos invade a casa que somos nós próprios. Cremos que podemos começar assim, desta forma, esta entrevista onde vos queremos dar a conhecer quem, há muito, nos roubou o olhar com o seu distinto trabalho, com a sua singular arte.
Rómulo Santa Rita traz-nos a rua para dentro de casa. Inquieta-nos. Faz-nos querer saber mais. Tira-nos da zona de conforto onde nada nos incomoda. Traz-nos a matéria da rua, as gentes da rua, a mensagem da rua, a política da rua… Traz-nos a rua, mas deixa-nos, simultaneamente, na rua. A rua dura e sangrenta, a rua humana da criança anónima que ainda ri e a rua dos insignes que temos em alta.
Traz-nos ídolos e ódios, traz-nos música e arte, crítica e aceitação, estórias e história… Traz-nos a rua sem nunca deixar a rua e, por vezes, a habitar.
A viver em Angola onde tem parte das suas raízes e da sua matriz, Rómulo Santa Rita tem vindo, ao longo do tempo, a afirmar-se como um nome definitivamente obrigatório na (Paper) Street Art.
Sem medos ou receios, retrata uma África – com especial enfoque para Angola – que muitos não conhecemos, evitamos conhecer ou deixamos cair no esquecimento porque, como diz Rómulo mais à frente, “afinal são só ‘os filhos dos outros‘”; mas, para equilíbrio das partes, retrata também um mundo que nos transporta para sonhos de palcos intensamente vividos por estrelas maiores da cena política, social e cultural.
Na mão que nos transporta para narrativas várias, materiais alternativos como cartão, papel, tinta acrílica e guache, pedaços de revistas e jornais minuciosamente selecionados, sempre com a narrativa que nos vai dar no horizonte. Nada é construído ao acaso, nada está fora de seu sítio… Só talvez o mundo que ele tantas vezes nos narra.
© “Juliana”, Homenagem, Zungueira assassinada pela Polícia em Março de 2019, Projecto Naxixi Street, Luanda, Angola, 2019
Por tudo o que tão resumidamente acima vos falámos, desafiámos Rómulo Santa Rita para uma conversa para decifrarmos técnicas, posturas, influências, sentimentos, raízes de quem deseja ser somente anónimo para dar voz maior às suas narrativas recortadas, pintadas, coladas numa técnica viciante.
És um tríptico no ADN. És português, angolano e moçambicano. Nascido em 1980, em Lisboa, em 2011 mudas-te para Luanda. Esta mudança foi um major trigger para a tua arte começar a ganhar mais espaço, não só em ti, mas com o público ? Isto sabendo que há muito criavas para ti, só para ti, quase.
RSR: Cresci em Portugal, sim, mas fui criado por uma família maioritariamente angolana e uma mãe moçambicana, de origem goesa. Estive sempre em contacto com culturas africanas e é certo que tudo isto tinha de fazer parte de mim, foram as bases da minha construção pessoal. Quando mudei para Angola a transição foi simples, não senti sequer o típico “período de adaptação”. Foi como que um regresso a casa, só que uma casa onde ainda não tinha vivido. Nos primeiros tempos, estávamos constantemente a mudar de casa, a conhecer novas pessoas, novos enquadramentos e fomos criando laços. Existe uma máxima que diz que na Europa as pessoas têm relógios e em África têm tempo. Ainda que Luanda seja uma cidade cheia de azáfama e, para alguns, seja um desafio intenso com tudo o que há para fazer, para mim foi uma forma de ter mais tempo de introspecção, cresceu em mim uma necessidade maior de criar durante esse tempo que passei a ter disponível. Para além disso, em África em geral e Angola em particular a realidade que nos rodeia é mais dura, mais transparente, mais fértil para as artes plásticas, o que despertou em mim essa necessidade permanente de comunicar, quase que em registo jornalístico, só que ao invés de foto ou vídeo uso a colagem e a pintura, dentro e fora de casa.
“I don’t think about art when I’m working. I try to think about life.” Jean-Michel Basquiat. Agarrando nesta afirmação do inesquecível Basquiat, no pensar sobre a vida enquanto se cria, como é que sentes que a tua mistura de ADN, o cruzamento de três culturas diferentes:
Influencia o teu pensamento criativo?
RSR: Sem dúvida que esta é uma citação em que me revejo. Durante muito tempo criei só para mim porque nem conseguia perceber o “valor artístico” do que fazia. Eram impulsos e desabafos criativos que não tinham qualquer alinhamento nem serviam “regras” do que se poderia considerar “artes plásticas” da forma como são percepcionadas ou valorizadas em termos “sociais” ou “sócio-económicos”. Continuo a fazê-lo, só que agora mais consciente de que o produto final e o statement são de facto valorizados na comunidade artística.
Influencia o teu pensamento criativo?
RSR: A mistura influencia, claro, são muitas referências que constroem a forma como vejo e avalio o que vejo. Se tivesse tido outro enquadramento social e familiar provavelmente olharia e sentiria as coisas de forma diferente. São essas emoções e reacções que dão corpo ao que faço e que definem a sua intensidade.
E influencia a tua arte, naturalmente…
RSR: Claro, a arte é o resultado da criatividade.
Como é primordial pensar no teu crescimento enquanto ser humano, no teu percurso de vida, para criar?
RSR: Como disse, se não fosse quem sou não conseguiria ver e sentir o que vejo e o que sinto. Nada seria igual. Não quer dizer que não pudesse ser igualmente bom, nesse crescimento, mas seria certamente diferente.

© Oito de 13 dos “Líderes de Papelão”, Exposição Untilted 01, Banco Económico/ Galeria This Is Not A White Cube, Luanda, Angola, 2018
1.ª Linha (da esquerda para a direita): Paul Kagame – Ruanda desde 1994; Hissène Habré – Chade 1982-1990; Jean-BédelBokassa – RCA 1966-1976; Obiang Mbasogo – Guiné Equatorial desde 1979
2.ª Linha (da esquerda para a direita): Omar Al-Bashir – Sudão desde 1989; YahyaJammeh – Gâmbia 1994-2017; Muammar Gaddafi – Líbia 1969-2011; Hastings Kamuzu Banda – Malaui 1963-1994
A Banda Desenhada tem no desenho, (e na frase curta), uma força incrível. Muitas vezes, o desenho é o próprio texto e dispensa palavras mais. Na Street Art o desenho é, quase sempre, a mensagem. Uma mensagem muitas vezes com uma clara intervenção sociopolítica e cultural.
Quando te perguntei por referências várias, de vários pontos e pontes, nos livros, disseste que tinhas ficado pelas gravuras, num tom de brincadeira, não me confessando nada. Assim, empurro mais uma citação de outro que te sei como referência, Darren Aronofsky: “Comic books and graphic novels are a great medium. It’s incredibly underused”.
Também crês, como artista plástico e gráfico, que não se valoriza verdadeiramente a força de uma BD, retirando e absorvendo dela todas as suas potencialidades, ou nada disso?
RSR: Não acho que a força da BD esteja desvalorizada. Vejo na BD uma importante ferramenta de auxílio ao processo criativo, que me ajuda a passar a mensagem porque é um formato com que todos nós, de certa forma, nos identificamos.
A BD pode ter um papel importante na formação/crescimento de alguém, mesmo que este não siga as artes plásticas?
RSR: Acredito que sim, a BD sempre foi uma forma relevante de passar mensagem social e até política. Se olharmos para um universo Marvel, que me acompanhou ao longo da vida e tem acompanhado tanta gente, todas as suas personagens e estórias têm simetrias com a realidade, passam mensagens directas, indirectas e até subliminares de uma série de temas sociais. Pelo que mesmo as pessoas que não tenham qualquer relação com as artes plásticas acabam por ser impactadas, a meu ver, pela BD.
Dois mundos. A rua. As paredes de um espaço privado.

© “Os Filhos dos Outros”, Exposição Untilted 01, Banco Económico/ Galeria This Is Not A White Cube, Luanda, Angola, 2018
Mal mergulhamos um pouco no teu trabalho, vemos dois universos: a arte de rua, a arte que nos entra em casa. Que nasceu primeiro em ti, a arte democrática da rua, acessível a todos, ou aquela que pode preencher paredes de nossa casa?
RSR: A arte das ruas, inicialmente o grafitti, sempre me fascinou. Em Portugal, e não só, até há uns anos, a Street Art não era reconhecida como arte. Ainda hoje a Street Art acontece, na maioria da vezes, à revelia das autoridades, de forma espontânea, por impulso. Esse lado subversivo e vândalo, com sentido, mexe comigo e a receptividade do público também. Aquele momento em que termino uma obra na rua, em que ela deixa imediatamente de me pertencer, passa a estar à mercê de todos, dos olhares que lhe dedicam alguma atenção, é dos momentos do processo que mais me bate, é uma adrenalina que vicia e que procuro sempre reviver.
Quando é que nasce a certeza que a tua tela, além da tela móvel, tem/ pode de ser, simultaneamente, uma parede da nossa urbanidade?
RSR: Quando nasce a ideia a minha tendência é querer sempre trabalha-la em grande. Por norma, mesmo as obras que nascem num registo mais indoor acabam por ser formatos bastante grandes e podem ser todas, sem excepção, reproduzidas na rua. Às vezes há paredes que chamam, pelo simbolismo, nome da rua, pela sua história ou enquadramento, outras vezes a mensagem pede só para ser vista e, nessas alturas, primeiro nasce a obra e depois aloja-se numa parede. Os grandes formatos sempre me fascinaram pelo desafio brutal de se colocar uma peça na rua do tamanho de um bilboard publicitário, à revelia de todos. Tem de haver sempre um processo de entreajuda, uma equipa, e uns moscatéis de oficialização. São sempre momentos bem passados.
E pela experiência que temos do contacto ao vivo com essa dimensão física do teu trabalho, sem dúvida que o impacto é muito maior a quem tem a sorte de se cruzar com ele, numa parede algures. A importância da escala de quem olha face ao que é observado.

© “Bala Certa”, Kolectivo Bawka, Luanda, Angola
Consegues ter uma tela que seja a preferida para trabalhares, onde sentes que ganhas mais força para criar?
RSR: A minha tela preferida para trabalhar é o papel e o cartão. Tudo começa com uma ideia que materializo, por norma, nestes materiais. O sítio para trabalhar de eleição é o meu atelier, o piso de cima da minha casa em Luanda. Em Portugal, também tenho um atelier improvisado fixe que me dá o espaço e o tempo que preciso para trabalhar. Depois do backstage vem o palco principal e esse é, sem margem para dúvidas, “o momento”. Também fico contente quando tenho trabalho expostos em galeria, mas verdadeiramente o que procuro com essa exposição é a legitimidade e credibilidade para conseguir expor cada vez mais e maior nas ruas.
Que se encham as ruas!
Caledonia Curry (a.k.a. Swoon) diz “I wanted do become part of something larger than myself… I wanted to embrace the world.”
É também por isto que a Street Art se torna tão irresistível, o poder abraçar o mundo com telas que estão acessíveis a todos na cidade? Passas a ser de todos e não só de alguns?
RSR: Quando sinto necessidade de me expressar através de uma obra a ideia é sempre que a mensagem tenha o maior alcance possível, que seja absorvida pelo maior número de pessoas e dar azo às suas mais diversas interpretações. Para mim, comunicar é o objectivo, mexer com as emoções faz parte dessa necessidade de comunicar. Conseguir fazê-lo bem é um sentimento de missão cumprida, é a pura democratização das artes. É chegar a quem sente e se emociona, mas que jamais teria condições de pagar para a ter ou mesmo disponibilidade para a visitar numa galeria. Percebermos depois o quão relevante a obra se tornou para a comunidade ou para o meio artístico com a extensão da conversação à volta da obra, artigos, posts nas redes sociais, etc, que me ajudam a perceber como é que sou percepcionado pelos outros.
Mudemos ligeiramente o rumo da conversa para um Rómulo Santa Rita que toca na ferida.
Swoon, que acima citámos, é reconhecida por ter conseguido sempre ter algum impacto social com a sua obra e, ao mesmo tempo, permanecer uma artista, não uma activista. No teu trabalho há um lado claramente interventivo, crítico. É importante manteres o teu trabalho fora da esfera do activismo ou não sentes essa necessidade e queres os dois num só, o Rómulo artista-activista?
RSR: O lado do “artivismo”, se é que assim lhe podemos chamar, é o statement que geralmente dá inicio a qualquer obra minha, pelo que é, sem dúvida, a componente mais forte do processo criativo e até da sua materialização. É a minha forma de activismo, o facto de poder in/directamente usar a arte para expressar a minha opinião pessoal, uma mensagem de mudança social, e tentar tocar em pontos que muitas vezes sinto que não têm a atenção merecida.
“Artivismo”, como numa palavra podemos, de facto, juntar dois mundos que existem como um só, em ti.

© Sem título, Projecto Naxixi Street, Luanda, Angola, 2019
Como nasceu a vontade de retratares nomes tão controversos, polémicos, da história de todo um continente Africano? E como viste que Angola estava pronta (ou não) a receber uma exposição com esses retratos?
RSR: O contacto que sempre tive com diferentes realidades africanas e a vivência em Angola despertaram a minha consciência política, em especial a angolana. Este contacto directo com Angola desencadeou a minha curiosidade pela forma de se liderar outros países africanos que, não obstante sejam na sua grande maioria estados democráticos, em tom de brincadeira costumo chamar de democracias ditatoriais. Comecei a pesquisar sobre outros lideres e formas de governação, e apercebi-me que existe um padrão e que esse padrão deu lugar aos mais variados “papéis” e figuras carismáticas da política em África. Não sei verdadeiramente se Angola estava pronta ou não para receber uma exposição dessas, com foco especificamente nesse tema. Quando os “Lideres de Papelão” foram expostos, e foram apenas três, foi numa exposição colectiva no Banco Económico, de vários artistas, com muitos temas e obras num só espaço, inclusive outras obras minhas, pelo que ainda se mantém uma incógnita.
Que querias sentir (ou provocar) no público com essa tua série de líderes africanos e porquê chamar a esta série “Líderes de Papelão”? Só por uma questão do material que trabalhaste ou temos uma critica logo no nome?
RSR: Nesta série pintei usando técnicas mistas, sem pincéis, sobre papelão, o que facilita a transmissão metafórica do “papelão” que estes líderes desempenharam ou desempenham ao longo do período de vigência dos seus mandados (por norma décadas), a forma como gerem os “seus” países e a reciclagem que tem sido feito das políticas em África e dos seus modus operandi, acabando inclusive por serem reciclados ao longo dos anos e substituídos por outros líderes que desempenham papelões semelhantes.
O duplo sentido de uma técnica-mensagem.
© Coveiro Filipado, Homenagem ao Sebem, Projecto Naxixi Street, Luanda, Angola, 2019
Um ponto atrás…
Agarrando no “Papelão”, na tua obra vemos cartão, papelão, guache, tintas, pedaços de revistas e jornais criteriosamente escolhidos (temática sempre acutilante política, social e cultural). Materiais descartáveis. Materiais recicláveis. O que é, para um leigo, Paper Street Art que apresentas como a tua técnica, criando um impacto indiscutível? Porquê estes materiais tão específicos e qual a sua relação/ comparação com a Street Art?
RSR: A escolha dos materiais está directamente ligada com África, com Angola, em que o difícil acesso a materiais é transversal a todas as áreas, pelo que o recurso ao engenho e a materiais recicláveis é quase um caminho obrigatório, e o motivo pelo qual tantos artistas de cá recorrerem à reciclagem como forma de expressão. No meu caso, em particular, gosto especialmente de poder fazer com que os materiais revivam de forma diferente e esse renascer dos materiais acaba também por ajudar a reforçar o meu ponto de vista. O Paper Street Art é um conceito, uma forma de expressão, que consiste numa técnica de colagem de papel, que abrange desde os pequenos autocolantes a peças com formatos gigantescos. Pessoalmente, gosto da facilidade e rapidez com que a técnica me permite deixar a minha marca e também me dá um certo prazer saber que assim a obra é efémera. Uma obra que existiu e depois desapareceu passou a mensagem, deixou a sua marca, e dá lugar a uma nova criação, como se fosse uma permanente tela em branco.
Dos líderes e de uma gargalhada histórica, viramos para um momento demasiado escuro da história do país que habitas.
Kubric disse “However vast the darkness, we must supply our own light.” Dia 27 de Maio de 1977, Angola. Milhares de intelectuais que “desapareceram” de cena. Tema (quase) tabu em Angola.
Criaste algo para que ninguém esqueça o horror que se sucedeu naquele dia, criaste uma luz. O teu papel, na arte, é também este, de não deixar esquecer e viver o perigo de trabalhar (acabando por falar) temas tão sensíveis?
RSR: O 27 de Maio de 1977 não é um tema [quase] tabu em Angola, é mesmo um tabu. Uma das datas mais marcantes na história de Angola pós-colonial. O 27 de Maio foi um período de limpeza intelectual de um país, à data, altamente fragilizado pelo processo de descolonização, que deixou uma ferida aberta até hoje, em Angola. Desapareceram e morreram milhares de pessoas, deixando as suas famílias numa tentativa de luto interminável, por nunca terem sabido ao certo o que aconteceu e se iriam ou não rever os que lhes eram mais queridos. Esta omissão, falta de esclarecimento, ainda hoje deixa lutos em suspenso e reflecte bem o quão condicionado, pouco esclarecido o povo de uma nação pode estar quando a política e seus agentes assim o decretam. O povo segue sobrevivendo, aceitando viver à sombra destas nuvens densas e aparentemente eternas.
Vou interpretar como uma homenagem a essas famílias destroçadas, desfeitas, pois não os deixas cair em esquecimento, os que partiram.

© “27 Maio de 1977”
E sem sair dos momentos mais escuros da história…
Ainda em Kubric, “When a man cannot choose, he ceases to be a man”.
Com ela partimos para “Fragile”, a tua metáfora que nos remete ao nome da embarcação – Caridade – que, no século XIX, transportava escravos de Angola para o Brasil e que representa, num teu trabalho, a fragilidade dos rumos de hoje.
Quais são essas fragilidades que retratas da tua Angola, nesta peça? O que é a “Caridade” de hoje?
RSR: Assemelho a embarcação do tráfico negreiro “Caridade”, naquela época, à “embarcação política” que nos transporta nos dias de hoje. As semelhanças são nítidas e vastas, uma vez que África continua a ser palco de interesses políticos, nacionais e internacionais, e de uma classe empresária amoral que continua a servir-se de muitas destas pessoas como mercadoria para servirem os seus interesses lucrativos, em grande parte das vezes até por períodos de tempo determinados.
Os rostos que vemos são anónimos ou rostos que te contaram histórias dos seus rumos?
RSR: As estórias e a história dos rostos que pintei pertencem agora ao fotógrafo que captou cada expressão de cada pessoa – um grande amigo e um grande fotógrafo, José Silva Pinto. Para mim passou apenas a emoção de retratos que me impactaram imenso e que tinham a expressão certa para me ajudar a transmitir as mensagens que precisava de materializar. Para mim mantêm-se anónimos, como eu sou e me sinto em cada obra que faço.

© “Fragile”, Exposição Intersections Within the Global South, Banco Económico/ Galeria This Is Not A White Cube, Luanda, Angola, 2019
Percorrendo o teu trabalho, o(s) rosto(s), quer políticos, quer pessoas reconhecidas ou cidadãos anónimos, são a força maior. São eles, os rostos, o espelho da alma e por isto são tão importantes retratar?
RSR: Não consigo encontrar expressão mais forte em imagem nenhuma do que um olhar. Um retrato é a melhor forma de passar mensagem sem ter de escrever uma palavra, é um ponto de partida super rico e intenso para qualquer coisa que faça.
“Every city in the world always has a gang, a street gang, or the so-called outcasts”, Hendrix.
Os miúdos com que nos cruzamos, na tua arte, são os outcasts da tua cidade, aqueles que te dão garra desenhar?
RSR: A série “Os Filhos dos Outros” nasceu pouco tempo depois do meu primeiro filho nascer. Estes miúdos representam a luta diária de sobrevivência, os seus pontos chaves do dia-a-dia, quotidianos de crianças que não têm para onde voltar nem para quem voltar, que não têm perspectivas. O futuro para eles é um amanhã que para nós seria difícil de imaginar. São crianças, imensas, que acabam por ser apenas estatística na qual jamais colocaríamos os nossos filhos, mas também eles são ou foram filhos de alguém. São pouco mais do que aquela imagem de referência das revistas, jornais e documentários, sempre que se fala de fome e pobreza – aquela imagem que encaramos intensamente no momento que nos deparamos com ela, mas que com a mesma força esquecemos, viramos a pagina e mudamos de canal. Afinal são só “os filhos dos outros”.
Pegando na expressão do Jimmy, sim são os “so-called outcasts”. Grupos de miúdos que cumprem com a necessidade de se enquadrarem mesmo que sejam desenquadrados de tudo o resto. Procuram-se uns aos outros e reúnem-se pela necessidade de também eles, fora da comunidade, fora do sistema, terem a sua comunidade e sistema. Eu próprio sempre me senti um bocado outcast e sinto esse vazio, essa necessidade de procura de alguém que fale a mesma língua, que perceba o que me ocupa e move. Fruto disso procuro dentro da Street Art quem, ainda que fazendo diferente, perceba e entenda o que faço, e vice-versa. Foi assim que nasceu o Kolectivo Bawka – para já somos só dois que não queriam viver sem esse sentido de pertença, um projecto que acredito que, muito em breve, vai dar bastante que falar.
Fica já prometida a conversa sobre o Kolectivo Bawka para um dia destes.

© Júlio Pomar / David Bowie, Coleções Privadas
E temos de terminar pois a conversa já vai longa.
Não só de malfeitores polémicos ou de inocentes anónimos vive a tua obra. Vemos também um Bowie, masters dos Blues, um Hendrix, um Bob Marley, um Júlio Pomar e tantos mais…
Este equilíbrio, com rostos de incontornáveis mestres, é também necessário à tua obra?
RSR: São ídolos da minha construção, também eles são líderes, a meu ver, com um papelão indiscutível, são também filhos dos outros que me marcaram imenso… não tinha pensado nisso…
Obrigado Mutante pela viagem e pelo desafio desta entrevista.
Obrigada nós por uma entrevista tão franca e por nos dares a conhecer, mais a fundo, a tua arte anónima.
Na Street Art o activismo é (quase) sempre indissociável. Quando os dois mundos – da arte e do activismo (não só político, mas simultaneamente social e cultural) – são indissociavelmente um só e nos provocam e espicaçam, então falamos de artistas como Rómulo Santa Rita que na sua arte, efémera ou não, nos narram a história que não deve cair no vazio da memória e estórias que relemos sem fim.
Rómulo Santa Rita tem de momento dois trabalhos na Exposição “Discursos Decolonialidade”, na Galeria This Is Not A White Cube / Not A Museum, na Rua Castilho, em Lisboa, patente até dia 31 de julho de 2020.
A colocar no seu mapa cultural. •