Carlos Paredes de ANIMAIS

Leu bem. Carlos Paredes de ANIMAIS. Carlos Paredes de Pedro Lopes, Pedro Renato, Raquel Ralha e Ricardo Dias. Porque Carlos Paredes, aqui, vai além da imensidão do seu virtuosismo que não encontra par. Aqui, nesta entrevista, ele é Carlos Paredes reinventado, revisitado, ou outro re que considere mais justo. É tradição que se recria. É saber mudar sem lhe apagar a alma. É evolução com respeito sentido pela obra do virtuoso Mestre. É música nova, com identidades várias.

Hoje, após um longo processo de “gravação, edição, mistura e masterização”, publicamos a nossa inusitada conversa com uns muito inusitados vanguardistas: ANIMAIS. Uma conversa a propósito do álbum que aqui vos falámos, em março de 2020, o viciante “ANIMAIS – 15 Anos Sem Paredes”.

Corria o ano de 2003, na Lusa Atenas, e no Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV) fez-se ouvir “Mondego Chase” – um espectáculo que juntava os Belle Chase Hotel com músicos do Quinteto de Coimbra. Tudo com a benção de Carlos Paredes. Contudo e apesar de terem sabido de um Carlos Paredes “emocionado ao ouvir o seu trabalho revisitado, ainda que num contexto bastante diferente do habitual“, este trabalho ficou bem guardado até 2020, ano da edição do álbum que tornou esta conversa algo inevitável.
Os mesmos músicos que engendraram o projecto “Mondego Chase” reuniram-se assim para “ressuscitar e completar a aventura musical pelo universo sombrio, negro e vibrante da figura mais carismática e livre da guitarra portuguesa“, Paredes – indubitável génio da Guitarra. Ousados na imensa responsabilidade de agarrar no admirado trabalho de Paredes, Pedro Lopes (Na Cor do Avesso, Quinteto de Coimbra), Pedro Renato (Belle Chase Hotel, Azembla’s Quartet, Mancines), Raquel Ralha (Wraygunn, Mancines, The Twist Connection, Belle Chase Hotel, Azembla’s Quartet) e Ricardo Dias (aCapella, Ricardo Dias Ensemble, Quinteto de Coimbra) deram-nos, a 28 de fevereiro de 2020, um disco definitivamente intenso, para almas nada puristas e ouvidos refinadamente exigentes.

Dos quatro cabecilhas, dois foram eleitos para esta dança de perguntas e respostas: Pedro Renato (PR) e Pedro Lopes (PL). Sem mais demoras, ANIMAIS com Carlos Paredes a dar o mote.

 A dar espectáculos nunca me tenho recusado, mas gravar…Tenho tendência para pensar que daqui a três meses toco melhor do que hoje.” – Carlos Paredes.
2003… Passam 17 anos até chegarmos a 2020. O que vos fez, só em 2018, reunirem-se de novo e começarem gravar este “ANIMAIS – 15 Anos Sem Paredes”? Porquê esta tão longa pausa… Amanhã vão ser sempre melhores?
(PR):
Não esquecendo o facto dos Belle Chase Hotel terem cessado actividade pouco tempo após este projecto ter subido ao palco do TAGV, em 2008, e tendo assim todas as apostas ficado canceladas, a verdade é que, antes de mais, o alinhamento deste projecto era, na altura, algo parco para preencher um disco inteiro; pelo menos com a exigência que queríamos para ele. O projecto foi sofrendo algumas mudanças, no que diz respeito ao conceito, até ter ganho a forma final que exibe hoje: começando logo pelo facto, de naquele concerto, apenas quatro temas do alinhamento inicial serem versões de Carlos Paredes, pois as restantes músicas eram canções dos Belle Chase Hotel, reformuladas e adaptadas a esta formação híbrida entre o som do Belle Chase Hotel e a sonoridade mais tradicional portuguesa que o Quinteto de Coimbra trazia para a equação, com a guitarra de Coimbra a dominar este contexto. Só quando voltámos a pegar neste projecto, em 2018, é que balizámos de uma forma mais vincada rumo ao que pretendíamos tomar, com todas as setas a apontar na direcção de Carlos Paredes (Ainda que tenhamos pregado algumas partidas às composições instrumentais do guru da guitarra portuguesa).
Uma evolução de conteúdo que ganhou uma solidez inegável, para quem vos ouve. Pedro Lopes, que desvendas tu sobre este interregno?
(PL): Todos os elementos que compõem a banda estão ligados a vários projectos musicais. Esta é a razão primeira que explica o interregno tão estendido no tempo. Mas, em boa verdade, o não esquecimento do mesmo só reforça a vontade que sempre tivemos em abraçar este projecto. O mais certo seria, depois de tanto tempo, depois de alguma distância, esquecê-lo… Como tantos outros projectos que felizmente e infelizmente acabam por ficar na gaveta. Também é bom relembrar que somos de áreas musicais bem distintas o que não promoveu o encontro no entretanto. Todavia, é o facto de virmos de universos musicais bem distintos que torna esta junção tão inesperada e interessante, a meu ver.
Carlos Paredes tem razão quando fala da relação tempo-aperfeiçoamento, quando se refere à relação com a música. Porém, amanhã seremos melhores do que hoje? Não necessariamente. Seremos de certeza mais completos – o que nem sempre quer dizer melhores. Agora, a obra de Carlos Paredes e a de seu pai – Artur Paredes – solicita maturidade e profundidade musical. Isso sem qualquer dúvida.
Costumo lançar o desafio principalmente a estrangeiros (e até a portugueses): Querem ouvir Portugal? Então ouçam Carlos Paredes! A sua música está carregada de portugalidade.
Sábio desafio, para qualquer um: ouvir Paredes.

– “A música que faço é um produto das circunstâncias imediatas do tempo em que eu vivo, e passará a ser encarada de outra forma quando essas circunstâncias desaparecerem. É uma coisa que, se perdurar graças aos discos, ficará apenas com o valor de documento, como acontece com toda a pequena música, desde os Beatles ao Manuel Freire. E já ficarei muito orgulhoso se, daqui a muitos anos, puder ser entendido como um compositor que se integrava bem nos acontecimentos desta época…“ – Carlos Paredes.
Agarraram no trabalho de Paredes. Aquele imenso e admirado trabalho que para muitos (talvez) jamais deveria ser “adulterado”, pois heresia poderia ser. Todavia, ousaram – e bem – carregados da responsabilidade em mexer e reviver a sua obra.
São os ANIMAIS também, quer em 2003 quer hoje, um produto das circunstâncias do tempo e por tal encaram a música de Paredes de outra forma, integrando-a na vossa época enquanto músicos criativos?

(PR): Sim. Acredito que qualquer músico e artista, em geral, ainda que possa ter por base referências retro patentes no seu trabalho, este é reflexo incondicional – e muitas vezes involuntário – do seu tempo, quanto mais não seja pelos meios, suportes e até tecnologias de que se serve para construir a sua obra. E mesmo a nível lírico, não é preciso ser-se um músico de intervenção para as suas palavras espelharem o contexto social, politico e/ou cultural que o rodeia, atribuindo-lhe uma data. Aliás, independentemente da mensagem, muitas vezes, apenas o vocabulário usado é o suficiente para situar a sua obra no tempo!
Não poderia concordar mais contigo. Sei que no vosso álbum escreveram algo sobre Paredes, agarras nisso para a tua palavra, Pedro Lopes?
(PL): Sim, recupero algo que escrevemos no álbum sobre o mestre: “De uma lucidez e humildade ímpares quis sempre a sua música como um reflexo de seu tempo. Tanto o fez que se tornou intemporal.” São poucos, inexplicavelmente inspirados, distraídos do quotidiano e longe dos comuns, mas conhecedores maiores de seu tempo e do seu espaço, aqueles que conseguem traduzir o que verdadeiramente somos ou sentimos. Aquilo que somos e sentimos, mas sem as ferramentas para as comunicar cabalmente. A esses poucos chamamos bardos. E esses permanecem sempre.
E a música livre de Paredes no seu tempo é, sem dúvida, para sempre.

Alguma coisa a dizer, em vossa defesa, mesmo não considerando a mesma necessária, aos mais puristas que considerem um “sacrilégio” trabalharem a música de Paredes com esta estética?
(PR):
Em relação ao facto de podermos vir a ser alvo de criticas mais conservadoras, da parte dos puristas menos liberais por abordarmos sem pudor a música de Paredes, é algo que seria de esperar, mas que de qualquer modo não nos atinge muito!
Na verdade, acho um pouco irónico até, uma vez que o próprio Paredes, pela forma única e criativa como pegou na guitarra portuguesa e a catapultou muitas vezes para contextos musicais menos habituais e convencionais, era ele próprio, no seu tempo, um vanguardista e criador livre, com poucas contemplações por padrões e fórmulas retrógradas!
(PL): Nós também gostamos de quem não gosta.
(Risos). Ou não fosse Paredes tudo menos purista ou beato preso a rigidez de modelos pré-definidos.

– “Para se fazer música com prazer tem muita importância a amizade entre as pessoas. Não se pode fazer música friamente e com cálculo, profissionalmente, no mau sentido da palavra, a receber x à hora. Não pode ser assim.” – Carlos Paredes.
Vamos aos inevitáveis clichés de entrevista, para quem não vos conhece, ainda, e por tal há que decifrar este porquê. Os cabecilhas do projecto: Pedro Renato, Pedro Lopes, Ricardo Dias e Raquel Ralha. Como estes nomes se juntam para este projecto? Porquê este quarteto com estes quatro virtuosos (fora os essenciais restantes)?
(PR):
Na verdade, a ideia inicial partiu de José Cardoso, então manager dos Belle Chase Hotel e do Quinteto de Coimbra. Portanto, infelizmente, é uma resposta muito pouco poética que pouco contribui para o nosso mito enquanto projecto visionário. (Risos).
E aqui deixas corações partidos com o fim de um possível mito. (Risos). Continua…
(PR): Mas muito obrigado, pela parte que me toca, por me classificares como virtuoso embora deva dizer que é um “título” pouco merecido; não sou nem nunca fui ou pretendi ser um músico virtuoso no meu ou em qualquer instrumento. Reconheço em mim algum engenho enquanto arquitecto musical, pois foi esse lado da criação que sempre mais me motivou, que fui desenvolvendo ao longo dos anos e que me proporcionou ir conhecendo e fazer-me rodear de músicos, esses sim, verdadeiramente geniais e virtuosos, que me incentivaram e permitiram crescer enquanto músico criativo.
Um dia discutimos essa parte do não seres virtuoso. Um dia, fora das luzes de palco.
(PR): (Risos). Voltando atrás, focando-me na tua pergunta, sim, os nomes que referiste, bem como outros colegas nossos e amigos que nos acompanham em palco, vieram da formação original do projecto, alguns dos Belle Chase Hotel e outros do Quinteto de Coimbra, são essenciais para fazer música com prazer.
(PL): Não nos consideramos virtuosos. Consideramo-nos dedicados e amantes do que fazemos… à nossa maneira, claro. Mas, quando nos colocamos a pensar, concluímos que poucos seriam os nomes que nos fariam juntar como o mestre.
Et tu, Brute?… Um dia, garantidamente, falaremos todos sobre o serem virtuosos ou não.

A amizade foi factor determinante?
(PR): Para mim, é cada vez mais importante fazer-me rodear de amigos nestas aventuras. Claro que ajuda ter amigos virtuosos, mas não me consigo imaginar a entrar para um palco como se fosse para uma reunião com uma equipa de homens de negócios; até porque isto é cada vez menos um negócio e, uma vez que nenhum de nós está rico com isto, ao menos que façamos desta experiência uma aventura o mais agradável possível.
(PL): Não. O amor à música de Paredes, sim.

“(…) o próprio Paredes, pela forma única e criativa como pegou na guitarra portuguesa e a catapultou muitas vezes para contextos musicais menos habituais e convencionais, era ele próprio, no seu tempo, um vanguardista e criador livre (…).”

– “A arte é de facto uma forma única, espantosa, de tornar simples e claras coisas extremamente complexas.” – Carlos Paredes.
Afinação de Coimbra, Guitarra de Coimbra. Vamos aqui tornar isto mais rebuscado. Colocar uma voz feminina, como a da Raquel, é provocatório a uma afinação de uma Canção cuja a tradição está mais associada voz masculina, reafirmando a vossa ousadia, ou nada disto? E já agora, para os mais leigos, chamamos Canção ou Fado de Coimbra?
(PR):
O facto da afinação de Coimbra ser diferente não torna de todo obrigatório que a canção seja interpretada por uma voz feminina ou masculina. Aliás, o mais complicado é até arranjar uma matriz dentro das músicas de Paredes que possibilitem estilizar o universo dele e confiná-lo a um formato de canção mais pop, se quiseres, de forma a ser mais convidativo para uma voz. O tom em que a canção se encontra, hoje em dia, com as tecnologias que temos, pode ser facilmente manipulado de forma a tornar a música mais adequada para a voz que lhe estamos a oferecer.
(PL): À música de matriz coimbrã devemos chamar de Canção de Coimbra. Só esta designação contém em si a maior virtude deste género musical: a sua diversidade. O Fado de Coimbra existe como subgénero e está associado à primeira metade do século XX , ao período mais robusto da Canção de Coimbra. Na expressão Fado de Coimbra – utilizada mais para fins comerciais (bem legítimos) – teremos dificuldade em encaixar as Canções populares de Coimbra, as baladas à viola do José Afonso, as Trovas dos anos 1960 e 1970 que, normalmente, os grupos de Coimbra utilizam nos seus espectáculos.
Para além desta componente cantada deveremos destacar, na minha opinião de forma absolutamente independente, a Guitarra de Coimbra. Devemos esta maioridade sobretudo a Artur Paredes, pai de Carlos, e também considerado o pai da Guitarra de Coimbra.  A Canção de Coimbra integra. Não deveria nunca distanciar. Para a guitarra idem.
A isto chamarei, mais do que uma resposta, um esclarecimento e uma aula, sem vos pedir permissão.

Imagem retirada do teledisco “Sede e Morte”, realizado por Bruno Pires

– “A fama para mim é aquilo que me permite multiplicar o número de amigos.” – Carlos Paredes.
Sentem que, naquele concerto do TAGV, a “fama” vos abriu portas e multiplicou os amigos, incluindo a amizade de Carlos Paredes “emocionado ao ouvir o seu trabalho revisitado”?
(PR): Sem dúvida que a reacção de um Carlos Paredes emocionado, ainda que debilitado, a ouvir a nossa versão dos “Verdes Anos” nos facilitou um pouco a vida, sobretudo no que diz respeito às negociações com os herdeiros que nos permitiram mexer e remexer num património musical tão icónico e emblemático como é o de Paredes; embora não creia que os herdeiros estivessem totalmente familiarizados com a má fama dos Belle Chase Hotel, para nosso ganho! (Risos). E acho que os Belle Chase Hotel viveram sempre nesse limbo e nessa dicotomia, como dizia o JP Simões, – “Entre a Glória e a Miséria”. Gozámos tanto da fama quanto com ela; tanto éramos odiados como eleitos para os Globos de Ouro! Mas sim, mesmo essa má fama abriu-nos algumas portas, e nem sempre porque as pessoas gostassem particularmente de nós, mas sim porque tinham a mesma curiosidade mórbida de quem abranda na estrada ao passar num acidente de tráfego mortal; muitas vezes fiquei com a sensação que vinham aos nossos concertos sempre na esperança de ver algo trágico. Mas isto é conversa que daria para um livro e não para uma entrevista. (Risos).
(PL): Essa foi, e será sempre, a nossa melhor crítica. Temos até dificuldades em definir o que sentimos quando lemos essa emoção da parte de quem idolatramos e de quem criou os “Verdes anos”. É um momento raro e inexplicável que qualquer músico sonha ter um dia…

– “Já me tem sucedido fazer as pessoas chorar enquanto eu toco… E eu não compreendia isto. Mas depois percebi que é a sonoridade da guitarra, mais do que a música que se toca ou como se toca, que emociona as pessoas.” – Carlos Paredes.
Por partes, que vos transmite a sonoridade da Guitarra de Coimbra ou o dedilhar de Paredes?
(PR): Devo dizer-te que aquilo que mais me atraiu, desde início, neste projecto foi mesmo o desafio de tentar cruzar universos musicais completamente distintos e não propriamente a ideia de homenagear o músico em questão. Tenho a confessar-te que não é um autor que tenha ouvido muitas vezes, embora após aprofundar o meu conhecimento da obra de Paredes tenha descoberto um lado dele que desconhecia e que me agrada particularmente; descobri um Paredes mais negro e até atormentado, que aparece frequentemente nos discos do autor. E, como não poderia deixar de referir, era um excelente músico, mas antes de mais um criador livre que não tinha qualquer pudor em quebrar as grilhetas estéticas das fórmulas e equações que aprisionavam a maior parte dos guitarristas, num estilo limitado, (sobretudo no seu tempo) como era o Fado.
(PL): Tocar bem não se traduz em tocar bem um instrumento. Tocar bem é tocar naquele que nos ouve. Não sei quem inventou esta frase (ou algo parecido) mas não poderia estar mais de acordo. A grande questão é que a sonoridade da Guitarra é o guitarrista que a faz. E a intenção do Carlos Paredes, aquelas melodias, aquele dizer, só mesmo ele. Nunca ouvi mais ninguém e tenho ouvido inúmeras boas guitarras.
O sentir da música na alma e depois na pele… São poucos os que nos conseguem tocar assim, de facto.

E no embalo, o que vos faz sentir, na alma e na pele, a música de Paredes, tocada por Paredes?
(PR):
Tal como te disse atrás, nunca ouvi muito bem o repertório de Paredes até me entregar a este projecto, o que quer dizer que quando tive que explorar o universo do artista, fi-lo sob uma perspectiva mais “cerebral” do que propriamente emocional. Ainda assim o que me assalta de uma forma mais óbvia e intensa quando ouço e penso no trabalho dele é a infinita liberdade sobre a qual a música dele assenta. Poucos são os artistas que o conseguem fazer hoje em dia; mesmo os mais independentes estão, quer tenham ou não consciência disso, bastante limitados e aprisionados em fórmulas, estilos, padrões, etc. (Até os músicos de “free” jazz – Risos).
(PL): É difícil de comunicar. Coimbra. Portugal.

Que esperam fazer sentir a quem vos ouve como ANIMAIS?
(PR):
Esperamos fazer sentir vontade de ouvir a música seguinte; e ir crescendo assim pouco a pouco no coração das pessoas, até acordarem um dia e sentirem uma vontade incontrolável de nos dar todo o seu dinheiro e bens! (Se reparares bem é uma ordem que está codificada e espalhada por todo o nosso disco, mas subliminarmente!). (Risos).
Estou com uma vontade incontrolável de vos dar uma boa almoçarada, mas o confinamento não me permite. (Risos).
(PL): O que as pessoas quiserem.
A liberdade da música.

“Tocar bem é tocar naquele que nos ouve. (…). A grande questão é que a sonoridade da Guitarra é o guitarrista que a faz. E a intenção do Carlos Paredes, aquelas melodias, aquele dizer, só mesmo ele.” 

– “Sou terrivelmente desleixado… sou, sou! Às vezes apanho multas por pagar os impostos fora do prazo (…) multas terríveis e postais com ameaças.” – Carlos Paredes.
João Rui em “Canção de Alcipe”. Ele tinha algum imposto fora de prazo ou foi, logo de rajada, a voz que sabiam que tinha de ocupar este lugar, ao lado da Raquel? O convite foi via postal com ameaça? Perdoem o humor, mas tornou-se irresistível.
(PR):
Embora o João Rui não esteja muito habituado a cantar em português, não me pareceu de todo absurda a possibilidade de adicionar aquela voz grave que o caracteriza a algumas das músicas deste disco. A “Canção de Alcipe” era apenas uma das várias possibilidades, embora ache que resultasse igualmente bem em “Sede e Morte” ou “Frustração”, etc. Aliás, no alinhamento do disco ele emprestou gentilmente o seu dom vocal e talento musical em geral, apenas a “Canção de Alcipe”, mas sempre que temos hipótese a trazê-lo connosco para o palco ele canta pelo menos dois a três temas connosco. (E o melhor de tudo, é que fazemos de forma legal, sem ter de recorrer a raptos ou ameaças e armas de fogo, esse é o lado bom de ter pessoas talentosas como bons amigos).
Confesso que ansiava por alguma suculenta ilegalidade, mas aceito a verdade, sem espinhas.

(PL): Porque o João Rui é uma das melhores vozes que temos em Coimbra. Um grande músico.

– “Quando eu morrer, morre a guitarra também. O meu pai dizia que, quando morresse, queria que lhe partissem a guitarra e a enterrassem com ele. Eu desejaria fazer o mesmo. Se eu tiver de morrer, morrerá comigo a minha guitarra.” – Carlos Paredes.
Ficou algo por dizer ao Homem dos mil dedos, lá atrás, naquele concerto? Há mais Paredes para mais ANIMAIS?
(PR):
Poderia haver Paredes para mais 20 Animais (um zoológico inteiro), pois as possibilidades são tão vastas, quanto a vontade que nós possamos ter, mas na verdade não queria fazer deste projecto uma banda de homenagem ou covers de Paredes. Estou mais interessado em fazer este tipo de viagens, e.g., por outros e vários autores da música portuguesa que considero igualmente importantes e com legados ricos, do que focar-me apenas num só; o que não quer dizer que esteja também fora de questão um possível disco de originais. Não gosto de fechar portas, ainda por cima logo de início; prefiro mantê-las todas abertas, por enquanto.
(PL):Hoje, 15 anos depois, persistimos na dificuldade de entender tudo o que nos deixou. Não fomos ainda capazes de criar a distância íntegra perante uma obra tão vasta e tão profunda. E, ao tocar, sentimo-lo pairar connosco… qual desassossego! Eis o sinal inequívoco de algo maior, de algo distinto e inefável, de um legado, para já, impossível de traduzir ou explicar cabalmente. Mestre, perdoe-nos também por isso!”
Creio que nada há a perdoar, só há que esperar por mais inspiração vossa.

E para encerrarmos esta dança, o instrumento morre quando lhe morre o músico que sempre o tocou? Dizem que se tornam um só, uma alma só. Acredito que haja opiniões diversas, aqui.
(PR):
No que diz respeito à minha guitarra morrer comigo, não partilho dessa opinião fatalista. No entanto, cada músico desenvolve uma relação mais ou menos pessoal, consoante o instrumento, que tem nas mãos, e por isso mesmo alguns músicos preferem esta ou aquela marca, este ou aquele modelo ou ainda mais especificamente, esta ou aquela edição de um ou outro ano, de um ou outro construtor. Espero que a minha guitarra continue por cá a dar cartas durante muito mais tempo, depois de eu morrer. Quantas músicas geniais foram compostas em guitarras em segunda-mão? Quantos momentos mágicos em concertos foram proporcionados por baterias em segunda-mão? E, de qualquer forma, o tempo dos Faraós e Imperadores Chineses da Antiguidade já lá vai, para sermos agora enterrados com os nossos bens, família, animais, amigos e… guitarras!
(PL): Morrer não morre. Mas nunca mais será o mesmo. Não será isso morrer?
Rematar com respostas histórico-filosóficas; não seria de esperar menos que isto, vindo de vós, meus caros… músicos de grande talento (que no dicionário vale como virtuosos).

Paredes, quem saudade nos deixou da sua música, presença e liberdade.
ANIMAIS que nunca deixem de tocar livres, tal como o génio Carlos Paredes e que desse lado, caros leitores e ouvintes, se deixem levar por eles, por toda a sua música.

Um trabalho absolutamente obrigatório ouvir e conhecer, bem cozinhado no estúdio BLUE HOUSE e com o selo da incansável Lux Records.
Um trabalho que é evolução da música, no caminho certo.

E que à música nunca falte a voz. •

+ ANIMAIS
© Fotografia: Bruno Pires.

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