Construindo ALIGA

Do imenso Nordeste Brasileiro para a também imensa, tudo depende do ponto de vista, Serra da Lousã, bem no centro deste Portugal – que caberia por inteiro dentro do Nordeste Brasileiro. Escalas e pontos de vista.
Carol e Tota Cantalice são o Nordeste de lá na Serra de cá. Dois estudiosos arquitectos e lentes que têm nas artes manuais a sua paixão maior: ALIGA.

Carol e Tota são o que podemos chamar daquelas surpresas que nos marcam e não se esquece mais. Mesmo ambos com um curriculum de fazer corar uma tábua de Carvalho ou Pinho, no seu discurso só se sente a paixão por uma disciplina que os rege – a Arquitectura – por uma matéria – a Madeira – por todo um passado que construiu dois investigadores com Doutoramentos na algibeira, Pós-Doutoramentos em marcha, com uma sede por uma investigação contínua e uma vontade de beber conhecimento sem fim. Dois arquitectos-artesãos que com madeiras re-usadas, ou novas, nos propõem viagens a um design que tem raízes claras no modernismo de lá, das suas raízes. Viagens que são feitas à medida de cada um e para cada um. Viagens que nos preenchem as casas que habitamos, completando-as e completando-nos.

Por tudo isto e tanto mais, por entre tábuas de servir, cabides para panos, suporte para cabos, estantes, aparadores, candeeiros, mesas… Desafiámos Carol e Tota para um bate-papo para melhor conhecermos as suas raízes nordestinas, o seu percurso, a sua paixão uma uma disciplina tão vasta como a Arquitectura e como vieram parar a Portugal para erguer e fazer crescer a menina de seus olhos: ALIGA.

Como se torna Carol Cantalice Arquitecta e Professora.
O que te levou a abraçar, mais do que uma profissão, uma disciplina que é a Arquitectura?
CC: 
Bom, lembro de quando era adolescente e estava chegando perto do momento de escolher que curso seguir. Gostava (e gosto) muito de artes plásticas e também ficava fascinada com construções. Lembro-me de me sentir numa espécie de corda-bamba, onde em um extremo estava artes plásticas e no outro estava engenharia civil. Basicamente, somei ambos e dividi por dois: e o resultado foi arquitetura! Acho que foi uma forma bem racional de escolher uma carreira! (Risos).

Como é que esse abraçar te levou à docência da disciplina, no sentido lato, da Arquitectura?
CC:
Durante o curso, na Universidade Federal de Pernambuco, percebi que o mundo da arquitetura é muito vasto. Na metade do curso me apaixonei pela disciplina de Teoria e História da Arquitetura, que naquele período tratava do surgimento do modernismo e ia até o período contemporâneo (século XX e início do XXI), em âmbito internacional. No semestre seguinte, fiz a seleção para monitoria da disciplina, e fui aprovada. Desde então passei a fazer pesquisa científica na área de história do modernismo na arquitetura, e já sabia que queria seguir carreira docente depois de terminar a graduação. Após a graduação, tive experiência em estágio docência durante o mestrado, e ainda no fim do mestrado comecei a minha carreira docente no curso de Arquitetura de uma faculdade particular no Recife, da qual faço parte até hoje.

Arquitecta que ensina e investiga. Carol que se muda para a Cidade do México, por um ano aproximadamente, para estudar os painéis do muralismo mexicano – tema da tua primeira tese de doutoramento.
Porquê estes painéis e seu estudo mais aprofundado?
CC:
Depois da graduação, estudei por dois anos sobre a integração entre as artes plásticas e arquitetura no mestrado. Após a conclusão, tive vontade de explorar mais profundamente como ocorre essa integração e, para tal, usei a fenomenologia aplicada à arquitetura para efetuar uma descrição fenomenológica do campus principal da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), tendo em vista compreender como é percebida a integração entre artes plásticas e arquitetura. Dentre os exemplos de integração arte-arquitetura latino-americanos, acredito que o que ocorreu no México, sobretudo na construção da UNAM é um dos exemplos mais fortes e reconhecidos mundialmente. Gostava muito de ter tido a oportunidade de ter estudado e vivenciado também o espaço integrativo da Universidad Central de Venezuela, que também acho um exemplo fortíssimo de integração, mas para a tese optei por focar apenas na UNAM.

Agarrando na tua tese de doutoramento e juntado a tua breve apresentação, onde lemos que tens nas artes e trabalhos manuais uma paixão maior.
Posso ousar em dizer que tens alma modernista, num movimento onde todas as artes – arquitectura incluída, claro – andavam mais próximas, numa fusão que, talvez, se tenha desvanecido com o caminhar do tempo?
CC:
Sim! Completamente. Tenho uma verdadeira paixão pelo modernismo, especialmente pelos campos da pintura, escultura, desenho industrial e arquitetura.

– “Criar/Projectar não é uma profissão, mas sim uma atitude.” – László Moholy-nagy.
Há espaço para o mais tradicional estar de projectar uma casa ou esse espaço está totalmente ocupado pelo modo de estar na vida e pelo criar de objectos que habitam a casa e a investigação?
CC:
Acho que, apesar de não estar a trabalhar com projetos de arquitetura (seja de construção e/ou interiores) desde 2017, a arquitetura sempre me acompanha em qualquer atividade que desempenho, seja na no refletir sobre como uma forma causa emoção ou na solução de um problema na forma de um objeto.

Agora, uma pausa com a Carol para falar com o Tota.
Tota Cantalice o Arquitecto e Lente. Todavia, antes de chegarmos à disciplina da Arquitectura temos de falar do antes… de Évora nos anos 1990.

Como é que vem um jovem Tota parar a Portugal para estudar Artes e Design deste lado do Atlântico, em Évora? Fuga dos pais ou busca, desde tenra idade, por novas experiências académico-artísticas?
TC:
Nessa altura minha mãe namorava um português que se estabeleceu na cidade de Olinda a trabalho e depois de um tempo eles resolveram vir para Portugal, e eu vim junto. Ou seja, não foi fuga dos pais, muito pelo contrário, foi apego (risos). Entretanto, a grande impressão que tive foi mesmo na escola, mergulhei de cabeça no curso de Artes e Design da Escola Gabriel Pereira, e aquilo me marcou profundamente. Foi nas oficinas daquela escola que tudo começou a se organizar melhor na minha cabeça. 

Sabendo que vens de uma família de pintores e escultores do Nordeste brasileiro, era inevitável o jovem Tota começar cedo nos caminhos das artes e formar-se numa disciplina tão abrangente como a Arquitectura?
TC:
Talvez sim. Fui criado por três irmãs: a Marília (escultora e mãe), a Marisa (pintora) e a Maritza (escultora), e vivi desde cedo a vida de uma casa-atelier. A cidade de Olinda foi igualmente importante nesse processo, um caldeirão cultural borbulhante. Minhas “mães” estavam sempre a me desafiar a pintar, desenhar, moldar, e a olhar…  tive ai forte incentivo. Depois veio a Escola Gabriel Pereira e a Faculdade de Arquitetura, estas duas serviram para normatizar processos.  

Que significa para ti o ser-se Arquitecto e lente da disciplina? A pergunta é um desafio à tua capacidade de síntese na vã filosofia.
TC:
A disciplina da arquitetura tem o fantástico poder de ampliar nosso olhar, isso é facto. Entretanto, como todo indivíduo, o Tota é também vicissitude de uma coleção de recortes, de vivências, de experiências e decisões. Acho que é nisso que mora a essência do fazer e do ensinar em arquitetura, é nesse reconhecimento do homo faber como pensante crítico, construído de retalhos, como criatura de sentimento, que eu me vejo, e é isso que tento passar para meus alunos em minhas aulas.

A Carol dedicou o tema da sua tese de doutoramento ao painéis do muralismo mexicano. De ti – sabemos que já trazes um doutoramento na algibeira e até estudos pós-doutoramento – a que dedicaste tu o teu tempo e sagacidade por maior conhecimento?
TC:
Nessa altura estava eu repleto de livros de marcenaria a me questionar sobre muita coisa, então resolvi construir uma pesquisa de pós-doutoramento para tentar diminuir – pelo menos um pouco – essa curiosidade. O tema da pesquisa girava em torno de procurar entender a marcenaria artesanal por meio da Teoria da Tectónica. Como já trabalho com essa teoria desde o mestrado, me pareceu possível tentar conectá-la com a produção dos artífices de madeira, mesmo ela sendo utilizada quase que exclusivamente no meio da arquitetura. Usei como objeto de estudo três artífices pelo qual tenho grande apreço, o nipo-estadunidense George Nakashima, o russo James Krenov, e o português Joaquim Tenreiro. Refletir sobre como cada um concebia e trabalhava a madeira, de maneiras totalmente distintas, foi muito satisfatório.

Porquê o Movimento Moderno tem tanta força em ti?
TC:
Eu cresci em sobrados olindenses repletos de pinturas em suas paredes e adorava isso; entretanto, havia outra casa que muito me impactou quando criança, a casa de meu tio Lula. Apesar de ser igualmente repleta de quadros em suas paredes, ela tinha um formato em ‘U’, e era rodeada de jardins que integravam tanto o interior com o exterior da casa. Mas não se engane, quando falo jardins, não falo desses comportados, eram mesmo jardins de vegetação selvática, tomando emprestado os dizeres do arquiteto Armando de Holanda. Era vegetação tropical, densa e de folhas grandes, e o espaço mais confortável da casa era o terraço frontal, sombreado por uma grande árvore. Além da casa parecer respeitar enormemente essa árvore, a sua configuração de materiais era tão harmónica, tinha o betão, o tijolo, as calhas de escoamento das águas da chuva, tudo à vista. No primeiro período da faculdade, questionei meu tio sobre sua casa, e ele – que era igualmente arquiteto e professor – sem me falar nada, foi ao seu estúdio e voltou com o livro The New Brutalism. Ethic or Aesthetic, do Reyner Banham. É engraçado como alguns momentos se transformam em gatilhos para algumas lembranças, mas acho que foi o folhear desse livro que despertou em mim essa curiosidade pelo Movimento Moderno       

Tempo de juntarmos a Carol ao Tota Cantalice.

– “A estrutura não é apenas um meio para uma solução. É também um princípio e uma paixão.” – Marcel Breuer.
Quando nasce esta vontade de criar uma oficina de madeira e criar estruturas várias, por princípio e paixão?
CC:
O surgimento da oficina foi gradual… e acidental (risos)!
Gosto de saber que não é algo assim tão premeditado. (Risos).
CC:
Ainda morávamos no Brasil e a nossa casa tinha quase todos os detalhes ao nosso gosto. Dizemos “quase” porque a casa era projeto do Tota, temos muitos quadros e objetos de arte, mas dentre tudo isso, tínhamos um móvel de TV horroroso, e que queríamos muito trocá-lo. Começamos a saga em busca de um móvel de TV. Depois de muito procurar, não estávamos satisfeitos: ou eles não tinham qualidade ou eram extremamente caros (absurdamente, de forma a não justificar o preço que tinham). Durante uma visita a uma loja de construção (daquelas de grande superfície) para especificar alguns materiais para um cliente, passamos pela área de ferramentas e havia uma serra de bancada em promoção. “Ora!”, pensamos: “Podemos comprar a serra, compramos as madeiras e nós mesmos fazemos o nosso móvel. Vai ser super fácil!”. Tanto eu quanto Tota tínhamos tido uma vasta experiência em detalhamento de móveis, pois tínhamos trabalhado em escritórios que detalhavam tudo desde o macro até o micro. Projetamos o móvel e compramos as madeiras. Só tínhamos os fins de semana para trabalhar, e a “oficina” se resumia à nossa garagem (coberta, porém aberta), a serra de bancada, um berbequim e uma lixadora. Foram vários fins de semana até finalizar a peça que tinha fundo amovível, gaveta, rodízios e junções a 45 graus. Resultado: o móvel que deveria ter originalmente 1,10m de comprimento, e que por causa dos “percalços” terminou com pouco mais de 90cm (risos). Tinha uma série de problemas, mas foi uma grande aventura! Serviu de estopim para despertar em nós a vontade de aprender mais e buscarmos mais conhecimento sobre o ofício da marcenaria.
Nada como o empirismo para nos levar pelos caminhos certos, mesmo que o móvel não tenha saído na perfeição! E depois dessa experiência…
CC: Depois desta experiência fizemos um curso em Olinda e outro em Valle de Bravo (México). Começámos a investir em algumas ferramentas para a nossa oficina em nossa garagem e criar algumas peças. Alguns amigos começaram a nos pedir algumas delas. Neste meio-tempo, já tínhamos decidido regressar a Portugal e Tota decidiu fazer a pesquisa do pós-doutoramento na FAUP (Porto) dele sobre o processo criativo e o trabalho de três artesãos da madeira. Foi aí que nasceu a ALIGA, já em território português.

Focando-nos na matéria – a madeira. Ela é a vossa estrela maior, com especial enfoque para a reutilização da mesma.
De onde vem este amor à madeira e como se tornou o ambiente uma preocupação maior no vosso acto criativo e construção?
CC+TC:
O amor pela madeira, para ambos, é algo um tanto quanto inexplicável. A madeira como elemento natural, as marcas de seus veios que testemunham seu crescimento, as marcas de danos naturais, transformam a madeira em uma matéria prima repleta de vida e lembranças, e achamos isso fantástico. No que diz respeito à reutilização, nós já tínhamos uma preocupação relacionada aos processos de descarte de maneira geral e com a madeira não foi diferente. Para nós, o reuso se trata de uma postura de enorme respeito pela matéria e apesar de nos dar muito trabalho, torna a peça ainda mais pessoal, por sua história e renovação. Acaba que no fim, a madeira sempre nos agradece e isso já nos é suficiente.

– “A forma deve ter um conteúdo, e esse conteúdo deve estar vinculado à natureza.” – Alvar Aalto.
Seria (quase) impossível abraçar um projecto como o vosso, nos tempos que correm, sem haver uma consciência ambiental forte e determinante, concordam?
CC+TC:
Concordamos. Os tempos atuais buscam, muitas vezes, soluções rápidas e práticas. Muitas vezes, entretanto, esses critérios resultam na produção de objetos de curta vida útil e de grande geração de resíduos. O nosso projeto tenta contornar tanto o uso de madeiras novas (embora há situações em que não conseguimos fugir da compra de madeiras em serrações e lojas), quanto a produção mecanizada e impessoal das peças. A forma como decidimos conduzir a produção da ALIGA nada tem a ver com rapidez. Isso não quer dizer que não usamos máquinas, pois sim, as usamos. Costumamos sempre dizer: não somos fábrica e não temos a pretensão de o ser. Precisamos de tempo e, às vezes, as soluções que queremos realizar não são práticas, mas resultam em detalhes únicos e que se ligam à história das pessoas, do local e/ou da matéria. A intenção da ALIGA é comunicar-se com o espectro afetivo das pessoas, fazê-las perceber o propósito e o resultado das peças, além de fazer peças que tenham uma longa vida.

Uma linha é um ponto que foi dar um passeio.” Paul Klee. Vocês juntos são o ponto que veio em linha para Portugal, ousamos dizer.
Em que momento sentem que é em Portugal, e não em qualquer outro lugar, que faz sentido a vossa oficina singrar, crescer, existir? O que vos fez ser a linha de Paul Klee e deixar o vosso Nordeste Brasileiro pela nossa Serra da Lousã?
CC:
Conhecemos a Lousã em 2013, quando fomos conhecer o Talasnal. Naquela altura estávamos a viver em Coimbra. Quando por cá passamos, nos apaixonamos pelo local! Nos lembrou muito o local em que vivíamos no Brasil, que era em meio à floresta e próximo a um lago. De volta ao Brasil, começámos a alimentar a ideia de voltarmos a Portugal no futuro e a vontade era de irmos para um local como a Serra da Lousã. Queríamos desacelerar o nosso ritmo de vida, sair da capital de um estado brasileiro que tem quase a mesma dimensão e população de Portugal (até o formato é parecido), (risos), e ir para um local tranquilo, onde pudéssemos viver e trabalhar com tranquilidade. Em 2017, encontramos a nossa casa/oficina na Serra da Lousã. Foi paixão à primeira vista, espaço perfeito para o nosso trabalho! Oras, o que mais poderíamos querer, se cá estamos no meio da natureza, com uma bela vista, ao som dos pássaros e da ribeira?
Quem somos nós para discordar. Há paixões que não vale a pena sequer pensar em tentar fugir.
E o que o trazem do Nordeste Brasileiro para a vossa oficina, nas peças realizadas?
TC:
Acho que trazemos muito, a perder de vista! Falo primeiramente da simplicidade das relações, da ideia, do trabalho com o que se tem a mão, do fazer muito com pouco… não sei explicar ao certo, mas para mim parece constituir uma certa atitude. E depois vem a influencia dos móveis tradicionais do interior do Nordeste, em madeira maciça, feitos para durar, a aqui não falo dos móveis ornamentados, e sim dos banquinhos dos feirantes, dos bancos de espera, das coisas comuns.

A madeira como elemento natural, as marcas de seus veios que testemunham seu crescimento, as marcas de danos naturais, transformam a madeira em uma matéria prima repleta de vida e lembranças, (…) já tínhamos uma preocupação relacionada aos processos de descarte de maneira geral e com a madeira não foi diferente.

A família foi determinante na mudança, no sentido positivo e de inspiração?
CC+TC:
Não diríamos determinante, entretanto as nossas famílias sempre nos apoiaram em nossas decisões.

E eis que não conseguimos avançar mais sem vos fazer a pergunta cliché… Porquê o nome ALIGA para a vossa oficina? Apenas o significado do verbo aligar ou algo mais?
CC+TC:
(risos) Ah, essa é complicada! São tantos motivos, mas estão tão bem guardados (risos).
Perdoem a apropriação de uma expressão brasileira, mas não resistimos: “isso é pura sacanagem“, não desvendarem. (Risos).

– “Para criar é preciso, primeiro, questionar tudo.” – Eileen Gray.
Que questionam vocês, mais que tudo, antes de criar cada nova peça ALIGA?
CC+TC:
Seguimos a cartilha da Senhora Gray. Primeiramente levantamos algumas considerações que servirão para guiar o nosso processo de concepção: os anseios do cliente, seus gostos, o objetivo da peça, a matéria-prima disponível, de onde a madeira vem, qual a quantidade, para onde a peça vai e como ela vai. Com as informações reunidas iniciamos uma tempestade de ideias com propostas diversas normalmente desenhadas a mão. Esgotamos as propostas até elegermos uma a ser apresentada. As vezes optamos por vetorizar algumas ideias, mas outras não, são mesmo desenhadas a mão para a apresentação final. Entretanto, uma proposta de uma peça nunca é algo definitivo, pois durante a construção, com frequência, mudamos detalhes e entalhes. Em dado momento parece que conforme toma corpo, a peça nos pede algumas coisas, e nós sempre a obedecemos (risos).

– “Um objecto deve ser julgado se tem uma forma consistente com o seu uso.” – Bruno Munari.
Já agora… Como julgam as vossas peças depois de concluídas?
TC:
Depois de tanto tempo dedicado a cada peça, desde a concepção até o acabamento, e aqui sublinhamos principalmente a fase de acabamento – quando passamos algo em torno de cinco a seis dias a namorar a peça enquanto a finalizamos – é que construímos uma relação com a mesma. No fim, quando as peças estão concluídas, percebemos que estamos em uma relação a três (risos).
Imagino que seja difícil deixar a peça ir viver para o local que foi idealizada. Vejo-as, as peças, como filhos vossos, mas… E o julgar da mesmas?
TC:
O julgamento do que podem elas ser, preferimos deixar para os outros, pois claramente nossa opinião seria tendenciosa.      

Para fecharmos esta conversa, quatro perguntas mais.

A vossa ligação ao estudo na área da Arquitectura será sempre algo para continuar em paralelo?
CC:
Achamos que nunca se deve deixar de estudar nada na vida. Por mais que hoje o nosso trabalho seja voltado para a marcenaria, acho que o estudo na área da arquitetura sempre irá nos acompanhar, seja direta ou indiretamente, pois respiramos a estética do património construído da mesma maneira que a estética do mobiliário. A linguagem e o estudo de ambos, para nós, caminham lado a lado, uma coisa alimenta a outra.

A Serra da Lousã tornou-se a vossa casa ou o Nordeste Brasileiro ainda é um regresso desejado? Ou, usando a frase de Gropius – “A mente é como um guarda-chuva. É mais útil quando aberto.” – tudo está em aberto e o futuro à incógnita pertence?
TC:
O Nordeste Brasileiro sempre continua no coração, saudade contínua e avassaladora, que é diminuída quando para lá vamos e aumentada quando de lá saímos. A Serra da Lousã, por outro lado, tornou-se sim nossa casa, em poucos anos construímos uma relação de pertencimento muito grande com ela. Absorvemos sua história, seus hábitos, suas paisagens, sua cultura… nos alimentamos da Serra, diariamente. No fim, entretanto, entre casas que vão e casas que vem, achamos que o nosso guarda-chuva é o mundo, aproximando-se da visão do amigo Gropius.       

Não resistimos à tentação de vos indagar sobre a inspiração para as vossas criações.

Há música ou sabores que vos inspirem mais, no acto criativo?
CC:
Escolher alguma música em especial é uma tarefa muito difícil para nós (risos). Somos movidos por música. No ano passado nós escutamos cerca de 1363 horas de música em streaming, o que corresponde a quase 57 dias!
Não admira que as vossas criações seja tão ritmadas, na nota certa. Algum género musical que se destaque nessas horas de música?
CC:
Embora o nosso gênero mais ouvido seja o rock, temos ouvidos que escutam desde a música clássica até a música armorial, indie, eletrônica, post-rock, lo-fi, gêneros alternativos, reggae, rap, manguebeat, mpb e jazz, hardcore… Dentre todas, entretanto, as músicas mais frequentes para o acto criativo são as instrumentais, enquanto que para os trabalhos na oficina são as mais movimentadas.
TC: Outra forte fonte de inspiração para nós é a Serra da Lousã, seus cheiros, seus sons, seus caminhos. O nosso entorno nos inspira de maneira radiosa, e uma caminhada pelos seus trilhos é revigorante. Decerto a Serra contribui profundamente para a reflexão sobre o nosso fazer.

E arquitectos/ designers de referência que acabam inevitavelmente por vos conduzir o traço?
CC+TC:
Lugar especial em nosso coração tem o mobiliário moderno brasileiro. Inventivo e irreverente, tem Joaquim Tenreiro, tem Zanine, tem Lina bo Bardi, tem Sergio Rodrigues…  e tantos outros. Tem uns mais jovens também, tem Móveis Mosteiro, tem Oficina Baraúna e tem Marcenaria Olinda. Também tem lugar em nosso coração o entendimento da posição do marceneiro para James Krenov, a visão de mundo de George Nakashima, as reflexões do Enzo Mari. Tem tantos que é melhor parar por aqui (risos). É como diria nosso amigo Walter Gropius – “Minha cor preferida é o colorido”. No fim, entretanto, essa turma tem um lugar especial em nosso coração, mas elas não conduzem o nosso traço. O entendimento de suas reações ao mundo, no entanto, constituem um sopro que nos excita e incita a continuar a navegação por esse caderno repleto de traços, que é o trabalho que fazemos.
São guiados pelos mestres…

Algum desejo ou sonho especial para a ALIGA?
CC+TC:
Almejamos, antes de tudo, que a ALIGA continue a crescer de maneira saudável e que refine ainda mais a sua identidade e seu savoir-faire. Desejamos, entretanto, instigar as pessoas a um olhar sobre as nossas peças – um olhar desatento e natural que resulte no tocar, no sentir e no cheirar – e que incite certa reflexão – ou melhor, introspecção – sobre como o trabalho duro em uma oficina pode resultar não só em produtos físicos, mas também em ações que contribuam para melhorar o mundo no qual habitamos.

Para conhecer mais do portfolio desta dupla viciante e contagiante, desafiamos a navegarem no site da ALIGA (link abaixo). Difícil será resistir ao charme das peças criadas por Carol e Tota Cantalice e não ter um pouco do Nordeste Brasileiro a aquecer, com estética e execução exímias, a sua casa e o seu olhar.

ALIGA é um mundo em construção que urge conhecer. •

+ ALIGA
© Fotografia de destaque: Carol e Tota Cantalice, por Caian Dechamps.

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