Há muito que Alcobaça se tornou ponto de referência incontornável para a música erudita, com o devido reconhecimento conseguido por cá e além fronteiras. Sim, estamos a fazer referência ao sempre viciante Cistermúsica, que nunca falha na Mutante. Como tantos outros eventos da cena musical, também o Cistermúsica viu as suas voltas trocadas e viradas às avessas. Assim, trazer André Cunha Leal a esta série sobre o “futuro da cena musical” era obrigatório.
André Cunha Leal, Director Artístico do Cistermúsica, cresceu no meio dos vinis do seu pai, passou por concertos comentados de Leonard Bernstein e Wagner, pela música tradicional portuguesa… em suma, a música é presença nos seus ouvidos desde tenra idade. O piano fez parte da sua educação na música, bem como o canto – quer no Liceu onde estudou, quer já nos tempos de Faculdade – em Lisboa. Foi a Faculdade, com o Coro da UL, onde pode trabalhar com os maestros José Robert e Pedro Teixeira, e que lhe despertou o gosto pela produção de concertos, com uma série de concertos na Aula Magna. Passou pelo Gabinete de Atividades Culturais da Reitoria da UL e, no entretanto, surge a Antena 2, com o programa “Que música é esta”. Atualmente, é responsável pelo Concerto Aberto, pelos Concertos Antena 2, pelo Mezza-voce e transmissões diretas do Metropolitan de Nova Iorque. Tem uma rádio on-line dedicada a Ópera – Antena 2 Ópera.
Em 2019 torna-se curador editorial da RTP Palco, plataforma que transmite e agrega o universo de espetáculos de música, dança, teatro e artes performativas de todo o país.
Hoje é um dos programadores mais conceituados do país na área da música erudita, sendo desde 2012 consultor para a música erudita da Fundação CCB e, desde 2019, Diretor Artístico do Cistermúsica.
Se lhe pedisse para escolher uma nota musical ou frequência hertziana ou um valor em decibéis para resumir estes últimos 12 meses, qual seria e porquê?
(ACL): Seria o Dó, primeira nota da escala convencionada, por onde todos começamos a aprender música, porque este foi um ano de re-aprendizagem, de reset e para relançarmos uma nova escala tendo em conta todas as lições deste ano. Mas o Dó para os cantores, o famoso Dó sobreagudo, é também aquela barreira psicológica para todos os sopranos e tenores, a nota a partir da qual tudo parece ser supersónico e fora deste mundo. Isto porque, também no Cistermúsica, queremos começar a trabalhar para alcançar esse nível de excelência impactante que tem um sonoro dó sobreagudo na voz de um tenor ou de um soprano.
Houve tranquilidade e disponibilidade – física e mental – para pôr em prática o que anteriormente lhe era quase impossível, como tirar projectos da gaveta ou reorganizar-se?
(ACL): Disponibilidade, muita. Tranquilidade, em plena pandemia e com as incertezas que nos trouxe, é um verdadeiro exercício. Mas sim, foi um tempo bom para pôr pensamentos e ambições em perspetiva, aprender com passado e tentar neste tempo de incerteza projetar o futuro.
Como encarou e encara os concertos em streaming? São de alguma forma um motor para se manter uma certa actividade, se sentir o Cistermúsica activo?
(ACL): Para mim, vieram para ficar. E, se neste ano muitos desses concertos foram um meio quase exclusivo para fazer chegar a cultura a casa dos portugueses, penso que com a retoma o streaming vai ser o complemento perfeito para o que se passa em palco. Aliás, o Cistermúsica do ano passado foi já um bom exemplo dessa complementaridade – a adesão aos concertos presenciais demonstraram mais uma vez que o espetáculo ao vivo é uma experiência insubstituível, no entanto o facto de transmitirmos os concertos por streaming, permitiu-nos chegar a públicos de todo o mundo, levando Alcobaça ainda mais longe.
Está a desenvolver produções ou programação para a nova temporada pós-confinamento que se avizinha? Se sim, pode levantar a ponta do véu?
(ACL): Claro. Estamos a trabalhar no sentido de retomar a atividade pré-pandemia, reforçando a relação com o património, com os parceiros e no sentido de criarmos em Alcobaça uma zona de paragem obrigatória para todos os melómanos. Este ano vamos contar com uma programação Ibérica muito forte, tirando partido das sinergias naturais entre Espanha e Portugal.
Como se organiza uma agenda com tantas incertezas e reagendamentos constantes? É exequível programar concertos e festivais a curto e longo prazo?
(ACL): É. Haja vontade, calma e imaginação, tudo é possível. Assim nos permitam trabalhar.
Sente que a paragem forçada da cena musical transformou o olhar do público e a mesma passou, finalmente, a ser mais olhada como profissão e não como hobby?
(ACL): Sem dúvida. O sector está a viver uma crise sem precedentes e a pandemia apenas veio pôr a nu as fragilidades estruturais do sector. Para além disso, penso que se tornou evidente a falta que nos faz uma boa vivência cultural. É verdadeiramente um bem de primeira necessidade.
Produção. Criatividade. Palcos. Como é a sua rotina de Director Artístico e como vê o futuro do teu sector a partir destas três palavras?
(ACL): Neste momento a rotina é muito marcada pelas reuniões on-line, onde se discutem ideias e trocam experiências. Mas pegando nessa palavras, creio que passa antes demais pela criatividade, num enorme acto de partilha entre a equipa artística, os artistas e até o público, muitas horas de troca de ideias, de esboços de programas, de discussões vividas, para depois pormos em prática, ou seja, passarmos à produção. O fim último é sempre o palco e não há momento maior do que o palco, quando percebemos que aquele processo que começou muitos meses antes, como uma mera ideia, se materializa ali, à nossa frente, e chega finalmente ao público.
Quão desafiante se tornou este último ano no seu percurso enquanto Director Artístico? Como geriu a falta física dos seus pares, ao seu lado? O que mais mudou na tua perspectiva sobre o seu trabalho?
(ACL): O desafio principal foi, como disse, saber encontrar a calma suficiente para podermos pôr tudo em perspetiva e a partir daí conseguir alinhavar uma programação. Quanto à distância física, às vezes, tenho a sensação exatamente do contrário. Com tanta reunião zoom e telefonema para cá e para lá, parece que os nossos colegas estão permanentemente ao nosso lado. Isso é bom, sobretudo quando se tem uma equipa como a do Cistemúsica. •