Produção, Criatividade, Palcos. Qual o futuro da cena musical? / Surma

Surma – ou para quem a conhece desde sempre Débora Umbelino – Leiriense de gema desde cedo tem na música não um complemento, mas uma parte intrínseca ao seu modo de existir e o ano de 2015 marca o registo oficial, a solo, com o doce nome de Surma; projecto que num ápice conquistou e deixou rendido o público e a crítica especializada.

No seu percurso académico, na música, encontramos o Hot Club (especialidade em contrabaixo e voz) e, mais tarde, arrisca na pós-produção audiovisual. “Antwerpen”, o disco de estreia editado em 2017, colocou Surma quase num nanossegundo num lugar cimeiro dos novos talentos da música nacional.
Soma concertos vários por cá e leva a sua música além fronteiras, sempre que possível – como E.U.A., Inglaterra, Holanda, França, Áustria, Alemanha, Eslovénia,… e outros mais – o seu álbum de estreia foi editado em vários países europeus e nomeado para melhor disco independente do ano pela IMPALA (Associação Europeia de Editoras Independentes). Sucessos merecidos e reconhecidos. O consistente trabalho tem levado Surma a colaborações com músicos conhecidos do público como Tiago Bettencourt, Tomara, Gobi Bear, Captain Boy, Prana e Jerónimo.
A trabalhar num tão desejado segundo álbum de originais, Surma deu-nos um pouco do seu tempo para partilhar connosco o que foram estes estranhos últimos meses no seu universo musical.

Se te pedisse para escolher uma nota musical ou frequência hertziana ou um valor em decibéis para resumir estes últimos 12 meses, qual seria e porquê?
(S):
Escolheria uma nota musical aumentada, uma frequência muito alta e aguda e 140db. Foram uns 12 meses muito caóticos (no bom sentido) e com muito ruído na minha cabeça. Uma inquietação boa.

Houve tranquilidade e disponibilidade – física e mental – para pôr em prática o que anteriormente te era quase impossível, como tirar projectos da gaveta ou reorganizar-te?
(S):
No meio deste caos todo, posso considerar-me uma sortuda. Estava com o processo do álbum em andamento e com vá rias sonoplastias para teatro e bandas sonoras para cinema, o que me permitiu continuar todo este trabalho em casa com a devida calma e cuidado. Tive essa mesma disponibilidade, fıś ica e mental, para colocar em prática a exploração de vá rias áreas que sempre despertou muita curiosidade e inspiração para todo o meu processo de criação, como a exploração do movimento do corpo, desenho, performance, editar e criar conteúdo multimédia. Foi um momento agridoce.

Como encaraste e encaras os concertos em streaming? São de alguma forma um motor para se manter uma certa actividade, te sentires activa?
(S): Este assunto cria uma confusão complexa na minha cabeça! No início, posso dizer que ajudou muitas pessoas a terem acesso a vários eventos e a tentar “esquecer” um pouco este assunto da pandemia, mas por outro lado, os concertos em streaming perdem a ligação humana e o calor que temos num concerto ao vivo. Não temos a possibilidade de passar a emoção, de partilhar aquela energia que temos num concerto a vivo de que é impossível passar para um concerto livestream. O Mundo tecnológico fascina-me, temos um universo novo para explorar com múltiplas equações com resultados infinitos. Acredito que podemos fazer coisas muito boas e tirar um bom partido de tudo isto, mas nunca irá substituir (e acho que nenhum de nós deseja isso) os concertos ao vivo e o simples facto de partilhar tudo isto com as pessoas presentes. O equilíbrio é a palavra chave.

Estás a desenvolver músicas ou produções para a nova temporada pós-confinamento que se avizinha? Se sim, podes levantar a ponta do véu?
(S): Sem dúvida! Estou a trabalhar no meu segundo álbum. O confinamento deu-me esse tempo e essa calma para poder acabar as músicas com o devido cuidado, mas por outro lado, também me deu mais tempo para pensar nos detalhes mínimos de todas as composições, às vezes, não é muito saudável criar esse buraco negro dentro de nós! As inseguranças vêm ao de cima a triplicar e a recusa do teu próprio trabalho pode estar muito em causa. Estou com muitos planos extra na cabeça, mas disso não posso falar (risos).

Como se organiza uma agenda com tantas incertezas e reagendamentos constantes? É exequível programar ensaios, concertos e tours a curto e longo prazo?
(S): Tens de ser bastante flexível. Acho que a sobreposição de datas está a ser o maior “problema” de todos nós, neste momento. O que é um sinal incrível, estamos a voltar, pouco a pouco, ao activo e isso é muito gratificante e motivante para todos nós. Tem de ser tudo planeado com a devida antecedência e a comunicação não pode falhar, de todo. Mas tudo é exequível. O dia tem 24h, costumo pensar em várias divisões dentro de um dia normal e tentar criar um labirinto na minha cabeça em que no final, tens vários caminhos que te levam à saída, com muita ou pouca dificuldade, em que tens sempre uma aprendizagem a tirar de tudo isso. A tua mente é a tua resiliência.

Sentes que a paragem forçada da cena musical transformou o olhar do público e a mesma passou, finalmente, a ser mais olhada como profissão e não como hobby?
(S): Esta questão é sempre um pouco complicada de responder. Ainda temos muito caminho a desbravar para sermos vistos como verdadeiros trabalhadores, não estou a falar apenas da indústria musical mas de todo o meio artístico. Em Portugal, a cultura sempre foi vista como um trabalho para miúdos ricos, com cunhas no meio ou que, simplesmente, “fazem isto porque podem”, esse pensamento deixa-me muito triste, ainda temos que mudar muito a nossa maneira de pensar.
A falar por experiência própria, acho que muitas pessoas, estão ansiosas para poder voltar a ter um concerto, uma peça de teatro, ir a uma sala de cinema, ver um bailado, etc. Sinto muito essa vontade, por parte de toda a sociedade, poder voltar a estar num sítio rodeada de pessoas a partilhar essas experiências que a cultura nos traz.

Produção. Criatividade. Palcos. Como é a tua rotina de músico e como vês o futuro do teu sector a partir destas três palavras?
(S): Eu e o futuro temos uma relação um pouco tóxica. Não gosto muito de pensar nisso, mas acho (e espero) que o nosso sector consiga melhorar o mais rápido possível e que tenha o devido respeito por parte de todos. União, respeito e partilha. São estas as 3 palavras que espero que se concretizem.

Quão desafiante se tornou este último ano no teu percurso enquanto músico? Como geriste a falta física dos teus pares, ao teu lado? O que mais mudou na tua perspectiva sobre o teu trabalho?
(S): No meio deste pandemónio todo, tive uma sorte inigualável. Todo o meu trabalho continuou (de um modo diferente, claro está). Sinto muita falta da estrada, dos concertos, da rotina caótica mas no meio de tudo isto, tive a oportunidade de poder trabalhar com outras áreas que sempre me inspiraram muito enquanto pessoa e artista, como a fotografia, teatro, cinema, performance, isso deu-me outra perspectiva de trabalho e de exploração enquanto Música. Tive a oportunidade de conhecer e de trabalhar com pessoas incríveis e talentosas, de um modo, que não sei explicar por palavras. Foi e está a ser uma aprendizagem constante. •

+ Surma
© Fotografia: DR.

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