Algures entre Agosto e Setembro de 2021 Barcelona foi o destino: porque havia o compromisso de um encontro, a vontade de conhecer, mesmo, uma cidade, e a necessidade de fazer, realmente, a viagem.
Em tempos, sobre uma viagem que há alguns anos me levou de Toledo a Madrid, e da qual vos dei conta, também precisei que viajar sempre foi para mim uma emoção; talvez porque não o faça regularmente, talvez porque não o concretize em contexto de trabalho, porque é sem dúvida esparso o ritmo com que decorre. Por motivos pessoais, íntimos, a viagem a Barcelona em 2021 foi a primeira em diversos espectros: nela mantinha a expectância e a permeabilidade, e sentia que deveria escrever, embora não soubesse como é que tal se desenrolaria. Decidi que escreveria num caderno que comprasse em Barcelona, mas não me ocorreu que o caderno seria usado, como se verificaria: talvez, por mais que nos digamos permeáveis e na circunstância de uma viagem e incógnita, possamos de facto projectar probabilidades e conjecturas. Também quando me comprometi no que respeita a escrever, não possuía um plano infalível em mente, embora desde logo obstasse a algumas hipóteses: não seria um roteiro de viagem, não seria um aconselhamento de locais a visitar, nem exactamente um diário impressionista. O que seria, então? Algo que pudesse surgir, embora, repito, nunca me tivesse ocorrido a ideia de escrever num caderno usado, aliás, com uma página escrita, nem sequer o imaginava pequenino.
No entanto, havia uma questão que permanecia instalada, na verdade, uma inquietação que me acompanha e me interroga, por vezes, impacientemente. Qual é? É aquela que se relaciona com a nossa coincidência com o espaço e com o tempo. Ou seja, numa época, aquela em que permanecemos, de contínuo e veloz diferimento, em que ocasião se coincide com o espaço e com o tempo? Parecia-me importante, também, não saturar este lugar com imagens, ou melhor, com fotografias, por tal, não me fiz acompanhar de máquina fotográfica, o que se vem repetindo desde tempo: porque, por um lado, o enquadramento fotográfico de uma viagem não me é óbvio que surja, porque, por outro, a minha expressão primordial tem como móbil a palavra. Mas, pese embora não me faça acompanhar de máquina fotográfica, considero que a palavra e a imagem devem ser costuradas, restaurando por isso um sentido primordial que as derradeiramente associa, assim como urge restaurar outras dissociações perniciosas. É minha firme convicção que a sociedade actual separa tudo, menos o que deve permanecer separado: os sujeitos. É incrível como se assiste ao amontoamento das pessoas, não respeitando, não é o individualismo, não, mas sim a sua/nossa condição de seres individuados, dotados de uma espécie de perímetro de segurança. A deturpação de tal perímetro de segurança, que não é imunitário, transforma-se o mais das vezes em crosta, em couraça, em espécies de grades que num ápice se transmutam nas prisões contemporâneas.
Por um lado, claro que a época é asfixiante, e perante ela, esfera interior escura e densa, convém desferir golpes que se afiguram poros respiradores. Mas, por outro, é o plano onde nos cabe viver: um conjunto de condições que nos são dadas e oferecidas para que nelas nos banhemos, delas nos evadamos, com elas nos debatamos. Pelo que em qualquer tempo que se nasça, providenciam-se condições de existência: todos/as somos filhos/as do tempo, e ninguém sabe quando nasce, mas, ao chegar ao mundo, somos acolhidos/as e dão-nos um nome. O facto de sermos nomeados/as por outrem deveria mais tarde levar-nos a pensar cautelosa e profundamente: é a prova cabal de que não estamos sós na Terra, bem como de que existe uma cadeia de transmissão. É vão julgar que somos os/as primeiros/as, e não se promete razoável que procedamos como se fossemos realmente os/as últimos/as.
Não existe uma Barcelona eminentemente abstracta, fora das minhas condições de experiência, e se assim parecer é porque se privilegia o ângulo que fotografa a Terra a partir do exterior galáctico; mas também não existe uma Barcelona tão pessoalmente minha que se apresente infigurável e não passível de vos ser transmitida enquanto narrativa partilhável. Parte da inefabilidade actual que rodeia, por exemplo, a arte, radica num equívoco bem lamentável: a circunstância de se pensar que ali se condensam mistérios insondáveis, e que vêm ancorados numa experiência por essência atomizada. Portanto, nos próximos tempos irei partilhar convosco uma narrativa de viagem, a Barcelona, entre Agosto e Setembro do ano de 2021, porque acredito que é urgente restaurar, costurando aqui, a imagem e a palavra, bem como obstar a outras dissociações perniciosas.