A primeira pessoa com quem falei em Barcelona, depois do senhor do táxi, foi um livreiro na Carrer de Verdaguer i Callís, a quem perguntei pela direcção exacta da rua onde iria ficar alojada; depois regressaria à sua livraria, que me fascinou desde logo.
Penso que nunca, num espaço tão pequeno, encontrei uma concentração tão evidente de livros fantásticos, interessantes, de leitura até, diria, fundamental: fosse de autoria mais recuada, fosse de pensadores/as recentes, de facto senti-me como uma criança numa loja de doces, partindo do pressuposto que se trata de uma daquelas crianças que gostam mesmo de lambarices. Apesar de me sentir fascinada, acabei por não hesitar na minha decisão de compra, apenas oscilando entre dois títulos de Byung-Chul Han, filósofo de nacionalidade sul-coreana de quem, por certamente motivos do destino andante, ainda não tinha lido o quer que fosse; escolhi La agonía del Eros, depois de indagar o índice. Não o li de fio a pavio de um fôlego, numa tarde por exemplo, mas acompanhou-me em Barcelona e aqui o comecei, e terminei. Tem Prólogo de Alain Badiou, é uma segunda edição, com tradução de Raúl Gabás e de Antoni Martínez Riu, e faz-se publicar em Espanha pela Herder Editorial, primeiro no ano de 2017, e depois em 2019.
O amor é uma palavra-acto que me atravessa ao meio desde sempre, creio. Desgastada, lambuzada, mastigada, abusada, destratada, desidratada, é uma palavra onde tantos/as agora, apenas, projectam como que a pele de um animal morto a partir da qual elaboram um casaco muito vistoso e luzidio. Também me parece, por outro lado, que se torna diferente se é uma mulher ou um homem quem fala de “amor”: há uma tendência, bem identificável através de uma recensão histórica, para considerar as mulheres essencialmente sentimentais, o que se verteria para uma análise, neste caso do amor, mais pegajosa. Não concordo. Por dois motivos: primeiro, os homens escreveram mais, logo, a probabilidade de encontrar, historicamente, coisas pegajosas escritas no/pelo masculino é muito maior, e a verdade é que se encontram; segundo, as mulheres foram historicamente circunscritas ao silêncio, ao eufemismo ou à circunlocução, logo, quando irrompem no pensamento e na reflexão possuem recursos que as dotam de uma lucidez, de uma espessura abismática, mas, sem dúvida, precisas, porque entretecidas com a economia da vida, à qual estão visceralmente ligadas pelo corpo, e em que permaneceram como gestoras diárias. Ocorre-me pensar, por exemplo, que um filósofo como Emmanuel Levinas, que fez da bondade/bem o pressuposto da responsabilidade e desta o princípio da eleição e da eleição um carácter de civilização, desconfie da palavra “amor”, que considerou encontrar-se mesmo neutralizada, como acto.
Portanto, foi totalmente apaixonada que percorri La agonía del Eros, ou seja, o assalto que Byung-Chul Han faz ao castelo do Mesmo, ou seja, ao sujeito-encapsulado que não se permite sentir a ferida originária que todos/as ostentamos pelo facto, inaugural, primeiro, de sermos Dois, e não Um, segundo, porque é essa a ferida que cria uma umbilicalidade ao Humano e ao Outro. Começa: “En tempos recientes se ha proclamado con frecuencia el final del amor.” Há 22 anos, numa pacata vila do país português, e digo pacata por contraponto à brilhante e informada capital de Portugal de onde eram todos oriundos, ou onde pelo menos exerciam a sua actividade, três críticos de cinema, do jornal Expresso, reuniram com o povo para discutir o “Fim do Amor”. Defendi o amor com garbo, depois em aflição perante o comportamento, sobretudo, de um desses críticos de cinema, que me disse: “o que comanda o mundo é o dinheiro, és muito nova, e falta-te aprender.” Outro, cínico, oscilava entre mim e o descrente, acabando por me oferecer, por “arte negra”, um livro que dedicou: “para que se (en)farte e se possível levite.” O terceiro nunca falou. Na verdade, fartei-me um pouco, sim: de pessoas descrentes, paternalistas, que tentam ensinar às pessoas “novas” coisas que não são belas. Já quanto ao amor, e se me lembrar de que “a poesia é para comer”, como escreveu Natália Correia, está tão entranhado e bem encaixado que engendra, por artes mágicas, as metáforas todas no coração, como defendeu Maria Zambrano.
Que Byung-Chul Han termine La agonía del Eros com a defesa da teoria, que considera mais necessária do que nunca, a par com as cerimónias e os rituais, e, concomitantemente, com a defesa intransigente da literatura e da arte, com o que de “sedução erótica” subjaz a todas, é admirável. Há diversos anos que me assalta uma dúvida: que história vamos contar às nossas crianças? E sinto-me de facto enlevada pela tarefa de escrever uma história que possa contar-se às crianças, o que exige, sobretudo, fazê-lo com amor, porque: a uma criança ensina-se que o mundo é regido pelo dinheiro? A sério? Como é feita uma criança? Não é com amor? Então, que descaramento podemos ter nós, adultos, que nos permita dizer-lhes, às crianças, que o mundo é um pântano, um lodaçal, regido, então, pelo dinheiro? Byung-Chul Han ama, eu amo, Alain Badiou ama, alguém ama. Importa dar voz, e ouvir, quem ama.
Questiono-vos, e questiono-me: quantos críticos de cinema amam?