RESTAURAR: o Céu e a Terra, com Marc Chagall

O único museu que visitei em Barcelona foi o Museu Diocesà, onde estava patente uma exposição composta por 34 quadros de Chagall, pintor que sem dúvida me fez entrar no edifício localizado ao lado da Catedral.

Diga-se, desde já, que o funcionário que permanecia na bilheteira do Museu Diocesà de Barcelona foi excepcional, porque quando, no final da minha visita à exposição Chagall. Los estados del alma, lhe fiz saber que me era impossível ver o restante museu apesar da minha intensa curiosidade, mas uma exposição com 34 obras impedia-me de ter a concentração necessária para ver mais o quer que fosse, ele proporcionou-me visitar o museu no dia seguinte, o que sem hesitar fiz. Trata-se de um museu precioso pelo valor documental e pela qualidade dos testemunhos, que nos transporta para os fundamentos da Cristandade, e relembra uma sociedade composta pelos que rezam – Oratores, pelos que lutam – Bellatores, pelos que trabalham – Laboratores, remetendo-nos, por tal, à época medieval. Quando acedi ao piso superior, e na parte da loggia, realmente a vista que proporciona é assombrosa sobretudo pelo ângulo panorâmico descendente e profundo: senti-me a fazer uma rotação imaginária, além da que acompanhava os meus passos ao longo dos diversos arcos. E (re)confirmei, sentindo na pele, o desejo humano de elevação em direcção ao infinito celeste, superando, e contrariando, o atractor terrestre. 

Apenas me parece que céu e terra vêm juntos, relacionados, casados, como aliás inúmeros pares que não encerram uma dialéctica simples, por mais que a possamos projectar, e que, portanto, também não estão condicionados por uma síntese resolutiva, sendo antes relação aberta, produtiva, actuante, fértil. Por um lado, urge uma atenção ao pequeno, ao pormenor, ao que do solo irrompe; mas por outro, é indubitável a necessidade, absoluta, de manter o desejo de infinito, de uma propagação do olhar; as duas coisas obrigam-nos, penso, a valorizar a necessidade de um horizonte. Ora, um horizonte não é um espaço sem gravidade: tem pontos cardeais, tem peso, tem carne, tem leveza. Marc Chagall, um pintor que nunca nos engana, mostra-nos esse horizonte de forma indesmentida, também em Los estados del alma, exposição que pode admirar-se até ao dia 28 de Outubro no Museu Diocesà de Barcelona, sendo que outra parte do exposto, significativamente mais pequena, se encontra na Catedral, e que acabaria por não visitar. Chagall, de quem, no texto de parede da primeira sala, se diz: “Profundamente espiritual, na obra de Chagall destaca-se o amor, a alegria pela vida e a proximidade a Deus”; Chagall, com quem compreendemos que a cor é a cor, que a cor tem sentido, e que, por tal, quando, em A Criação, uma litografia de 1960, impregna a terra de azul, apresentando, pese embora, a esfera do céu e a esfera da terra, nos está a transmitir que todos/as nós, coisas, animais, sem distinção, somos atravessados/as na nossa finitude pelo infinito, pelo que nas células se abriga o cosmos. Apesar de tal explosão originária, Chagall, para quem a cor é a cor, dá-nos a ver, nestas pinturas, que é preciso, na nossa vida, mostrar esse fluxo entre o céu e a terra, e talvez hoje mais do que nunca. Porquê? Para provar, para demonstrar, para deixar o testemunho dessa relação originária entre o céu e a terra: tanto é preciso lançar os corações ao alto, como manter os pés bem firmes na terra. 

Na segunda sala da exposição Chagall. Los estados del alma, pode ler-se também, no texto de parede: “Nunca perdi no meu interior o amor em que fui educado, nem a esperança do homem no amor.” E realmente é só assim, com esse amor no interior, que o podemos ver nos anos sessenta do século XX a pintar anjos, porque é preciso acreditar neles, anjos: na sua força taumaturga, na sua qualidade de mensageiros. Os anjos que a Modernidade nos apresenta, na verdade, estão todos doentes: o Anjo da História, de Walter Benjamin, melancólico-depressivo, não consegue voar; o Anjo da Casa, de Virginia Woolf, neurótico-histérico, está aprisionado; o Anjo da Teoria, localizado por Peter Sloterdijk, esquizoide, separou-se da vida. Questiono-me, e questiono-vos: por que razão se proporciona um fascínio tão acentuado por estes anjos doentes? Todos eles localizam uma impossibilidade, e são sem dúvida importantes, mas para superar a doença e criar saúde, aquilo para o qual a arte deve contribuir: criar saúde. Para criar saúde é necessário encontrar uma relação ponderada entre o céu e a terra, e nada melhor, realmente, do que uns bons anjos para estabelecer continuamente as ligações, aliás, como uma pensadora como Luce Irigaray alerta: eles são mensageiros, têm asas para voar, atravessam os céus e andam pela terra. Marc Chagall, como se pode ver nesta exposição patente em Barcelona até dia 28 de Outubro, é o pintor do sonho e o que restaura a ligação entre o céu e a terra, e é também, sem dúvida, um observador acutilante da natureza humana, que verte para a sua visão de Os sete pecados capitais: uma precisão detectável nas águas-fortes que fixam ali a inveja, a soberba, a gula, a luxúria, a preguiça, numa escala muito pequena, como que extraindo do corpo e da realidade maleitas, operando cortes tanto na carne, como no ar, sim, porque todos/as comungamos deste ar que nos rodeia. Se alguém se sentir aprisionado no corpo, basta, na verdade, fazer esse exercício muito simples: respirar. Respirando, estamos a comungar do mesmo ar, que devemos zelar para que não se envenene.

Já recebe a Mutante por e-mail? Subscreva aqui .