RESTAURAR: as Causas, com Laura Grappi e El Trampolí

Na Carrer Méndez Núñez, 10, em Barcelona, logo no primeiro dia da viagem, encontrei também uma loja solidária, onde achei que fazia todo o sentido perguntar se tinham algum caderno para venda: sim, um único, mas usado. Não hesitei: comprei.

O caderno que Laura Grappi, como depois viria a saber que se chamava, me vendeu, de tamanho A6, e na capa, também tinha escrito o seguinte: “Saborea tus mejores momentos”. Correspondi-lhe. Nesse primeiro dia, a atenção de Laura estava a ser solicitada por um rapaz cuja nacionalidade não consegui identificar, mas que consegui perceber estar muito interessado em compreender bem, e falar correctamente, tanto quanto lhe fosse possível, a língua espanhola; quando entrei na loja ele já aí se encontrava, e permaneceu depois de me despedir. Além do pequeno caderno, encontrei outra coisa bastante bonita, que levei igualmente comigo. Estava cumprida a premissa essencial para poder escrever: um caderno comprado em Barcelona, que, por ser tão pequeno, acabaria por ter essencialmente um peso simbólico, pois tive necessidade, em face da sequência dos acontecimentos, de comprar um maior onde viria de facto a escrever a parte significava dos diálogos. No dia seguinte, quando descobri o que aglutinaria a escrita sobre tudo quanto acontecesse e descobrisse em Barcelona, regressei à loja e expus a Laura o meu plano; marcámos para a manhã que se seguiu. Laura Grappi nasceu na Argentina, passou já pelo Brasil, e agora permanece em Barcelona onde, depois de diferentes ocupações, é, nesta loja solidária, o rosto acolhedor de El Trampolí, uma fundação e associação que dedica a sua atenção a pessoas com incapacidades mentais/psíquicas, cuja raiz temporal remonta ao ano 2000. 

A loja em Barcelona foi aberta em Fevereiro de 2021, e juntou-se às outras que El Trampolí já mantinha; como a cidade é maior, o impacto das vendas não será tão retumbante, mas Laura Grappi dir-me-ia que no bairro tem havido uma resposta muito positiva, tanto na doação de coisas, como na afluência à loja. Quando começou a colaborar com a fundação/associação El Trampolí, a Laura foi propiciado o conhecimento, tanto dos outros espaços de venda que mantêm, como dos locais onde desenvolvem actividades ocupacionais e lúdicas, o que se traduz na certeza de partilharem um desígnio comum. Aliás, nas lojas solidárias de El Trampolí, além das coisas que são doadas pela população, também aí se encontram os objectos que provêm das oficinas onde laboram as pessoas apoiadas, que assim têm o seu trabalho valorizado afectivamente, valorado comercialmente, reconhecido socialmente. E Laura assistiu à montagem da loja em Barcelona, que me diria ser, continuar sempre a ser, uma entidade flutuante, flexível, sem programas rígidos, logo pelo facto, claro, de poderem chegar coisas muito díspares: mas é essa diferença que atrai, precisamente. 

El Trampolí ajuda as pessoas de perto, ou seja, não é uma fundação/associação com o desígnio de exercer influência relativamente a um problema longínquo, cujas necessidades poderão ser concretas, mas que, pela distância, acabam por impor-se como abstractas para nós. É verdade que vivemos numa globalização indesmentível, que nem sequer provém apenas da “aldeia global” que os noticiários nos demonstram todos os dias, e que remonta às investidas marítimas iniciadas por Portugal e Espanha no ido século XV; nesta medida, a Terra é, toda ela, um problema-questão interior. Mas existem escalas relativamente a este problema-questão: uma coisa é ter noção de ameaças globais, várias, que atingem o planeta na sua identidade e disponibilidade, e que devem ser perspectivadas e enfrentadas com uma frente comum; outra, sem dúvida, é fazer-nos sentir, e viver, certos acontecimentos longínquos como se estivessem a ocorrer à nossa porta, e perante os quais a possibilidade de intervenção é nula. Parte da impotência actual, que se abate sobre as pessoas como um cutelo voraz, mascara certamente estratégias que nos pretendem fazer crer que, na nossa objectividade existencial, não temos intervenção qualquer no curso das coisas do mundo, mas que somos simultaneamente culpados/as singularmente pelas tragédias que eclodem um pouco por todo o lado. Laura Grappi, o rosto acolhedor, sorridente, e de abraço franco, de El Trampolí em Barcelona, atravessou o oceano Atlântico e prossegue a sua aventura em busca de uma vida melhor, como tantas outras pessoas que emigram. Mas as causas, tanto da sua partida, como as que agora defende junto com El Trampolí, e as que El Trampolí traçou tão ardentemente, serão sempre um horizonte, aquele que deseja um Mundo diferente: mais agregador, sem dúvida. Para isso, há seres humanos que deveriam, seriamente, deixar os seus semelhantes em Paz, porque: uma coisa é defender CAUSAS, e para isso há que demonstrar bravura, outra, muito diferente, é arrebatar posições. E já dizia Emmanuel Levinas, citando Pascal, em Pensamentos: “«…Este é o meu lugar ao Sol.» Eis o começo e a imagem da usurpação de toda a terra.”

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