Surrealismo: procura-se!

Na companhia aérea de Max Ernst, que não é exactamente algo que nos leve pelos ares, mas que contribui, e muito, para descortinar aberturas num tempo de horas vertiginosamente plúmbeas.

A primeira vez que que ouvi a palavra “plúmbeo” foi através de um senhor com idade veneranda: fiquei extasiada com a extrema elegância, tanto do pronunciamento, como da palavra em causa. A circunstância concreta em que a ouvi era triste, como o são os acontecimentos funestos que agora acicatam sonhos mais ou menos desfeitos: uma guerra, uma guerra a acrescer às que circundam a Terra. Uma guerra a agir no coração do Tempo, a embrulhar a cadência da História, a empurrar a humanidade para horas ensurdecedoras, aquelas em que Emmanuel Levinas dizia ser necessário reflectir para que não mais acontecessem; ou será essa noite sem horas que o filósofo também nos mostrou? Uma noite que engole tudo, que deglute o bem, que escava crateras na pele, que disfere chicotadas ferozes no interior. 

Ainda hoje, pese embora não lembre com exactidão o semblante do senhor com idade veneranda, me recordo de o ver inclinar-se e cumprimentar delicada e firmemente a pessoa que se sentava do meu lado esquerdo: foi quando pronunciou a palavra, que para sempre registei. E penso: no meio desta noite de chumbo, com horas plúmbeas ou mesmo na ausência de horas, o que se torna numa aflição sem nome, avultam ainda os gestos como fins. E penso: teremos verdadeiramente a sabedoria para o encetar, para o efectivar? Para, no fundo, enfrentar a violência, o absurdo, a guerra, com um (sur)real tratado de cerimónia? Isto é algo que as pessoas mais velhas, e com uma memória específica, estão mais bem preparadas para encetar, para efectivar. No que respeita aos mais novos, terão de descobrir a intemporalidade dessa estilização porque nada, nada, os preparou para estes tempos de violência, de absurdo, de guerra. É certo que a nossa sociedade está acerada pelos embates constantes: desde os rostos crispados, passando pelas expressões grosseiras, pelos cumprimentos inexistentes, pelas farpas da mais diversa natureza. Muito se labora na brutidade. No entanto, o segredo não passa por acossar o/a semelhante, ao invés: recrudescer a delicadeza e estatuir o nosso interior.

Em suma, desenvolver capacidades surreais, realmente surreais.

Fotografia: Manuela Brito

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